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Ser um dos nossos: micropolíticas da patronagem

4. AGREGADOS E DONOS DE TERRA

4.4. O funcionamento da relação de morada

4.4.3 Ser um dos nossos: micropolíticas da patronagem

Para o cientista político Ricardo Neto et al (2017, p. 85), os conceitos de patronagem e clientelismo são “reconhecidamente imprecisos”. Eles são utilizado por sociólogos, antropó- logos e cientistas políticas em diferentes “escalas”. Os dois primeiros, centraram-se em estu- dos de caso em “sociedades tradicionais” e estavam, segundo o autor, “preocupados com o

carácter subjetivo e afetivo das relações de mando”. Todavia, os cientistas políticos tinham por objetivo compreender como estas “relações micropolíticas” impactavam o sistema políti- co na dimensão das instituições estatais das “sociedades complexas”. Apesar das diferenças, o autor afirma que o “núcleo duro” daqueles conceitos estaria na “desigualdade de relações so- ciopolíticas onde o acesso a recursos desejados se materializa na existência de patronos e cli- entelas e que estas relações possuem estabilidade temporal”.

Estando fora de meu alcance e pretensão a uma análise desses “impactos” no “sistema político nacional” a partir de um estudo concentrado num povoado ilhéu, me contento por seguir o caminho trilhado pela análise das “relações micropolíticas” da patronagem, as quais me aproprio para a estudar as interações entre os moradores e os Silva101. Afinal, não se trata de abordar as relações de patronagem em si, mas em que medida a literatura sobre a patrona- gem pode ajudar na compreensão de uma relação de morada na qual circulava mais do que

pedidos e concessões de terrenos, mas também lealdade eleitoral ao dono de terras102.

Para Richard Seller (SELLER apud NETO, 2017, p. 85-86), o conceito de patronagem possui três características: a primeira delas é que “envolve trocas recíprocas de bens e servi- ços”. A segunda é que se baseia numa relação “pessoal e com longa duração”, o que a dife- rencia de uma “transação comercial no mercado”. E a terceira e última característica é que deve ser uma relação assimétrica, “no sentido de que as duas partes são de status desigual e oferecem diferentes tipos de bens e serviços na troca”, o que define também a “patronagem como diferente de uma amizade entre iguais”.

Marcos Lanna (2004, p. 275) comenta que as análises da patronagem referentes ao mundo latino e ao mediterrâneo europeu “frequentemente adota[ra]m uma perspectiva ins- trumental e operacional”. Nessas análises, a patronagem era “vista [...] como um fenômeno de certo modo instável” mantido por “trocas recíprocas de trabalho por favores, proteção, crédi- to, uso da terra”.

Eric Wolf (2011, p. 25) destaca o “elemento de poder” como “mascarado por recipro- cidades” na relação de patronagem. Para o autor, o “cliente” em um processo político, “não só promete seu voto ou braço forte, como também promete - com efeito - não se dedicar a outro patrono além daquele que lhe forneceu bens e crédito. O cliente é obrigado a não apenas ma- nifestar lealdade, mas, também a demonstrar essa lealdade”. Assim, tal cliente, ao não mani-

101 Para uma análise da patronagem através da articulação do nível local das comunidades rurais com o nível nacional da sociedade brasileira, consultar o artigo de Sidney M. Greenfield, Patronage, politics, and the articulation of local community and national society in pre-1968 Brazil. Journal of Interamerican Studies and World Affairs. Vol. 19, No. 2, May, 1977, pp. 139-172.

102 Ao leitor interessado nos debates em torno da patronagem pode consultar a coletânea de artigos chamada O que são patronagem e clientelismo (NETO et al, 2017), assim como a literatura sobre o tema citada adiante.

festar apoio a outro patrono, “se torna membro de uma facção que serve aos propósitos com- petitivos de um líder”.

Os comentários sobre a patronagem destacam que ela é uma relação eminentemente de “troca” entre um “patrão” e um “cliente”, que conforma o que Scott (1972) nomeou de “pa-

tron-client model of association”. Contudo, uma troca entre “partes de status desigual”, o que

a torna uma troca “assimétrica” assimétrica ou, ainda, uma “reciprocidade desequilibrada”, como enquadra Caniello (1990), na qual se cambiam “diferentes tipos de bens e serviços” como o acesso à terra ofertado pelo patrão ao cliente em troca de sua lealdade política. Isso torna a relação de patronagem por um lado diferente da “amizade entre iguais”, mas também de uma “transação comercial no mercado”, pois não envolve a monetarização dessas trocas. No interior de um processo político englobado pela relação de patronagem, o “cliente” de um “patrono” tem a “obrigação” de demostrar lealdade ao “líder” da “facção” ao qual se tornou membro e, como citado anteriormente, o voto é recorrentemente a expressão de um compro- misso.

Barreira (1992. p 25) afirma que o voto do camponês no “candidato do patrão” funcio- nou como um “bem de troca” pelo acesso a morada ou ao trabalho, sendo desnecessário, nes- tes termos, a “compra do voto” pelo proprietário, pois o voto não era utilizado pelo camponês do sertão cearense para auferir ganhos monetários, mas como uma forma de retribuição ao fazendeiro pelo uso da terra. Lanna (2009, p. 09) destaca que a patronagem, ainda que seja uma “forma de exploração político-econômica que pressupõe a dominação de classe”, difere “da exploração capitalista”.

