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A morada no Brejo e na Zona da Mata

4. AGREGADOS E DONOS DE TERRA

4.2 A morada nas ciências sociais

4.2.1 A morada no Brejo e na Zona da Mata

O leitor pode lembrar da epígrafe que abre a parte Agregados e donos de terra desse texto. Trata-se de passagem do romance Menino de engenho escrito por José Lins do Rego (1901-1957), lançado em 1932. Valendo-se de suas memórias de infância, o que as situa na primeira década do século XX, aquele menino vindo de uma família de “senhores” produziu no citado romance cenas da vida nas lavouras canavieiras da Paraíba, local no qual a produção de cana de açúcar atravessou os séculos, assim como em estados nordestinos da assim chama- da “zona da mata”.

Naquele trecho foi descrito o avô do então menino Lins do Rego, o “velho” José Pau- lino. Este gostava de percorrer as “terras do engenho”, sua “propriedade”, para ver de perto os seus “moradores”. Paulino foi retratado pelo neto como “senhor dos seus campos”, “patri- arca”, alguém que dava os seus “gritos de chefe” aos moradores, mas também ouvia as “quei- xas” e as “precisões” destes (o “seu povo”). Nessas linhas selecionadas do romance, é indica- da, desde o ponto de vista de um descendente de senhor de engenho que também é um roman- cista crítico, um traço importante da hierarquia social nas lavouras de cana da Paraíba do iní- cio do século XX.

As pessoas do “dono de engenho” e do “morador” animaram uma relação social que foi a base para o que a literatura de ciências sociais convencionou chamar de “sistema de mo- rada” (VERÇOZA, 2018) atuante ao longo do tempo no Nordeste rural brasileiro e bastante estudado nas regiões do Brejo paraibano e da Zona da Mata pernambucana79. Se o dono de engenho é este proprietário evocado no texto de Rego, quem são esses “moradores”, esse “povo” de um “patriarca”? Em estudo realizado na região canavieira do Brejo da Paraíba,

79 A pesquisa de Garcia (1988), assim como outros importantes estudos como Heredia (1988), foram realizados no quadro do projeto Emprego e Mudança Sócio-Econômica no Nordeste, coordenado por Moacir Palmeira. Para uma resenha destas pesquisas, consultar Pesquisas em ação: apontamentos metodológicos a partir do projeto Emprego e mudança socioeconômica no Nordeste (1975-1977), de autoria de Lucas Correia Carvalho.

Garcia (1988) traz uma descrição da pessoa do “morador” na hierarquia e no funcionamento do sistema de morada.

Ser morador ou tornar-se morador significava se ligar ao senhor do domínio de uma maneira muito específica, numa relação que supunha residência e trabalho simulta- neamente. A ênfase na residência que o termo morar revela, tem um forte significa- do simbólico. Quem se apresentava ao senhor de engenho não pedia trabalho, pedia uma morada. Entre as obrigações que a morada acarretava, havia forçosamente o trabalho para o dono do domínio, mas esta não era a questão básica: é o que distin- guia o morador de um pequeno proprietário das vizinhanças que podia vir pedir apenas se havia trabalho no engenho. Ao pedir morada, quem o fazia já demonstrava não ter outra escolha melhor, que não tinha para onde ir: não tendo meios de organi- zar sua existência social , vinha pedir ao senhor que os fornecesse, ou menos que a organizasse para si. Caíam assim sob a estreita dependência do senhor, à diferença dos pequenos proprietários que, mesmo mostrando que não tinham meios suficientes para viverem sem trabalhar para outrem, podiam discutir sobre a remuneração do trabalho e dispunham de habitação própria (mesmo se dormissem no domínio duran- te o desenrolar dos trabalhos). (GARCIA, 1988, p. 09. Destaques no original).

O “morador” era aquele que se “ligava” ao “senhor” numa relação que supunha “resi- dência” e “trabalho” nas terras do dono de engenho. O trecho selecionado expressa a hierar- quia social daquele universo na qual o morador estava estreitamente “dependente” do senhor se comparado ao “pequeno proprietário”. Se o vínculo deste com o senhor era através do tra- balho pago com uma remuneração, na qual existia até uma margem social para se discutir o valor de tal pagamento, o vínculo do morador não proporcionava essa possibilidade de nego- ciação porque uma das “obrigações” da morada era forçosamente o “trabalho para o dono do domínio”.

