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3. POVOAMENTO E FUNDAÇÃO

3.2 Povoamento de Ilha Grande

3.2.5 As almas da Ilha (1830-1865)

Em 1865, o jornalista e deputado piauiense Davi Moreira Caldas realizou uma viagem de exploração do Delta do Rio Parnaíba a pedido do então presidente da província do Piauí, Adelino Antônio de Luna Freire, que “reconhecendo pertencer-nos todo o delta do Parnahyba, mandou ás expensas dos cofres piauhyenses o referido Davi Caldas explora-lo, afim de dar-lhe a respeito as necessarias informações”48. Tal relatório foi encomendado no contexto das disputas territoriais entre o Piauí e o Maranhão sobre os limites entre as duas províncias na altura do Delta do Parnaíba.

Caldas concluiu no dia quinze de junho de 186749 seu relatório de viagem e em nove de setembro do mesmo ano foi apresentado por Adelino Freire a Assembleia Legislativa do Piauí, o “Relatório de 1865. Viagem de inspeção feita de Teresina até a cidade de Parnaíba, pelo rio do mesmo nome, inclusive todo seu Delta”50 (GANDARA, 2013). Em seu Relatório, Caldas dedica algumas observações a Ilha Grande e oferece um retrato de sua geografia e ecologia.

A ilha Grande, cuja a superficie pode-se avaliar em 364 kilometros quadrados, consta de alagadiços, varzeas, catingas e morros de areia. As suas produções naturaes são as seguintes, segundo me informaram e em parte observei: olandim- carvalho, olandim-branco, jitó, que fornecem madeiras de construçao e se acham nos terrenos pantanosos, bem como o cedro de alagadiço, que é de grã mais grossa e resiste menos á agua do que o cedro verdadeiro; carnaubaes immensos, nas varzeas; tucumzeiros, guajerús, muricís, e, sobre tudo, quantidade de cajueiros, coroando os morros de areia e dando excellentes cajús, de que os habitantes fabricam uma bebida fermentada, a que chamam mocorocó. As lagoas abundam em patos e marrecas; nas catingas brancas encontram-se veados, pacas, tatús, jacús, &. Ha algumas onças para o lado do Cutia, retiro da fazenda do Jatobá. No rio, perto dos Morros encontram-se curimatãs, piaus e outros peixes; no mar, junto a Pedra do Sal, as cavalas e os meros são em grande quantidade. Dizem me que na ilha existe a giboia em algumas partes. A cultura da ilha é insignificante e limita-se a apenas á plantação de alguns coqueiros da praia, bananeiras, cannas, (de que se fabricam rapaduras,) melancias, &. &. (Nortista, Parnaíba-PI, 17/08/1901, p. 01).

48 Pelo Piauhy. Nortista. Parnaíba-PI. Ano 1, n. 30. 27 de julho de 1901, p. 01

49 Pelo Piauhy. Nortista. Parnaíba-PI. Ano 1, n 49. 7 de dezembro de 1901, p. 01. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/825565/213>. Acesso em 15 jul 2018.

50 A partir da edição de número trinta até a quarenta e nove do Nortista foi publicada ao longo do ano de 1901, “parte do minucioso relatorio organisado em 1867 pelo notavel e illustre piauhyense David Moreira Caldas”. O Relatório figurou nas colunas da seção “Pelo Piauhy”, destinadas a debater a “integridade territorial” daquele estado envolvido historicamente em litígios de terra com o Maranhão e o Ceará .

A Ilha Grande descrita por Caldas abunda em frutos silvestres como o caju, guajiru, murici, ainda presentes no lugar e de consumo de seus habitantes no período em que realizei a pesquisa de campo, assim como de madeiras como a carnaúba e peixes como o mero e a cavala. Nota ele também o cultivo de espécies não silvestres, como banana, cana e melancia e faz referência a produção de rapadura e do mocorocó a partir do caju51. Em um trecho do Relatório é citado a existência de “engenho de moer cannas” nos Tatús e no Sipoal52, revelando o tipo de indústria existente na ilha naquela segunda metade dos oitocentos. Além da geografia e da ecologia ilhéu, Davi Caldas descreve o povoamento dos Morros.

