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Tropas, rezes e navegadores (1762-1808)

3. POVOAMENTO E FUNDAÇÃO

3.2 Povoamento de Ilha Grande

3.2.3 Tropas, rezes e navegadores (1762-1808)

No norte da capitania do Piauí, por volta de 1780, Luís Carlos de Abreu Bacelar, “o temido”, e João do Rego Castello Branco, “o matador de índios”, filho do sesmeiro Rêgo Bar- ros, foram personificações do fazendeiro como “potentado senhor”. Forjados na “experiência guerreira” contra o índio, constituíram-se no “chefe autoritário de seu clã familiar e de seus agregados”, sempre vinculados a uma oligarquia por laços de parentesco e interesses comuns. No início da colonização, o povoadores assemelhavam-se a uma espécie de “sociedade de combatentes” (MAVIGNIER, 2017, p. 142; MEDEIROS, 1996, p. 20; FILHO, 1982, p. 40).

Trinta e sete anos após ser concedida a “carta de data e sesmaria” a Rêgo Barros, o primeiro governador do Piauí João Pereira Caldas lidava com questões diferentes das do go- vernador Maya da Gama. Se no período de Gama tratava-se de colonizar a terra através da guerra ao Tremembé, na época de Caldas a guerra era contra “Castela e França”. Foi nesse novo contexto do colonialismo português que o governador João Caldas enviou instruções para o tenente-coronel João do Rêgo Castello Branco para a “defesa das barras do Rio Parnaí- ba” por ocasião da declaração de guerra de França e Castela a Portugal. O ano era 1762 e tal medida de defesa do litoral da capitania ocorreu durante a chamada Guerra Fantástica (1762- 1763) entre Portugal e Grã-Bretanha contra Espanha e França no contexto da Guerra dos Sete Anos (1756-1763).

As barras dos rios Parnaíba e Igaraçu eram consideradas as “mais expostas” a “inva- são” estrangeira e por isso lugares “dignos de maior vigilância”. A coroa portuguesa tinha interesses comerciais e militares em relação ao Delta do Parnaíba e, assim, Caldas enviou para Castello Branco instruções para formar um “Corpo de Tropas de Cavalaria Auxiliar e de Or- denança” para a defesa do litoral piauiense. O percurso das tropas iniciou-se em Parnaíba em direção a Campo Maior, onde foram agregados soldados e oficiais. Em seguida, dirigiram-se para Piracuruca, onde mais pessoas se uniram as tropas que voltaram a Parnaíba (FREIRE, 2016, p. 68).

As instruções do governador diziam que o “destacamento” de pessoas vindas dessas localidades deveriam estabelecer-se nas “praias que ficam na ponta da Ilha, que jaz entre as duas sobreditas barras [Igaraçu e Parnaíba]” (FREIRE, p. 68-70, 2016), o que corresponde a localização geográfica de Ilha Grande de Santa Isabel. O documento prosseguiu com detalha-

sertões nordestinos. Da segunda metade do século XVII até o final do século XIX, o Piauí viveu essa ‘civilização do couro’” (1996, p. 20).

das instruções militares e descreveu uma “abundância” de peixes e mariscos no litoral de Ilha Grande, no qual também se encontravam “rezes”.

Eu me persuado que a gente que com vmc. marcha, se poderá muito bem sustentar com a abundância de peixe e marisco que há na situação, em que vmc. se vai estabe- lecer. Porém se assim não suceder e desta forma não puder sempre subsistir a mesma gente: Irá vmc. tomando por conta da Real Fazenda as rezes que ao dito fim se fize- rem precisas, e poderão elas ser das que pertencendo aos herdeiros de José de Abreu Bacelar, se acham naquela ilha sequestradas pela mesma Real Fazenda. (FREITAS, 2016, p. 71)36.

A segunda metade do século XVIII e a primeira do século XIX foi marcado por “signi- ficativas mudanças” no plano fundiário e econômico do Piauí com a “descentralização da propriedade de terras e a fragmentação de propriedades entre herdeiros” e o “processo de ex- pansão do criatório [que] levou gradativamente ao deslocamento da zona de ocupação dos vales dos rios do sul para o norte do território piauiense”. Tais mudanças possibilitaram a ori- gem de centros produtores como Campo Maior no centro-norte e Piracuruca e Parnaíba no norte37 (LIMA, 2016, p. 89). A presença das rezes da família Abreu Bacelar em Ilha Grande, como citado no relatório acima, indica que o processo de expansão do criatório de gado no Piauí a partir da segunda metade do século XVIII havia logrado chegar ao extremo norte da capitania após a “desinfestação” dos indígenas.

Foi nas primeiras décadas do século XIX, quando as charqueadas de Parnaíba entra- ram em declínio, que o governo da capitania do Piauí empreendeu esforços na identificação da navegabilidade das “águas mansas e profundas” do Rio Parnaíba, objetivando o “fomento do comércio e da indústria”. No início do século XIX, as fazendas vinham cumprindo o papel de povoar o norte, agora restava navegar o Delta, séculos antes dominado pelos Tremembé. Uma primeira viagem foi realizada pelo então governador Coronel Carlos Cesar Burlamaqui em 1806 e uma segunda naquele mesmo ano, a mando do governador, pelo Coronel Simplício Dias da Silva, o qual produziu um mapa do Delta do Parnaíba38 (FREIRE, 2016, p. 77-79).

