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A narrativa dos donos de terra: portugueses, herança e sesmarias

3. POVOAMENTO E FUNDAÇÃO

3.1 Fundação da Pedra do Sal

3.1.1 A narrativa dos donos de terra: portugueses, herança e sesmarias

A realização do I Fórum de Território e Direitos das Comunidades Tradicionais do Litoral do Piauí, realizado nos dias 08 a 10 de novembro de 2017 na Pedra do Sal, foi um importante momento para ter acesso a “narrativa de fundação” acionada pela família Silva no contexto do conflito territorial entre os moradores e os empreendimentos de turismo e energia. Roberto Silva, conhecido popularmente na ilha como Roberto Pilim, foi convidado pela comissão organizadora do Fórum para “dissertar sobre as terras da família Silva” em Ilha Grande, particularmente na área utilizada pelos moradores da Pedra do Sal. Ele se fez presente no evento, participando de uma das mesas. Roberto se mostrou bastante agradecido pelo convite e se referiu ao Fórum como uma maneira de “praticar cidadania, conciliar e trazer soluções a partir do diálogo, a partir do entendimento, que são diversos aqui entre os que habitam tantas comunidades”28.

A história das terras da família Silva, para Roberto, é a mesma de outras e se confundem

28 Naquele período, início do mês de novembro de 2017, eu me encontrava em Fortaleza assistindo aulas das disciplinas do doutorado, o que dificultou a minha ida a tal evento. Contudo, dois filhos de seu Zé, Remildo e Silvia, gravaram em seus celulares a fala de Roberto Silva para me mostrarem. Eles disseram que eu ia gostar de ter estado lá e ouvido. Nesse sentido, os trechos que apresento aqui da fala de Roberto foram transcritos de tais vídeos que eles gravaram e me enviaram. Essa gentileza, me fez pensar que para eles estava claro o meu interesse de pesquisa na Pedra do Sal, o que para mim, na condição de um aprendiz de pesquisador, foi gratificante.

com a própria história do Brasil. Em sua fala, ele estabelece uma classificação de tipos diferentes de terra: “terra da união”, “terra do estado”, “terra do município”, “terra da igreja” e “terra particular”. Ele situa, sem muita certeza, as propriedades dos Silva nessa última categoria de terras e estabelece a participação da família no processo de colonização do Piauí. Roberto também associa a própria família a uma linhagem que inclui Simplício Dias da Silva, figura importante da história do Piauí e cujo nome batiza a ponte que liga Ilha Grande ao continente.

A minha missão eu vou é, sobre as terras né?! Eu gostaria de ser breve, por que eu tenho muito mais a oferecer do que simplesmente contar a história do Brasil, né?! [...] Você vai ver hoje que as terras do país, elas são titularizadas assim. [...] Então, temos as terras que são da União, nós temos as terras que são dos Estados, nós temos as terras que são dos municípios, e tivemos mais dois tipos de terra, né?! Que vem da história do próprio país, da formação do país, tá?! Nós temos as terra da igreja, a igreja com muita influência angariou uma quantidade muito grande de terra, e nós temos as terras particulares. Então, existem as terras particulares, que não foram nominadas nem pra União, nem pro Estado, nem pro município, e nem pra igreja, terra particular, talvez, no que eu não tenho tanta certeza, talvez a gente [os Silva] tivesse dentro dessas terra, tá?! Então, eu lendo sobre o passado, né, que nós chegamos junto da colonização, esse Silva que você vê no meu nome, é o mesmo da homenagem da Ponte Simplício Dias da Silva, tá?! A gente vem desde a colonização do estado, e naquele tempo a família fazia criação de gado e charqueada, e tinha vastas áreas de terra. Naquele tempo também, a terra não era uma coisa importante, importante era o gado que tava na terra, então disso se fazia uma indústria e se manteve a história da cidade, e o início da cidade (Roberto Silva, no I Fórum de Território e Direitos das Comunidades Tradicionais do Litoral do Piauí nos dias 08 a 10 de novembro de 2017 na Pedra do Sal).

