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O Silva chegou num cavalão

4. AGREGADOS E DONOS DE TERRA

4.3 A instituição da relação de morada

4.3.1 O Silva chegou num cavalão

A história a seguir foi contada durante oficina sobre “regularização fundiária” ofertada em maio de 2015 na Associação de Moradores e Pescadores da Pedra do Sal por um grupo de assessoria jurídica popular, este vinculado a Universidade Federal do Piauí, no âmbito da ex- tensão universitária do curso de Direito. O objetivo dos extensionistas era recolher depoimen- tos dos moradores do povoado para, assim, consubstanciar estratégias e documentos jurídicos na luta por território com os empreendimentos de energia eólica e de turismo instalados ou em vias de instalação em terras de uso comum87.

Naquele dia, o tema suscitou histórias sobre o antigamente, pois os extensionistas so- licitaram aos moradores que falassem sobre a “ocupação” do “território” da Pedra do Sal. Nesse contexto, surgiu a história sobre a chegada do Silva velho ao Labino, contada por An- tônio, um pescador e agricultor da Pedra do Sal.

de Carvalho Silva, este o patriarca dos Silva anteriormente apresentado ao leitor na parte Narrativas de fundação e documentos de povoação. Ao longo deste capítulo três será apresentado ao leitor o assim chamado Silva velho. 87 Segue uma breve “nota metodológica”. Essa oficina coincidiu com minha primeira viagem a Pedra do Sal e parecia funcionar como um grupo focal espontâneo, no qual moradores falavam sobre um mesmo tema, a regularização fundiária, tendo assim eu a possibilidade de conhecer pontos de vistas e observar como histórias de diferentes pessoas cruzavam-se, complementavam-se e tencionavam-se no próprio espaço de interação proporcionado pela oficina.

O Silva veio, o velho, isso há muitos anos atrás, o pai desse aqui [trata-se de Rai- mundo Severo, pai de Buchudo] conta essa história. Uma mulher como o nome de Benedita, morando aqui dentro, no Labino, como naqueles seis catavento acolá, mo-

rava muita gente pra acolá, então, ele, Tavares, chegou num cavalão lá um dia, uma

história verídica, a pessoa não tá mais viva, mais o pai desse aqui sabe da história. Aí ele chegou lá e disse assim:

- Cês num sabe me dizer de quem é essa terra?

E ele num cavalão. A mulherzinha já saiu fora com medo. Você sabe como era anti-

gamente.

- Não sinhô, nós num sabe não sinhô.

- Pois a partir de hoje você é meu agregado, essa terra é minha.

E ele saiu em casa e casa por aí. Nessas casa da pessoa humilde que não sabe nem o que é nada. [...] “Pois a partir de hoje você é meu agregado, essa terra é minha” [...] A pessoa não sabia, podia dizer, “Não, esse pedaço aqui é meu”, mas a pessoa, coi-

tada, né? Tudo foi fraqueza que se aproveitaram (Antônio, oficina sobre regulariza-

ção fundiária na Associação de Moradores e Pescadores, 23 de maio de 2015. Des- taques meus).

Nesse momento, atento para a construção da história por Antônio. O lugar descrito como onde morava muita gente é o Labino, povoado vizinho à Pedra do Sal na direção do continente, sendo demarcado o limite entre eles por uma mata de cajueiro88. Antônio não menciona ano nem mês para situar o descrito, mas isso não resulta em problema para a com- preensão do que se passa na história. O forasteiro sabe que trata-se sobre o passado porque o narrador afirma que é história que ocorreu “há muitos anos atrás”. Ele próprio, na faixa de seus cinquenta e poucos anos, não era nascido durante o que foi descrito e aprendeu a história porque a ouviu do pai de Buchudo, o que denota a circularidade das histórias, anteriormente mencionada, entre diferentes gerações de moradores da Pedra do Sal.