O logar a que aportamos é chamado Morros por causa de uns comoros de areia, que ahi existem na direcção de E. O.; avistando-se de cima da e pecie de cordilheira, que elles formam, obra de 2 casas de palhas, disseminadas para o lado sul. Este logar é o mais habitado da ilha Grande; em 1830 continha já 45 almas, segundo um arrolamento existente no archivo da secretaria da presidencia; hoje deve ter o duplo, pelo menos.

Os Morros distam 8 kilometros da cidade da Parnahyba que lhe fica em rumo E. S. E; avista-se este logar, de uma das torres da egreja matriz daquela cidade. Para dentro da ilha, as distancias sao as seguintes, partindo deste logar: 18 kilometros para o Bom Jesus, a E.N. E.:13 para a Pedra do Sal, ao N. E; 13 para o

Cutia, ao N; 8 para o Estevão, ao S.O &. (Nortista, Parnaíba-PI, 17/08/1901, p. 01).

Os topônimos citados nos trechos apresentados do Relatório de Caldas, como Mor- ros, Cutia, Pedra do Sal e Bom Jesus são ainda de uso dos moradores da ilha mais de 150 anos depois e pude visitá-los, com exceção do Cutia. Apesar da Pedra do Sal ser citada nesse tre- cho, Caldas não faz menção a existência de uma população no lugar, o mesmo acontece quan- do ele apresenta dados, de sete anos antes de sua navegação pelo Delta, que pintam uma ilha relativamente habitada.

Tratando da Ilha Grande pela ultima vez nesse relatorio, para completar a sua descripção, vou apresentar alguns dados estatiscos colhidos no archivo da secretaria da presidencia e no da chefatura de policia.

Em 1858, a ilha Grande tinha 573 habitantes; sendo 232 no 1º quarteirão da ilha, que é o 9º do districto de Parnahyba, e 341 no 2º quarteirão ou 10º do districto.

No dito ano, existiam no 9º quarteirão os seguintes logares habitados: Morros (com 77 habitantes), Tatú, Cutia (com 35), Pontal (com 29), Portinho, Mocambo,

Vazantinha, Passagem do Salgado, Jatobá e Vista Alegre (com 81). No 10º quartei-

rão existiam os seguintes logares habitados: Passagem do porto do Salgado, Fazen-

dinha (com 85 habitantes), Tamancão, Baptista, Tucuns, Taboleiro, Igaraçu, S. José

(com 37), Poços, Boa-Vista, Sabonetal, Bebedouro, Estevão (com 63), Sipoal (com 37), Passagem de Batatas e Quebra (com 19). Hoje, a população da ilha é talvez de mais de 800 almas, tendo sido apenas de 114 em 1830.

Em 1865 estavam qualificados votantes 205 homens da ilha Grande, sendo 108 do 9º quarteirão e 97 do 10º.

51 O mocorocó ainda é produzido na ilha, eu mesmo ganhei de Eli uma garrafa dele, a qual faço menção no prólogo.

No anno passado em ambos os quarteirões, achavam-se qualificados 134 guar- das nacionaes, sendo 111 do serviço activo e 23 de reserva.

Em todo o delta do rio Parnahyba, existem de 60 a 70 ilhas, entre maiores e menores, habitáveis e inhabitaveis. A mais vasta dellas é a ilha Grande [...] (Nortis- ta, Parnaíba-PI, 07/12/1901, p. 01. Os destaques em itálico estão no texto original).

Os dados demográficos de 1830, apontam para 114 “almas” na “mais vasta” ilha do Delta do Parnaíba. Como descrito anteriormente, em 1831, o “Distrito da Villa” de Parnahyba contabilizava 4.324 pessoas, uma população 38 vezes maior do que a de Ilha Grande. Em 1858, passou para aproximadamente 573 os habitantes da ilha, e Caldas estima que em 1865 a Ilha Grande possuía mais de 800 pessoas. Ao longo desse período, ainda que aumentasse a densidade demográfica em Ilha Grande, ela sempre possuiu uma população menor do que a vila e, depois, cidade de Parnaíba.