Durante sua dissertação sobre as terras da família Silva em Ilha Grande de Santa Isabel, Roberto foi interrompido por Buchudo, que se encontrava na plateia do Fórum. Seu Buchudo é um conhecido morador do lugar, membro da família Severo, reconhecida como uma das mais antigas do povoado. Ele questionou Roberto sobre quais eram as famílias que “chegaram aqui primeiro”. O que o Silva respondeu como sendo:

A família Severo, família Martins e diversas outras, é [...] Eu não quero te dizer tudo por que eu posso falhar em alguma, mas também são umas três ou quatro famílias, famílias amigas como eu falei. Ao longo do tempo eles comungaram essa amizade por muito tempo [com a família Silva], não sei por que agora elas se divergem um pouco, mas essas famílias comungaram uma amizade por muito tempo, dividindo inclusive dificuldades econômicas. Eu vi doutor João Silva (tio de Roberto, ex-prefeito de Parnaíba) analisando e trazendo a possibilidade de financiar linhas pra fazer ninho de tarrafo, uma porção de coisas. Ele era solidário aqui, e fez muito isso, emprestou muito serviço médico pra esses amigos dele aqui (Roberto Silva, do I Fórum de Território e Direitos das Comunidades Tradicionais do Litoral do Piauí nos dias 08 a 10 de novembro de 2017 na Pedra do Sal).

antigas do lugar, algo que também é reconhecido pelos Silva. A amizade entre as famílias

também é de conhecimento dos moradores.

Se eu não me engano, em determinado momento a prefeitura ou alguém veio construir uma estação de água ali, e tinha uma casa que tava muito ruim, e a gente fez uma casa, que se eu não me engano foi pro seu Antônio Severo [avô de Buchudo]. Eu, a minha construtora, construiu uma casa exatamente para o Antônio Severo (Roberto Silva, do I Fórum de Território e Direitos das Comunidades Tradicionais do Litoral do Piauí nos dias 08 a 10 de novembro de 2017 na Pedra do Sal).

Durante a resposta de Roberto, Buchudo o interrompeu mais uma vez e o questionou sobre a idade de Antônio Severo. Roberto afirmou que não sabia e que, talvez, Buchudo não conhecesse a “data que eu nasci, que meu pai nasceu, que meu avô nasceu, meu tio-avô, meu tataravô, as pessoas que aqui tiveram por mais tempo”. Aqui é importante destacar como o Severo e o Silva operam a legitimidade do pioneirismo na fundação da Pedra do Sal.

Ambos buscam se ligar a uma parentela, e ligar essa parentela a terra é uma forma legítima encontrada por eles para estabelecer o pioneirismo da fundação. Ambos associam indivíduos a famílias e famílias ao lugar, estabelecendo, assim, vínculos pessoa-terra ou melhor, parentela-terra. Contudo, se a Buchudo só resta uma história oral sobre o seu parentesco com os primeiros habitantes do lugar, como signo legitimador do pioneirismo, Roberto Silva se vale de dispositivos jurídicos, como os documentos de posse de terra, reconhecidos socialmente pelo Estado, para fazer valer a legitimidade de sua família como fundadora do povoado.

“A Secretaria do Patrimônio da União identifica nossa [os Silva] titularidade de propriedade da Pedra do Sal”, afirmou Roberto durante sua fala. Buchudo não pode recorrer a tal dispositivo jurídico no contexto dessa luta de narrativas pelo reconhecimento do pioneirismo porque a relação do morador da Pedra do Sal com a terra se assentou ao longo do tempo em um arranjo que envolve a memória, o parentesco, a moradia e o trabalho como fontes de legitimação e não documentos de posse de terras.

Em resposta as intervenções de Buchudo, Roberto passou a questionar a plateia sobre a existência da venda de lotes de terra na Pedra do Sal pelos próprios moradores. “A Pedra do Sal tem mais de 300 casas aqui? Por aí? Quantas casas eu vendi na Pedra do Sal? Quantos

terrenos eu vendi? Na minha propriedade, me diga aí, quantos?”. Nesse momento, o debate

entre Roberto e Buchudo passou da legitimidade do pioneirismo para o da legitimidade da comercialização das terras, um debate sobre quem podia vender as terra da Ilha.

vendido por três milhões e trezentos mil real no cartório, foi feito por procuração no Ceará. Três milhões e trezentos mil reais”. Buchudo se referiu a área do oeste da ilha que Roberto Silva vendeu a empresários espanhóis e italianos do setor de turismo por volta de 2005. Roberto respondeu, distinguindo sua área do que seria a área da Pedra do Sal.

Na realidade, não vamo confundir minha área com a Pedra do Sal, tá?! A propriedade que eu vendi naquela ponta por lá [refere-se a área nomeada pelos moradores como Pontal, a oeste do litoral da ilha]. Exatamente quando eu identifiquei que eu era muito fraco pra segurar tantas invasões e tantos incêndios e tantas agressões que a natureza tinha, eu me senti acuado em dividir isso com mais algumas pessoas [os empresários do setor de turismo], que me contaram que iam fazer maravilhas aqui [construir um resort de luxo] (Roberto Silva no I Fórum de Território e Direitos das Comunidades Tradicionais do Litoral do Piauí nos dias 08 a 10 de novembro de 2017 na Pedra do Sal).