Outro ponto também que depreende da história contada de Antônio, é que a relação de morada foi estabelecida pelos Silva em diferentes povoados de Ilha Grande. A descrição da

chegada do Silva velho se passa no Labino e em outras histórias adiante apresentadas, a che- gada se passa na Pedra do Sal. Ir a cavalo aos povoados da Ilha não pode passar despercebido

do exame dessa história, pois foi uma maneira de Antônio posicionar o Silva velho numa de- terminada hierarquia e localizar os fatos no tempo. Cavalo na região só possuía quem era fa-

zendeiro ou doutor. O morador da ilha tinha a posse, em raros casos, de um jumento e o traje-

to que fazia da Pedra do Sal até a outra margem do Igaraçu, com o objetivo de vender alimen-

88 Certa vez, durante um passeio de moto com Maylla, filha de Norma, perguntei a ela onde terminava o Labino e começava a Pedra do Sal. Ela me respondeu que antes dos cajueiros era o Labino, depois deles era a Pedra do Sal. Cajueiros existem naquela porção da ilha e são utilizados pelos moradores há gerações. Assim, é uma referência ecológica, a mata de cajueiro, o que parece delimitar a transição espacial entre os povoados e não placas como é comum na cidade. Moradores do Labino vão à praia e as lagoas da Pedra do Sal pescar ou as matas de cajueiro colher. Há uma circulação de pessoas entre esses dois lugares, tanto por meio do trabalho envolvido nas práticas extrativistas como através de práticas matrimoniais, com casamentos entre pessoas dos dois povoados. Norma, uma das minhas interlocutoras durante esses anos de pesquisa, foi casado com um morador da Pedra do Sal. No período do trabalho de campo, ela estava divorciada, mas morava com sua filha, Maylla, na Pedra do Sal.

tos na cidade de Parnaíba, era feito a pé. Vir a cavalo para a Pedra do Sal era um meio de che- gar com mais rapidez ao local utilizado por determinado tipo de pessoa e expressava, assim, o seu status naquela ordem social89.

De fato, ao usar a palavra cavalo no aumentativo cavalão, Antônio não apenas chama a atenção do ouvinte para o animal posto em cena, como ressalta o valor social do equino no contexto de situação que descreve. Não é por acaso que a pessoa que aparece em seguida na história representando o morador da região, não é descrita apenas como uma mulher, mas uma mulherzinha. Opor o aumentativo cavalão ao diminutivo mulherzinha é uma forma retó- rica de demarcar o valor social do cavalo – e por extensão o status de seu dono – em relação a uma inferioridade social da mulher naquele contexto, que por extensão reflete também o lugar do morador na hierarquia social da relação de morada então estabelecida por João Silva.

Histórias sobre a chegada do Silva velho foram contadas por outros moradores e re-

gistradas por diferentes pesquisadores, como as abaixo apresentadas.

Quando o João Tavares Silva chegou aqui, o avô Vei Coringa dela (Dona Maria da Conceição) já morava aqui. Quando ele chegava aqui, vinha em um cavalo e amar- rava na budega que o Vei Coringa tinha e ia passear nas pedras. Ele vinha da Ilha Grande de Santa Isabel (Morador da Pedra do Sal, apud ROCHA et al, 2015, p. 9. Destaques meus).

[...] Meu pai antes me contava uma história desta família “X”, que quando chegaram aqui, [...] já existiam gente aqui. Ele dizia assim, meu filho quando o “Z” velho che- gou aqui, ele vinha multado no cavalo, chegava e amarrava o cavalo de baixo da la- tada do Coringa, que era uma bodega que tinha aqui. Aí ganhava a praia passeando, olhando as pedras e tudo, aí, daí por diante que foi que ele começou. Naquele tempo todo mundo era neutro não sabiam de nada e ele como já tinha terreno fora e tal, disse, vou ficar com esse terreno aqui, ai pegou escreveu [no sentido de registrar em cartório as terras], sabia de tudo, que até hoje em dia eles dizem que Pedra do Sal é deles, mas antes deles chegarem aqui já tinha gente aqui, morador e tudo. Foi uma coisa tal banal que eles querem toma até a praia, a praia é da marinha até tantos qui- lômetros, e vem vindo de lá pra cá até agora tá em confusão as terras (Morador da Pedra do Sal apud GALENO, s/d, p.05. Destaques e colchetes meus).