Tabela 2 - População de Ilha Grande de Santa Isabel (1830-1865)

Ano População Densidade demográfica

1830 1858 1865 144 hab 573 hab 800 hab ~ 0,39 hab/km² ~ 1,57 hab/km² ~ 2,19 hab/km² Fonte: Elaborada pelo autor, a partir de Caldas (1901).

Os dados revelam que de 1830 a 1865, ocorreu em média um aumento de vinte e quatro novos habitantes por ano em Ilha Grande de Santa Isabel, o que corresponde a um crescimento populacional de 455% em 35 anos. Crescimento este que pode ter sido originado de nascimentos como de migração para a ilha ou da combinação de nascimentos e migração53. Esses dados são importantes para contextualizar e relativizar as “narrativas de fundação” so- bre os primeiros ocupantes da Pedra do Sal, tanto aquelas narrativas produzidas pelos mora-

dores como pelos Silva. Serve também como uma dose de “bom senso estatístico” para os

arroubos de grandeza com que o memorialista Caio Passos e se refere a presença dos Silva em Ilha Grande através de afirmações como a de que o patriarca da família, o Capitão Claro Sil- va, vindo do Maranhão para Parnaíba em 1870, era “proprietário de quase toda a Ilha Grande de Santa Isabel” (PASSOS, 1982, p. 97).

53 Em 2012, pesquisas da ONG Comissão Ilha Ativa apontam que a população total de Ilha Grande era de aproximadamente 17.000 pessoas, vinte uma vezes a quantidade de habitantes que possuía em 1858.

Tabela 3 - Quarteirões, lugares, habitantes e votantes em Ilha Grande de Santa Isabel (1858-1865) 1º Quarteirão em 1858 2º Quarteirão em 1858 Lugares Morros Tatú, Cutia Pontal Portinho, Mocambo, Vanzantinha, Passagem do Salgado, Jatobá e Vista Alegre Total: 10 Habitantes 77 35 29 81 Total: 222 Votantes em 1865: 108 Lugares Passagem do Porto do Salgado, Vazantinha Tamancão, Baptista, Tu- cuns, Taboleiro, Igaraçu, S. José

Poços, Boa Vista, Sabo- netal, Bebedouro, Este- vão Sipoal Passagem de Batatas, Quebras Habitantes 85 37 63 37 19 Total: 16 Total: 241 Votantes em 1865: 97

Fonte: Elaborada pelo autor, a partir de Caldas (1901).

Em seu relatório, David Caldas nomeia de “ponta do Lazareto” o lugar chamado de

Canto do Vieira pelos moradores da Pedra do Sal no período em que realizei o trabalho de

campo. Este foi o penúltimo lugar em que Caldas esteve durante a “exploração de todo o delta do Rio Parnahyba”. Em seguida, ele foi para Amarração e finalmente para a cidade de Parnaí- ba. Apesar de Caldas afirmar que demorou cinquenta minutos “percorrendo o pontal”, ele não cita nenhuma das edificações presentes no mapa de 1826, como o Reduto, o Marco para Guia dos Navegantes e o Sitio de Pescadores. O relatório de Caldas, apesar de informar sobre Ilha Grande, não se se detém pormenorizadamente na descrição de seu litoral e cita apenas aspec- tos geográficos e geológicos da Pedra do Sal, que ele obteve de um “prático” que conhecia o lugar.

Ao mesmo prático F. Borges da Fonseca pedi informações a respeito da Pedra do Sal; as quaes, são as seguintes:

Indo-se da barra da Amarração para a de Canarias ao longo da costa septentrio- nal da ilha Grande, que do lado do mar tem cerca de 30 kilometros de extensão, á meia distancia encontra-se a Pedra do Sal que são 2 rochedos, um sobre a costa da ilha Grande, que é arenosa por toda parte menos alli, e outro no mar, ao N. E. do ro- chedo da costa que lhe fica distante obra de 3 kilometros. Entre ambos os rochedos ha um canal que tem 14 metros de fundo, na baixa mar, mesmo junto do rochedodo mar, o canal tem perto de 11 metros. Ao sahir-se do Funil enxerga logo a Pedra do SaL, ao N. O, e por isso pode ela servir de balisa aos navegantes costeiros, em dia

claro. No preamar, o rochedo de N. E. fica com as pontas de fora, por maior que seja a marè.

