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4. AGREGADOS E DONOS DE TERRA

4.2 A morada nas ciências sociais

4.2.2 A morada no Sertão

Pode-se perceber a “geografia” do sistema de morada através de suas ocorrências na Zona da Mata e no Agreste. Contudo, essa geografia pode ser estendida ao Sertão nordestino, onde há estudo que descreve a instituição de tal tipo de relação social de “dominação” marca- da por “trocas” e “assimetrias” entre “moradores” e “senhores”, como o estudo de Barreira (1992) realizado durante os anos 1980 em municípios das mesorregiões do Norte e dos Ser- tões Cearenses.

Ao abordar a “dominação tradicional no Sertão” no contexto dos “conflitos sociais” nessa região, Barreira discute sobre a “relação morador-proprietário”. Se Garcia (1988), He- redia (1988), Sigaud (1979) e Palmeira (1977) discutiram a morada a partir do universo do “engenho” de moer cana, Barreira (1992) tem por campo de investigação o universo da “fa- zenda” de criação de gado e plantação de algodão, na qual o correlato hierárquico do “senhor de engenho” era o “coronel”83. Nesse contexto, Barreira (1992) afirma que no “sertão do Nor- deste” a “relação de trabalho predominante” era a de “morador-parceiro”.

82 O lastro histórico desse tipo de relação entre morador e senhor de engenho precede a abolição formal da escravatura em 1888. Contudo, sua “institucionalização como forma predominante de relações de trabalho é [...] um fenômeno característico do final do século XIX e começo do XX”. O trabalho do morador foi fundamental, ao combinar-se com o “uso do trabalho escravo” para a produção de cana de açúcar no nordeste brasileiro, pois possibilitou o autossustento da grande propriedade canavieira em momentos em que “as condições de produção comercial não eram favorecidas pelo mercado internacional, ocasionando o fechamento da propriedade em torno da produção para subsistência de seus membros” (SOARES apud VERÇOZA, 2018, p. 48). Costumasse demarcar a década de 1950 como o período de declínio desse tipo de sistema que acompanhou as mudanças pelas quais passaram a produção canavieira e a organização política do campesinato da plantation açucareira (PALMEIRA, 1977). Contudo, nos anos 1970, parte dos trabalhadores dos engenhos e usinas de cana permaneciam morando nos locais onde trabalhavam. Para a experiência da mudança de “condição de morador” para a “condição de trabalhador”, que marca o declínio do sistema de morada na zona da mata canavieira de Pernambuco, consultar o clássico estudo de Lygia Sigaud, Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana de açúcar de Pernambuco (1979).

83 A discussão do autor destaca a relação entre o mundo da fazenda e o mundo da política, relação na qual o coronel opera como mediador entre os “camponeses” e as “leis” e a “economia”. É através de um “monopólio do saber sobre o ‘outro mundo’” (1992, p. 20) que se sustenta, afirma o autor, a “dominação tradicional” do coronel sobre os camponeses do sertão cearense, que se auto-classificam como “ignorantes” quando os temas são aqueles tratados pelos “homens fortes”, os “homens grandes da cidade”, os “homens que decidem”, em suma, os amigos do coronel, o médico, o juiz, o deputado.

Situação na qual o camponês morava dentro da grande propriedade e pagava uma renda em produção ou mesmo em dinheiro pelo uso da terra. Mantinha, portanto, uma dupla relação com o dono de terra: de morada e de parceria. (BARREIRA, 1992, p. 20. Destaques meus).

Dessa forma, assim como nos casos do brejo e da mata, no sertão uma “dupla relação”, trabalho e morada, ordenavam as trocas entre morador e proprietário. Em troca de um pedaço de terra, o morador oferecia dias de trabalho para o proprietário ou parte da produção de seu roçado. Para Barreira, esse “quadro de relações de produção no Sertão” possui uma extensivi- dade histórica cujas origens podem ser rastreadas através das páginas de Viagens ao Nordeste, de autoria de Henri Koster, publicado em 181684. Contudo, esse “sistema de parceria”, co- menta Barreira, foi definindo-se somente no final do século XIX, “à proporção que o algodão adquiria maior peso comercial” e passou por mudanças no início do século XX, com os pro- prietários exigindo do agricultor não apenas o algodão, mas vinte e cinco por cento do milho e do feijão plantado para o autossustento da família camponesa (1992, p. 21).

