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Os Tremembé e os povoadores (1725-1750)

3. POVOAMENTO E FUNDAÇÃO

3.2 Povoamento de Ilha Grande

3.2.2 Os Tremembé e os povoadores (1725-1750)

“Era apenas assalto com violência, assassinato agravado em larga escala, e homens entrando naquilo às cegas – como convém a quem lida com as trevas. A conquista da terra, que significa, em grande medida, tirá-la de quem tem a cor de pele diferente ou o nariz um pouco mais achatado que o nosso, não é uma coisa bonita, quando examinamos bem. O que a redime é a ideia ape- nas. Uma ideia por trás dela; não um pretexto sentimen- tal, mas uma ideia; e uma crença altruísta na ideia – al- guma coisa que você pode criar, venerar e oferecer sa- crifícios a ela”. (CONRAD, 2010, p. 120).

Em 1725, a “carta de data e sesmaria” de Ilha Grande de Santa Isabel foi concedida por João da Maya da Gama, governador do Maranhão e Grão-Pará, a João Gomes do Rêgo Barros, Capitão-Mor de Parnaíba (FREIRE, 2016, p. 136-137). Tal concessão foi uma espécie de “recompensa” a Barros por ter participado em combates aos Tremembé no norte do Piauí (MIRANDA, 2017)30. Antes da colonização portuguesa, os Tremembé habitavam soberanos também o norte do Ceará e do Maranhão. No Piauí eles ocupavam 27% das terras da então capitania de São José com mais de sessenta tribos e cento e vinte mil índios de um total de trezentos e setenta mil em todo o Piauí (MAVIGNIER, 2017, p. 27)31. Os Tremembé perma- neceram com “bastante autonomia” sobre o seu território até o final do século XVII, realizan- do comércio de mercadorias tais como “âmbar-gris, pau-violeta e até escravos, com diferentes estrangeiros que frequentavam suas praias” (BORGES, 2010, p. 10).

Até meados do século XVIII, a distribuição de terras em sesmaria era operada pelos governadores32. Por meio do governo de Maya da Gama foram concedidas cento e cinquenta e sete sesmarias, das quais cento e quarenta e cinco delas entre os anos de 1725 e 1728. Entre o final século XVII e a primeira metade do século XVIII, as “capitanias do Maranhão e Piauí assistiram ao incremento dos conflitos com os índios e a expansão do gado” (CHAM- BOULEYRON e MELO, 2013, p. 167), de modo que no Piauí, a expansão das fazendas se deu “pari passu com uma guerra de extermínio e/ou subjugação dos indígenas” (MEDEIROS, 1996, p. 21).

30 Diz-se que Rêgo Barros resistiu em três combates seguidos aos índios também com armas de fogo e que “perdeu nessa guerra mais de cinco mil cruzados” (MIRANDA, 2017).

31 Em tupi, a palavra Tremembé (tïrïme’mbé) significava “índios dos terrenos alagados” (MAVIGNIER, 2017, p. 27).

32 Exceção feita a alguns poucos casos nas capitanias hereditárias (CHAMBOULEYRON e MELO, 2013, p. 167).

Por volta de 1720, já se encontravam em processo avançado de “pacificação” os “ser- tões de dentro” e os “sertões de fora”, o interior e o litoral do Ceará, Piauí e Maranhão (CHAMBOULEYRON e MELO, 2013, p. 188). Na década de 1730, o rei de Portugal Dom João V deu posse de “quatro léguas de terras aos índios Tremembé na Ilha do Caju”. Assim, os “últimos” Tremembé do Delta do Parnaíba viveram no aldeamento da Ilha do Caju, locali- zado a noroeste de Ilha Grande de Santa Isabel, com carta sesmarial conseguida pelo jesuíta Padre João Tavares a pedido dos índios. Lá tornaram-se criadores de gado, abastecendo o aldeamento e as casas jesuíticas do Maranhão. Tal situação perdurou até 1750, com a invasão da Ilha do Caju pelos irmãos Lopes, portugueses instaladores de fazendas (MAVIGNIER, 2017).

A “desinfestação”, como se dizia à época, do norte do Piauí por meio da guerra aos Tremembé era a etapa que antecedia o povoamento. No vocabulário do colonialismo portu- guês, existia uma diferenciação entre “ocupação” e “povoamento”. A ação de povoar referia- se a conquista do português de uma terra antes ocupada pelo indígena. Assim, do ponto de vista do colonizador setecentista, o norte do Piauí era ocupado por “nações selvagens”, mas só foi povoado de fato com a conquista daquela região pelo fazendeiro português33.

Assim, o “povoamento”, no sentido setecentista, foi operado por um misto de “guerra privada” e “guerra oficial” que indica o “imbricamento de uma ação que partia dos governa- dores e outra que partia dos ‘particulares’, embora se entrecruzando quando os interesses fos- sem os mesmos” (CHAMBOULEYRON e MELO, 2013, p. 189). A guerra ao “gentio do cor- so”, o índio na aldeado, significou uma forma de acesso à terra34.

Isso por duas razões. Ela permitia que indivíduos que tivessem participado das pele- jas legitimassem os seus pedidos. Isso valia não só para os soldados das expedições comandadas ou ordenadas pelos governadores, mas também para aqueles que a sua custa e fazenda empreendiam ações contra os índios. Por outro lado, os embates “de- sinfestavam” os sertões, como se dizia à época. Alguns dos participantes das várias expedições para combater os índios no sertão ao longo da primeira metade do século XVIII conseguiram sesmarias e se instalaram, justamente, nos sertões que haviam ajudado e ajudavam a devassar (CHAMBOULEYRON e MELO, 2013, p. 189).

Assim, o “desinfestamento” abriu o caminho para o “povoamento” através dos currais de bois, possibilitando o surgimento do “tipo social de fazendeiro” que marcaria dali em dian- te a geografia e a história do Piauí (MEDEIROS, 1996, p. 20)35.

33 O relato de Joze Pedro de Meneses, auxiliar do engenheiro Antonio Galuzze (contratado em 1761 para fazer um mapa da capitania de São José), expressa bem essa distinção. Ver Mavignier, 2017, p. 140-141.

34 Em 1863, “o governador do Ceará José Bento da Cunha Figueiredo Jr. Declarou extinta a nação Tremembé, que em 1854, já tinha perdido a posse de seus condomínios pela regulamentação da Lei 601, ou Lei da Terra” (MAVIGNIER, 2017, p. 143).