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4. AGREGADOS E DONOS DE TERRA

4.3 A instituição da relação de morada

4.3.2 O agregado

Aqui cabe uma reflexão sobre a categoria de agregado como um tipo particular de pessoa pertencente ao mundo das fazendas. Na história contada por Antônio, o termo tem seu uso atribuído a João Silva no momento de instituição da relação de morada e funcionou no contexto daquela história como uma forma de classificar aqueles que habitavam a ilha, locali- zando-os na hierarquia da fazenda como os que moram na terra de outrem. A palavra possui sua temporalidade e refere-se a um complexo particular de relações sociais no mundo rural brasileiro.

Ao realizar uma discussão sobre “as origens sociais do campesinato tradicional”, José de Souza Martins (1995) identificou o uso da categoria “agregado” no início do século XIX em São Paulo. No contexto de sua discussão, o autor diferenciava as formas assumidas pelo campesinato brasileiro ao longo da história e fez um distinção entre o “escravo” e o “agrega- do” a partir das relações de cada qual com o fazendeiro. Uma distinção não só econômica, mas vamos dizer, assim, ontológica.

Para Martins, o “código” que “regulava” as relações do fazendeiro com o escravo era diferente do que regulava as relações com o agregado. A relação fazendeiro/escravo era uma “relação de dominação, da pessoa sobre a coisa que era o escravo, cuja humanidade a relação escravista não reconhecia”. Já a relação fazendeiro/agregado “era essencialmente uma relação de troca – troca de serviços e produtos por favores, troca direta de coisas desiguais, controlada através de um complicado balanço de favores prestados e favores recebidos (1995, p. 35).

No plano econômico do regime escravista, destaca Martins, ao agregado “cabiam fun- ções ao mesmo tempo complementares e essenciais numa economia baseada no trabalho es- cravo”. Durante o século XIX nas fazendas de café de São Paulo e Rio de Janeiro, “o agrega- do foi empregado na abertura de novas fazendas, na derrubada da mata, no preparo da terra”. Embora agregados tivessem “feito posses em nome dos fazendeiros”, a Lei de Terras de 1850 “não se refere expressamente à situação dos agregados nem os trata como posseiros”. Nos engenhos da Zona da Mata, a importância do agregado “foi na produção de gêneros alimentí- cios”. Por fim, Martins compreende que “a morada de favor envolve uma relação de troca que inclui e ultrapassa o trabalho e as relações de trabalho, já que a concepção de favor, como prestação pessoal, mas recíproca, envolve não apenas a produção material, mas a própria leal- dade das partes” (1995, p. 35-39).

Barreira (1992) distingue histórica e sociologicamente a relação “morador-parceiro” da relação “morador-agregado”. Tendo por base o caso das fazendas de gado e algodão do sertão cearense, o autor sugere que a primeira relação remete ao “trabalho” e a segunda reme- te ao “parentesco”. Na sociabilidade sertaneja presente no registro de Barreira, o morador- agregado era partícipe em vínculos pessoais e íntimos com o “coronel” do final do século XIX e começo do século XX, vínculos estes condensados na expressão nativa “gente do coronel”, com destaque para o substantivo “gente”. Já o morador-parceiro estaria numa relação menos pessoalizada e direcionada para um “contrato” de trabalho, mesmo que verbal, entre o “fazen- deiro” e o “parceiro” do início do século XX.

Tanto Martins (1995) como Barreira (1992), apesar de refletirem sobre a pessoa do agregado a partir de diferentes contextos rurais, concordam que a relação de agregação nas sociedades que estudaram era baseada na construção de um vínculo com o proprietário de terras a partir de trocas que não se reduziam as trocas de trabalho por terra. Para além dos contextos particulares das fazendas paulistas e cearenses, a “agregação” foi uma instituição presente em diversas regiões do rural brasileiro até meados do século XX.

Agregação, agrego ou moradia de favor – a denominação variou ao longo do tempo e das regiões – foi uma instituição corriqueira na sociedade brasileira até meados do

século XX, tão frequente quanto o posseamento de terras, o concubinato e o mando-

nismo. Era uma relação subordinada, doméstica, hereditária e generalizada, basea- da em reciprocidades que uniam protetor e protegido. Existem referências a agrega- dos aos grandes domínios do Sudeste, aos engenhos do Nordeste e às famílias que emigraram da Bahia nas secas de 1890. A literatura registrou sua presença, compon- do a base social dos engenhos descritos por José Lins do Rego e povoando o rural narrado por João Guimarães Rosa (…). Na sociedade rural a instituição foi baseada em dependência pessoal, mobilidade espacial, acesso quase sem restrições à terra e produção independente (RIBEIRO, 2010, p. 393).