A Pedra do Sal é assim chamada porque nas concavidades inferiores do rochedo coalha sal, muito alvo; completamente esteril, não se encontra nelle outra vegetação alem de algum capim. Santando-se sobre o rochedo do mar, percorrendo-o, á meia altura de suas fragas, encontra-se uma pedra de configuraçao espherica, assentada sobre outras que a sustentam; também se encontra, em algumas concavidades supe- riores, agua doce proveniente das chuvas, que se conserva até Julho, - notando-se principalmente 2 poços destes, que são os maiores, um dos quaes não tem menos de 1 metro de profundidade. Esta paragem é muito piscosa; abundando ahi os meros, as cavallas, &. (Nortista, Parnaíba-PI, 03/08/1901, p. 01).

Deve-se levar em consideração na busca por indícios em antigos documentos que os topônimos mudam ao longo do tempo e mesmo alguns lugares tendem a ser nomeados de formas distintas por pessoas em diferentes povoados da ilha. Outra característica é que pode ocorrer a incorporação de localidades a outras criando uma unidade ou a divisão de uma em várias unidades. Contudo, alguns desses topônimos ainda sobrevivem no vocabulário ilhéu 157 anos depois, alguns com o estatuto de povoado, outros não mais assim, entretanto utiliza- dos para práticas extrativistas diversas dos moradores54.

Entre eles, dois locais que não mais possuem a configuração de povoado, mas eram utilizados pelos moradores da Pedra do Sal no período em que realizei o trabalho de campo (2015-2018), eram Cotia e Pontal, também reivindicados pelos descendentes de João Silva como suas “posses”. Os dois locais são utilizados pelos moradores para as catas de carangue- jo, siri e camarão, para coletas de caju e murici, além da extração de carnaúba. O Pontal pos- sui ainda essa designação entre os moradores da Pedra do Sal e está localizado na outra “pon- ta” da ilha, na fronteira com a Barra das Canárias, oposta ao lugar que Caldas nomeou como “Ponta do Lazareto”, na fronteira com a Barra do Igaraçu, na qual em 1826 estava o “Sítio de Pescadores” e que os atuais moradores chamam de Canto do Vieira. A estatística apresentada por Caldas afirma que em 1858, no Pontal havia vinte e nove habitantes. Levando em consi- deração os dados do mapa do cartógrafo e o relatório de Caldas, pode-se concluir que entre 1826 e 1858, ambas os extremos do litoral da ilha já haviam sido habitados.

54 Em uma notícia de 2009, do site Piauí Hoje, sobre a atualização de valores de terrenos em Ilha Grande de Santa Isabel pela Gerência Regional do Patrimônio da União, vê-se a maioria dos topônimos ainda atuantes como referências geográficas. Na notícia, todos eles são chamados de “povoados”, apesar de nem todos terem mais esse estatuto, e são os seguintes: “Sabonetal, Sarnambi, Baixão, Batista, Tamancão, Paulicéia, Cipoal, Recurso, Tucuns, Roça Velha, Taboleiro Comprido, Morrinhos, Jatobá, Forno Velho, Cotia, Dendezeiro, Urubu, Mocambo, Ilha do Periquito, Boa Vista, Cajueiro, Canto das Lontras, Elias, Quebra, Labino, Engenho Velho e Canto da Estiva, situados na ilha de Santa Isabel em Parnaíba e Ilha Grande do Piauí”. Piauí Hoje. Patrimônio da União atualiza valores de terrenos na Ilha de Santa Isabel. Disponível em: http://piauihoje.com/noticias/patrimonio-da-uniao-atualiza-valores-de-terrenos-na-ilha-de-santa-isab/. Acesso em 12 fev 2019.