A hierarquia do mundo da fazenda apresenta o “vaqueiro” e o “parceiro” como locali- zados abaixo do “proprietário” ou “fazendeiro” ou “coronel”. No sertão estudado por Barrei- ra, predominou a pecuária extensiva como “atividade econômica principal”, ou ainda “associ- ada ao algodão”, especialmente nas “grandes propriedades”. Ao agricultor, o proprietário “dava a terra” na qual aquele cultivava algodão e alguns cereais e o fazendeiro recebia como pagamento “um certo percentual dos produtos” (1992, p. 21).

Se a “relação de trabalho” entre proprietário e agricultor era organizada pelos “sistema de parceria” da terra, no caso da relação do mesmo proprietário com o vaqueiro atuava a “quartiação” como sistema de parceria do gado. Na quartiação, o vaqueiro recebia do proprie- tário um bezerro a cada cindo nascidos. O trabalho do vaqueiro era “cuidar do gado”, princi- palmente nas grandes propriedades na qual o fazendeiro não residia e “muitas vezes não havia separação entre o gado do vaqueiro e do patrão” (BARREIRA, 1992, p. 21). “Depois do pa- trão, a pessoa mais importante na fazenda era normalmente o vaqueiro” (CHANDLER apud BAREEIRA, 1992, p. 21).

Após descrever a relação de trabalho que animava o “sistema de parceria” do proprie- tário com o vaqueiro e com o agricultor, Barreira conclui que a “unidade econômica do sertão era a fazenda de gado na qual residiam várias famílias. A relação morador-proprietário de

84 Barreira retoma uma passagem de Viagens ao Nordeste do Brasil (1816), do viajante Henry Koster, para marcar a extensividade histórica desse tipo de relação entre morador e proprietário na região. sociólogo atesta sua permanência durante o trabalho de campo na década de 1980 em fazendas dos municípios de Quixadá, Canindé e Caridade (1992, p. 20)

terra nela ocorrente é que consolida e reproduz a dominação tradicional na região do sertão” (1992, p. 21). Assim como aqueles que estudaram o brejo e a mata, Barreira concebe a “rela- ção de morada” como um tipo de “dominação” do proprietário sob o morador a partir da pro- priedade da terra e do poder de conceder ou não terrenos para aqueles que o procuram. E des- taca a dimensão do “compromisso moral” que liga simbolicamente os sujeitos na relação de morada (1992, p. 22).

A dependência, pilar da dominação tradicional no campo, tem sua base no direito de trabalhar e morar em uma terra que não lhe pertence e receber fornecimento ou adi- antamento para cultivar e manter sua família. O “dar a terra” para ser trabalhada ou o direito de “decidir a quem dar a terra” cria uma ideologia sobre o patrão como o “homem bom que dá a terra para ser trabalhada”. Quando um camponês chegava procurando moradia e trabalho o proprietário dizia: “vamos viver assim” ou “aqui a gente vive assim”. Esses termos expressam mais uma relação de morador-agregado do que de morador-parceiro, o que traz diversas implicações: uma delas é que o camponês passa a fazer parte da família do proprietário, o que lhe confere deveres, mas não direitos. Além disso, a falta de limites precisos na relação possibilita mani- pulação e arbítrio por parte do proprietário. O camponês, por residir na propriedade, passa a ser “gente do coronel fulano de tal” ou “morador de fulano”. Ele passa a “ser protegido” e “ter um dono” (BARREIRA, 1992, p. 21-22).

Assim como os autores do brejo e da mata, Barreira menciona as “práticas de dons” (GARCIA, 1988) configuradoras do sistema de morada como um sistema de trocas, contudo distingue temporalmente e socialmente o tipo do “morador-agregado” do “morador parceiro”. Para o autor, as expressões nativas de seu campo de pesquisa como “gente do coronel” e “mo- rador de fulano”, representam “situações históricas diferentes”, mas mantêm o “mesmo con- teúdo de dependência, calcado na relação com o proprietário de terra” (1992, p. 23). Assim, o termo “gente representa mais uma relação de parentesco do que de trabalho”, caracterizando o final do século XIX e o início do século XX. E o termo “morador já não contém a ideia de parentesco, mas, sim, de trabalho”, demarcando as relações identificadas por Barreira no ser- tão dos anos 1980 (1992, p. 23).