Uma consulta a jornais, atesta o uso do termo “agregado” na imprensa piauiense entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX (1868-1928). Agrega- do aparece nesse lastro temporal de sessenta anos em acontecimentos sobre o desrespeito ao “direito de propriedade”, sobre atos violentos cometidos por agregados a mando de proprietá- rios ou destes defendendo seus agregados91. No caso particular de Ilha Grande de Santa Isa- bel, pôde-se rastrear o uso do termo até 1901 em anúncio publicado pelo coronel Jonas Cor- reia (1874-1915) sobre o “Sítio Sipoal”, no jornal parnaibano Nortista.

A pedido Terras do Sipoal

Sendo nos os unicos e exclusivos proprierários da grande e antiquisssima posse de terras denomianada “Sitio Sipoal” na Ilha Grande de S Isabel, deste municipio, e tendo nella grande numero de aggregados, fizemos publico que perderá o direito a quaesquer bemfeitorias feitas em dita posse de terras por qualquer dos referidos aggregados, todo aquelle que as comprar sem o nosso consentimento.

Parnahyba, 15 de julho de 1901.

Jonas Correia & C. (Nortista, Parnaíba-PI, 03/0/1901, p. 04).

Além de proprietário da “grande e antiquisssima posse de terras” Sítio Sipoal, o coro- nel Jonas Moraes Correia foi deputado estadual (1912-1916) e pertenceu a uma família da elite do litoral piauiense. Duas irmãs de João Silva, Esmerinda e Angélica Tavares Silva (PASSOS, 1982, p. 98), contraíram matrimônio com irmãos do dito coronel. Por ocasião do centenário do filho de João Silva que herdou seu nome, o médico e ex-prefeito de Parnaíba João Silva Filho (1910-1996), foi publicada uma brochura com depoimentos de parentes e amigos deste. De tal brochura foi retirada a seguinte passagem que aborda o mundo das “Fa- zendas Paraíso”. Este uso do plural pode bem remeter o leitor a imagem dos “fazendões de fazenda” evocada por Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas (1994, p. 03), e funciona no texto abaixo como uma forma de estabelecer a grandeza dos domínios dos Silva em Ilha Grande.

A Ilha Grande de Santa Isabel foi o berço e testemunho da grande personalidade que foi João Silva Filho. Na época em que nasceu nosso personagem, a família Silva

possuía desde o século XIX um complexo de propriedades rurais chamadas Fazen- das Paraíso, na Ilha Grande. A família sempre foi caracterizada pela união, pois a mãe de Dr. João Silva (trata-se de Evangelina Rosa e Silva, falecida em 1943) era

uma mulher empreendedora que deixou impressa nos filhos elementos de solidez, tí- picos de um caráter forte resultante do seu dom de matriarca. Assim como a figura patriarcal de João Tavares da Silva, o pai. Esse núcleo familiar agregador foi fun- 91 A Imprensa, Teresina-PI, 17/10//1868, p. 04. Mensagem lida, a 1º de junho de 1928, perante a Camara Legislativa do Estado do Piauhy, pelo Governador Exm. Snr. Dr. Mathias Olympio de Mello. Teresina: Imprensa Official, 1928.

damental na formação do futuro médico. Diz-se que sua avó [trata-se de Geracinda Tavares Silva (~1842-1912)] chamava toda a fazenda (agregados e funcionários), imbuída de sentimento cristão, para rezar o terço católico no fim da tarde. Tudo nes- se cenário marcou a vida de João Silva Filho. (SOUZA, 2010, p. 15 [Destaques e pa- rênteses meus]).

No trecho é descrito um pouco da vida no “complexo de propriedades rurais chamadas Fazendas Paraíso”. A produção de vínculos entre proprietário, agregado e funcionário pode ser percebida na reza do terço católico por “toda a fazenda”. Tal prática ressalta o vínculo pessoalizado estabelecido pela primeira geração dos Silva com seus agregados. Seguindo a divisão proposta por Barreira (1992), para o caso do sertão, entre morador-agregado e mora- dor-parceiro, o trecho acima indica que o “agregado ilhéu” estava, assim como o “agregado sertanejo”, vinculado ao proprietário por relações que remetiam mais a ideia de parentesco do que a uma relação apenas de trabalho.