Nas três histórias aqui elencadas sobre a chegada do Silva velho aos povoados da ilha, a temporalidade do que é descrito é situada com o uso de palavras e expressões como antiga-

mente e naquele tempo, marcadores referentes ao passado como um tempo em que mulherzi- nha saia fora com medo de quem chegava de cavalão identificando-se como dono de terra,

um tempo em que todo mundo era neutro, não sabia de nada, pois não sabiam da importância de registrar as terras no próprio nome. O que situa algo no passado são as relações sociais

89 Para uma descrição da mobilidade das pessoas entre Ilha Grande de Santa Isabel e a cidade de Parnaíba, ver Oliveira (2017, p. 60).

entre o sinhô e a mulherzinha, o dono de terra e o agregado, o forte e o fraco, e não a refe- rência a uma data como forma de dividir o tempo, como já foi comentado.

O aqui, a Pedra do Sal, e o acolá, o povoado vizinho Labino, marcadores de lugar, são descrito pelos interlocutores como habitados antes da chegada do Silva velho: morava muita

gente pra acolá, diz Antônio na primeira história situada no Labino; o avô, Véi Curinga dela já morava aqui, diz o entrevistado por Rocha (2015, p. 09); já existiam gente aqui, morador e tudo lê-se no registro de Galeno (s/d, p. 05) sobre a Pedra do Sal.

O aqui e o acolá no antigamente, referências topográficas e temporais, são sempre lu- gares e um tempo habitados, não são “vazios demográficos”, e eram habitados por gente co- mo Benetida do Labino, pessoa que não tá mais viva, o Véi Coringa, avô de Dona Conceição, e o pai de Buchudo. Eram, assim, habitados por antigos moradores que, na maioria das vezes, eram antepassados dos atuais, como os termos avô e pai deixam antever. É pelos interlocuto- res perceberem o lugar e o passado como habitados por seus antepassados que a posse das terras da Ilha pelos Silva não goza de legitimidade entre os moradores.

A partir das histórias pode-se depreender o “ritual de passagem” daqueles que já mo-

radores (status valorado positivamente) nos povoados da ilha, tornaram-se agregados dos

Silva (status valorado negativamente) a partir da chegada do Silva velho ao lugar90.

Figura 19 - Ritual de passagem da condição de morador para a condição de agregado dos Silva

Fonte: Elaborada pelo autor

A Pedra do Sal apresenta-se como um “caso limite” para pensar a “relação de morada” no mundo rural nordestino. Isto porque, diferentemente dos casos brejeiro, canavieiro e serta- nejo, não foram pessoas “sem-terra” e “sem trabalho” que procuraram um proprietário para a ele “pedir” morada. Tudo se deu ao contrário, com a iniciativa constituinte da relação de mo-

90 Os ritos de passagem são também “ritos de instituição” de “status”, para isso, ver as interpretações acerca da dos “rites de passage” de Van Gennep (2013) em Bourdieu (1996, p. 82) e Gluckman (1962, p. 02-03).

rada partindo de um suposto proprietário que se dirigiu ao moradores. Foi o autonomeado “dono de terra” João Silva que ao se dirigir as pessoas que já moravam na ilha, instituiu que elas seriam seus agregados, pois a ele pertenciam aquelas terras em que moravam.

Quadro 2 - Comparação entre diferentes estabelecimentos de relações de morada

No Brejo paraibano, na Zona da Mata pernam- bucana e no Sertão cearense

Em Ilha Grande de Santa Isabel

Morador se dirige a um engenho de cana ou uma fazenda de gado e pede uma morada/trabalho ao proprietário.

Proprietário se dirige a povoados de pescado- res, declara-se dono de terras e nomeia aque- les que lá residiam como seus agregados.

Fonte: elaborado pelo autor, 2019.