A “compra de voto” no sertão só se tornou uma prática recorrente quando se alteraram as relações de trabalho, que “conferiram ao camponês maior independência em relação ao proprietário”, “cortando”, assim, “seus vínculos pessoais com o patrão” (BARREIRA, 1992, p. 25-30). Nesse sentido, quanto mais destacados eram os “vínculos pessoais” do morador com o proprietário, menos o voto possuía uma qualidade monetária, quanto mais impessoal passou a ser a relação do camponês com o proprietário, a partir do momento em que o acesso à terra não era mais mediado pelo proprietário, o voto do camponês tinha a possibilidade de ser utilizado visando a troca monetária103.

103 Sobre o que poderíamos chamar de um processo de monetarização do voto, assim como Barreira sobre sua origem no sertão: “Na origem, a ‘compra do voto’ está ligada ao surgimento dos ‘cabos eleitorais profissionais’, pessoas que trabalham nos pequenos povoados do interior, ‘prestando serviço’ ao eleitor em troca de benefícios ou mesmo salário recebido de um político. A ‘compra do voto’ está ligada, também, a alterações nas relações de trabalho, que conferem ao camponês maior independência em relação ao proprietário. A institucionalização da compra do voto no sertão se dá na medida em que cresce a população residente fora das fazendas e, no seu interior, os moradores residentes começam a perder ou a cortar seus vínculos pessoais com o patrão” (1992, p.

Foi Ribamar que me atentou para o envolvimento do acesso a morada com o mundo da política, quando destacou que ser um dos nossos, significava votar nos políticos da família Silva para postos de governo. De fato, os Silva possuem uma relação de longa duração com a política piauiense. Além de Herbert Silva, Alberto Silva, filho do Silva velho, foi deputado, governador e senador pelo Piauí (TAVARES, 2018).

Eles ganhavam o voto do pescador, dos moradores dele só em cima do poder das

terras em que a gente morava. Quando ele [Herbert Silva] subia no palanque, tinha

os comícios: “Povo da Ilha Grande, isso não é nosso, é de vocês. Tem o peixe”. Ti- nha os peixes nas lagoas, eles não mexiam nada, tirava palha, não mexiam, nada! Aí com isso ele ganhava o teu voto. Não tinha outro pra ganhar deles não. Era só a gen- te votando pra eles porque era ameaçado, tinha medo de perder a morada (Entrevis- ta com Ribamar em sua casa, 03 de setembro de 2016).

Esse fragmento da entrevista com Ribamar revela algo importante sobre os usos do território da Ilha pelo morador durante o período de vigência da relação de morada. Nesse período, não havia interdições a práticas extrativistas em lagoas e carnaubais. Os Silva não

mexiam, no sentido de proibir ou inibir a pesca e a extração de palha pelo morador, nem era

necessário pagar uma renda, como pagava o roceiro. Contudo, o acesso sem restrições a ma- tas e lagoas, concedido pelos Silva, era retribuído pelo morador com o voto nos candidatos daquela família.

No contexto da Pedra do Sal, o voto possuía essa qualidade de uma retribuição para a permanência na terra, visto que o medo de perder a morada, como pontuou Ribamar, era o “leitmotiv” da lealdade eleitoral aos Silva. Nesse sentido, a adesão a facção política do dono de terras nos pleitos eleitorais não era uma maneira de obter algum ganho monetário, mas uma estratégia de manutenção da morada nas terras dos Silva, condição para a existência so- cial daquelas pessoas enquanto população extrativista.

Apesar de são possuir ganhos monetários, essa relação trazia ganhos de outras ordens. Nesse circuito de trocas no qual circulavam terra e lealdade, os Silva garantiam um percentual de votos a cada eleição em que sua facção se envolvia. Os moradores garantiam a permanên- cia na morada num contexto de escassez de terras e o acesso ao mar, matas e lagoas que a localização da casa na praia proporcionava. Nessa relação, as partes auferiam “ganhos”, ainda que não os mesmos ganhos e sempre segundo o arbítrio do dono de terras, o que, de toda for- ma, justificava a permanência desse circuito de trocas.

O que estava em jogo, ao que parece, com a perda da morada, caso não se ofertasse os votos aos Silva, não era apenas o terreno onde estava a casa, mas a perda do acesso a matas e

lagoas. Visto que ao fixar-se na Pedra do Sal, a pessoa estaria próxima a essas fontes de recur- sos da natureza. Assim, a perda da morada não era apenas a perda do terreno (casa, sítio, cer- cado), era também a perda do acesso à terra, no sentido atribuído pelos moradores a essa ca- tegoria como englobando matas, mangues e lagoas.

O uso do território ilhéu, sem o mexer dos Silva nas práticas extrativistas do morador, era possível na medida em que esse mesmo morador permanecia um dos nossos, isso quer dizer, mantinha lealdade a facção política da família com a oferta do voto. Assim, o voto pas- sou a ser uma condição para a permanência na morada. Ao que tudo indica, esse arranjo entre morada e lealdade eleitoral aos Silva passou a funcionar a partir da terceira geração dessa fa- mília, representada por políticos como João Silva Filho e Alberto Tavares Silva, que a partir de 1948 passaram a ocupar postos políticos como prefeito, deputado e senador. Nesse sentido, o circuito de trocas entre os habitantes da Ilha e os Silva não produziram apenas moradores e

donos de terra, mas também eleitores e eleitos, imbricando a propriedade da terra com o

mundo da política.

Se por um lado, durante a vigência da relação de morada na Pedra do Sal, o acesso as lagoas e as matas de caju e carnaubais eram assegurados ao morador desde que mantida a le- aldade política aos Silva, que não mexiam com o pescador da praia, por outro, existiram de- terminadas regras estipuladas pelos donos de terra que regulavam os usos possíveis da mora- da. As situações descritas pelos interlocutores sobre a quebra dessas regras tinha como con- sequência a “punição” ao transgressor e revelam as permissões e proibições no ordenamento da relação de morada.