36 O trecho acima destacado das instruções militares do governador Pereira Caldas ao tenente-coronel Castelo Branco informa a existência do conhecimento das autoridades da coroa naquele período sobre os recursos naturais marinhos de Ilha Grande e expressa a presença de criadores de gado estabelecidos no lugar há pelo menos duas gerações, como os ditos herdeiros de José de Abreu Bacelar. Pode-se inferir, então, que na segunda metade do século XVIII Ilha Grande estava “mapeada” pelas autoridades coloniais que a identificavam como uma reserva de recursos marinhos, espaço para o criatório de rezes e como ponto estratégico de defesa militar. 37 Parnaíba tornou-se nesse período “o centro de venda de gado e derivados, como couro e carne salgada. A instalação de charqueadas, na segunda metade do século XVIII, no porto das barcas impulsionou a comercialização de gado das fazendas do norte do Piauí [...]. Segundo a historiografia, as charqueadas chegaram a abater , em 1781, a média anual de 40 mil animais [...], sendo Parnaíba responsável por um quarto da oferta piauiense, em uma produção mínima estimada entre 140 a 160 mil rezes. [...] As charqueadas de Parnaíba deixaram de produzir nas primeiras décadas do século XIX” (LIMA, 2016, p. 89-90).

38 O mapa, ao gosto da cartografia do período, foi nomeado com o extenso título “Mapa oferecido ao Ilmº Sr. Coronel Carlos César Burlamaqui, governador de S. José do Piauí, do rio Parnaíba, seus braços, Ilhas, Baias, que forma desde os Possões ate a as diferentes barras por onde sai o mar e dá costa a barra Igaraçu sua primeira foz,

Em 1808, no contexto das Guerras Napoleônicas (1803-1815), Portugal foi invadido pelo Império francês e a família real portuguesa abandonou a Europa, refugiando-se no Brasil. Os rumores da guerra, “antes mesmo dela ser oficialmente declarada (1º de maio de 1808) pelo rei D. João VI, espalharam-se por todas as capitanias, cujos governos receberam ordens para organizar a resistência” (FREIRE, 2016, p. 80). O governador Burlamaqui preparou uma ação de defesa dos “pontos mais ameaçados da capitania que ficavam no litoral” (FREIRE, 2016, p. 80). Valendo-se da navegação que ele mesmo havia realizado dois anos antes e do mapa preparado por Dias da Silva para fins comerciais, o governador da capitania elaborou as orientações para a defesa militar do litoral do Piauí.

“Era a segunda vez que o Piauí, de armas na mão, acudia em defesa dessa porção do território” (FREIRE, 2016, p. 80). A “cabeça” de Ilha Grande foi citada nas instruções milita- res do governador como um dos “pontos últimos de defesa particular da vila [de Parnaíba]”, um dos lugares para onde deveriam ser levados alguns dos “pelo menos 150 homens” e o “resto do povo armado” mobilizados para o combate. Já a Pedra do Sal surgiu no relatório como necessitando apenas de uma “partida de cavalaria para observação e avisos”. Sua pe- dregosa e acidentada costa não admitia facilidade para o desembarque dos inimigos, “pois o recife que aí há e que corre a costa, a defende” (FREIRE, 2016, p. 81-82).

De 1762 a 1808, durante sessenta anos, Ilha Grande de Santa Isabel e, particularmente, seu litoral, foi parte do “teatro de operações” da defesa militar da capitania do Piauí no con- texto dos conflitos de Portugal com França e Espanha. Também foi o cenário para a expansão do criatório de gado vindo do sul e que chegou ao norte da capitania e lá prosperou até o iní- cio do século XIX. Contudo, o Delta do Parnaíba não foi apenas o cenário de querelas entre a coroa portuguesa e seus inimigos. Um século após a guerra contra o índio, que consolidou o domínio português, e estabilizada as ameaças de invasão estrangeira após a conquista da in- dependência do Brasil, as disputas territoriais na primeira metade do século XIX se concentra- ram entre as províncias do Piauí e do Maranhão sob o Delta do Parnaíba, formado por quase uma centena de ilhas e por oito barras que desaguam no Oceano Atlântico.

até a última que é a barra da Tutoia, feito por Simplício Dias da Silva no ano de 1806 e copiado por José Pedro César de Meneses no ano de 1809.” (FREIRE, 2016, p. 78-79).

Figura 15 - Planta que mostra as fozes do rio Parnahiba e barras da provincia do Piauhy até a barra da Tutoia, da provincia do Maranhão suas communicaçoens por garapés e as habitaçoens colocadas nos lugares que o autor vio.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital. Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=30485. Acesso em 30 de maio de 2019.