Morar nas terras de um senhor de engenho significava, assim, retribuir a morada com trabalho não remunerado80. Tal situação, atestava que aquele que vinha pedir uma morada não possuía os “meios de organizar sua existência social”, e por isso “vinha pedir ao senhor que os fornecesse, ou menos que a organizasse para si” (GARCIA, 1988, p. 09). Com o surgimen- to das usinas por volta dos anos 1930, os engenhos iniciaram um processo de deixar de moer a cana para a fabricação do açúcar e tornaram-se engenhos de “fogo morto”, servindo apenas para vender a matéria-prima às usinas. Diferente do senhor de engenho, cuja a “casa situava- se ao lado da moenda e ali estava toda a sua família”, o usineiro gastava a maior parte de seu tempo e alocava sua família na cidade. Tal distanciamento do usineiro proporcionava novos contornos ao controle da propriedade, dos funcionários e da produção (DUARTE, 2012). O

80 Dom, dívida e contrato, essas são palavras pelas quais os cientistas sociais enquadraram as relações entre moradores e proprietários e será esse vocabulário sociológico mobilizado adiante para se pensar a relação de morada na praia a partir das trocas.

sistema de morada continuou atuante durante essas mudanças do “engenho” para a “usina” ocorridas na “região açucareira do Nordeste” (PALMEIRA, 1977).

Morar significa ligar-se a um engenho e ligar-se de uma maneira muito particular. Nada é mais comum do que um trabalhador corrigir uma utilização imprecisa por parte do pesquisador dos termos morar, morada, morador. Morar está sempre associ- ado a engenho, mesmo quando se trata da propriedade de uma usina. Um trabalhador corrigirá quase sempre a pergunta “o senhor trabalha em que engenho?” com a res- posta [...] “eu moro no engenho X”. Se se trata de um morador de engenho de usina, ele dirá que trabalha “para a empresa”, mas que mora “no engenho X”. Ninguém é morador de usina ou trabalhador de engenho. Por outro lado, não existe morador em geral, mas apenas morador de tal ou qual engenho (PALMEIRA, 1977, p. 204. Des- taques no original).

Atento agora para uma espécie de “compromisso moral” estabelecido a partir das tro- cas entre moradores e donos de engenho. Como pontuou Heredia (1988, p. 118) em relação ao sistema de morada em Alagoas, “o simples fato de ser o próprio trabalhador quem pedia casa de morada fazia com que, no próprio ato de ser constituído morador, contraísse uma dívida moral, um reconhecimento para com o senhor de engenho que lhe concedia [...] casa e traba- lho”. Para o caso da plantation pernambucana, Sigaud comenta que “quando José Mariano [um interlocutor de pesquisa] recebeu a ‘casa de morada’ em Veneza [um engenho], contraiu obrigações em relação a seu patrão: deveria trabalhar nos canaviais, mediante uma remunera- ção, ser leal ao seu patrão e não servir a nenhum outro (2007, p. 129)81.

A “dívida moral”, destacada por Heredia, e a “lealdade ao patrão”, comentada por Si- gaud, podia assumir a forma de uma “relação de dívida permanente” com o proprietário, se- gundo os termos de Moacir Palmeira.

O tipo de contrato que vinculava, no passado, entre o morador e o proprietário da terra era muito mais que um simples contrato de trabalho. O que o trabalhador po- tencial procurava num engenho ou numa fazenda era uma casa de morada e isso é que lhe permitia trabalhar para o patrão, em troca de alguns dias de trabalho gratuito semanal ou pagos a um valor inferior aos demais, ou ter acesso a uma pequena ex- tensão de terra para cultivo próprio, mediante o pagamento de uma quantia fixa em dinheiro e alguns dias de trabalho gratuito anuais. Era a morada que assegurava também ao trabalhador acesso à água, à lenha e, eventualmente, à madeira e aos pas- tos da propriedade e o inseria numa relação de dívida permanente com o proprietário (1989, p. 89).

Para Heredia, “a concessão do senhor de engenho e o reconhecimento a que se obriga- va o morador que a recebia constituíam partes de um único sistema de dominação” (1988, p. 119). Para Garcia, “graças à prática de dons” dos “senhores” se instauravam “dívidas morais”, na qual este “ligava indivíduos a si numa relação de submissão” (1988, p. 11). Para Sigaud

81 Dessa forma, o sistema de morada congregava em seu funcionamento complexas relações de produção e de dominação, desde a relação propriamente capitalista entre patrão e assalariado (senhor/trabalhador) até relações não capitalistas baseada em dependência pessoal, mediada por vínculo não monetário (senhor/morador).

sem que fosse necessário consagrar as regras no papel, “proprietários e moradores, ao estabe- lecerem o ‘contrato’ de morada, tinham internalizadas as regras de uma relação assimétrica que tornava o morador mais um bem do proprietário” (1979, p. 34). O despossuído de traba- lho e terra era, assim, um candidato a ingressante na posição social inferior da hierarquia do sistema de morada, aquela posição na qual a dependência de casa e trabalho ofertada pelo dono de engenho, o colocava em “relação de dívida permanente com o proprietário”82.