No registro de Barreira, o agregado está localizado temporalmente entre a segunda me- tade do século XIX e meados do século XX, quando o proprietário era o coronel. Se leva-se em consideração o fato de que a mãe do Silva velho, Geracinda Silva, faleceu em 1912, con- sidero que a temporalidade do agregado ilhéu e do sertanejo são próximas. Assim, o Silva velho, filho de um “proprietário e fazendeiro”, como Claro Silva, fora também cunhado de proprietários como os Moraes Correia. Tendo sido socializado entre donos de terra, e incorpo- rado o “habitus” do proprietário, pode-se aventar que ao nomear como agregado quem já ha- bitava a Pedra do Sal e povoados da ilha anteriormente a sua chegada, João Silva estava evo- cando o mundo das fazendas de gado e atualizando as relações daquele universo com os habi- tantes da ilha através de um vocabulário que remetia à relações de agregação92.

No ano de 1941, João Tavares de Carvalho e Silva, solicitou junto ao então Serviço Regional do Domínio da União o aforamento de diversas glebas em Ilha Grande de Santa Isa- bel, referente a “taxas de ocupação” pagas por ele entre 1921 e 1941. A área aforada totaliza- va 168km², mais da metade do território da ilha. O pedido demandou um estudo técnico tão vasto que foi concluído somente dez anos depois, quando já fazia oito anos do falecimento de João Silva. Em 1954, o pedido de aforamento foi negado, pois não havia naquele período de- marcação da Linha do Preamar Média (LPM) da Ilha, utilizada pelo governo para delimitar os terrenos de marinha, que são bens da União (BRASIL, s/d, p. 01)93.

92 Pode-se indicar a instituição da relação de morada na Pedra do Sal e povoados vizinhos como em torno de meados do século XX, pois as histórias contadas pelos interlocutores referem-se a seus antepassados que nasceram entre o final do século XIX e início do século XX. Não encontrei entre as histórias de morador referência a Claro Silva. O Silva mais velho citado nas histórias que pude conhecer é João Tavares da Silva, falecido em 1941.

Naquele pedido de aforamento não reconhecido pelo Serviço Regional do Domínio da União, João Silva afirmava que adquiriu:

[...] em épocas diferentes, várias posses de terra, formando uma só constituindo os logares denominados Lagoa Seca, Lontras, Guaribas, Barro Vermelho, Comprida, Canto do Igarapé, Santo Isidoro, Baixão dos Morros, Canabrava, Casa Velha, Cotia, Lagoa Grande, Pedra do Sal, Cabeceiras, São Roque, Curicacas, Salgados Novo e Velho, Cantinho, Carnaúba Torta, Sorocaba, Baixão, Tatúpeba, Bom Jesus, Salinas, Caracará, Fazendinha, Santa Clara e Paraíso, da Ilha Grande de Santa Isabel, medin- do [...], do perímetro 168.202.807,00m² de área, zona rural, de Parnaíba, conforme processo nr. 1.068/41” (Serviço Regional do Domínio da União, Requerimento 1.068/41, 08/07/1941).

Algumas dessas “posses de terra” como Santa Clara, Cotia e Paraíso foram fazendas do pai de João Silva, o maranhense Claro Ferreira de Carvalho Silva falecido em 1885. Con- tudo, o documento de 1941 indica a tentativa de João Silva em legitimar perante os órgãos responsáveis pelo ordenamento fundiário à época, uma ampla posse de terras em Ilha Grande de Santa Isabel, incluindo lugares que estão documentados como habitados desde o século XIX, como Pedra do Sal, Cotia e Fazendinha94. Foi somente no ano de 1989, que os filhos do Silva velho conseguiram o aforamento daquelas terras de Ilha Grande junto a Divisão de Co- ordenação e Contratos do Serviço do Patrimônio da União (BRASIL, s/d, p. 01).

Apesar de conseguirem o reconhecimento do Estado como foreiros apenas as vésperas da década de 1990, isso não impediu que por três gerações, os Silva conseguissem se fazer reconhecidos, ainda que com desconfiança pelos moradores, como donos de terra em Ilha Grande. Tais informações revelam que a relação de morada estabelecida por João Silva com quem habitava o lugar anteriormente a sua chegada, ocorreu à revelia do reconhecimento le- gal do Silva velho pelos órgãos responsáveis pelo ordenamento fundiário da Ilha. Nesse senti- do, a relação de morada valeu-se mais de atos contínuos dos Silva de se fazerem reconhecidos como os donos das terras da Ilha, como será abordado adiante, do que por prerrogativas legais derivadas do direito de propriedade.