Nesse trecho de sua fala, Roberto distinguiu sua “área”, uma “propriedade”, do que seria a Pedra do Sal. Além de fazer essa diferenciação, ele justifica a venda da terra a empresários do setor de turismo por esta ser “sua” propriedade e porque sentiu-se “muito fraco” para lidar com as “agressões da natureza”. Nessa maneira de distinguir “propriedade” e “natureza” reside uma importante diferenciação sobre as percepções dos moradores e dos Silva sobre o território da ilha, que serão trabalhadas neste texto em sua quinta parte, mas que por hora cabe algumas anotações.

Chama-se Pontal o lugar onde estava a “propriedade” de Roberto. Tal lugar é utilizado pelos moradores para a pesca, a cata de caranguejo e a coleta de frutos. Na perspectiva do morador, esses lugares de uso comum não possuem um “dono”, pois são da “natureza”. Assim, na percepção de Roberto foi vendida uma “propriedade”, mas para o morador foi vendida a “natureza”. Outra diferença é que a divisão espacial que realiza Roberto entre sua propriedade e a Pedra do Sal não corresponde aos usos que o morador faz do território da ilha.

Os pescadores e extrativistas vegetais da Pedra do Sal combinam o uso familiar do terreno (casa, sítio, curral, quintal) com o uso comum da terra (praia, mangue, lagoas, matas). Dessa forma, quando Roberto vendeu terras no Pontal, ele vendeu parte da natureza e ao vender, ele se apropriou de algo comum, que não pode ser vendido porque sequer tem um dono. Esse choque de diferentes visões de mundo sobre o que é a natureza e o que é a propriedade, é a base simbólica do conflito territorial entre moradores e donos de terra, entre moradores e

empresas de energia eólica.

Após essa fala, Roberto congratulou o evento, agradeceu o convite a participação e almejou ser chamado no próximo Fórum. Uma outra narrativa de fundação da família Silva pode ser encontrada na biografia do tio de Roberto, o ex-senador Alberto Silva falecido em

2009. Publicada pelo jornalista Zózimo Tavares (2018), o livro “Alberto Silva: uma biografia” traz entrevistas com o finado senador. O quinto capítulo da obra reconstrói a trajetória de vida de Alberto a partir de trechos de entrevistas com ele. Ao relembrar a trajetória, o ex-senador recorre aquela lógica presente na narrativa de fundação relatada por seu sobrinho Roberto. Alberto estabelece ligações entre a família Silva e a ilha através de uma posse de terras que fora herdada desde o período colonial das sesmaria.

Eu sou o mais novo descendente de uma família de oito irmãos, quatro homens e quatro mulheres.

Nasci [1918] e me criei à margem do rio Parnaíba, mais precisamente do rio Igaraçu, o terceiro braço que compõe o Delta do rio Parnaíba e que envolve a cidade de Parnaíba.

Nasci numa residência que tinha mais de 100 anos de existência que pertenceu a meu avô [sitio Paraíso], que era praticamente proprietário de toda a Ilha Grande de Santa Isabel. Era uma sesmaria.

Ele era descendente de uma família portuguesa que passou a ele esta sesmaria e ele veio e constituiu família.

De modo que, quando eu nasci, já nasci na casa grande da família e que é bem às margens do rio (TAVARES, 2018, p. 67-68).

Tal concordância de versões sobre a fundação indica haver uma circularidade dessa narrativa entre diferentes gerações da família Silva. Tio e sobrinho estabeleceram como marco temporal para a fundação o período colonial do Brasil. Roberto narrativamente vinculo os Carvalho e Silva (sua linhagem paterna) e os Tavares Silva (sua linhagem materna) a prestigiosa família Dias da Silva, da qual Simplício fora membro e um importante personagem da história parnaibana. Alberto estabeleceu uma descendência portuguesa para seu avô, o maranhense capitão Claro Silva, e remeteu à posse das terras como derivando de uma herança de sesmaria, que Claro teria recebido de família portuguesa.

Assim, os Silva costumam legitimar sua presença e posse de terras em Ilha Grande de Santa Isabel através de uma associação entre o longo prazo biográfico da família e do longo prazo da história nacional. O tio e o sobrinho recorreram a ideia de propriedade, “sesmaria”, no caso de Alberto, e as “terras particulares”, no caso de Roberto. Semelhante aos Silva, as narrativas de fundação dos moradores recorrem ao longo prazo biográfico e familiar, mas não de apenas uma famílias, mas de várias, através de outros marcos temporais, como o chamado “no tempo dos negros”, e ao longo prazo histórico do povoado, como na expressão no “tempo

das vinte e seis casas”, referências ligadas muito mais a história local do povoado do que a