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Roceiros, pescadores e vaqueiros

4. AGREGADOS E DONOS DE TERRA

4.4. O funcionamento da relação de morada

4.4.1 Roceiros, pescadores e vaqueiros

Em lugares situados mais para o interior da ilha do que para a sua faixa de praia, como o Bom Jesus, havia relações de trabalho participando da relação do morador com os Silva, como me contou em entrevista Batistinha96.

- Eles [os Silva] plantavam arroz pra banda do Bom Jesus? - No Bom Jesus.

- E quem morava aqui [Pedra do Sal], naquela época [antigamente], dava alguma coisa do que plantava pra eles?

- Não, só quem morava lá. O pessoal que morava lá é que plantava. - Eles [os Silva] tiravam uma parte?

- Era.

- Mas por aqui não?

- Por aqui não. Aqui o pessoal era só pesca mesmo. - Tinha uma roçazinha?

- Uma roçazinha, plantava uns pé de coco aí, que tinha uns pé de coco. Mas nunca foi passado nada pra eles. Eles cobravam essa renda do pessoal que plantava arroz lá no Bom Jesus (Entrevista com Batistinha realizada em 02 de novembro de 2016 em sua casa).

Havia, assim, diferenças nas relações de roceiros e pescadores com os donos de terra. Ao pescador não era cobrada uma renda pelos Silva, no sentido de que o produto do trabalho derivado do extrativismo não era passado aos Silva pelo pescador como retribuição por morar nas terras daquela família. Todavia, ao roceiro era cobrada uma renda pelo arroz que planta- va. Ribamar explica como funcionava o processo de trabalho nos arrozais da Ilha e que renda era essa aludida por Batistinha que era paga aos Silva.

Eles tinham as terras e dessas terras a gente plantava, quando tinha época de plantar arroz, que se trabalhava de roça [nos Tatus]. E aí a gente plantava aquele arroz. Pa- gava a renda do jeito que o vaqueiro dele pedia. A gente cortava o arroz todinho e todo dia e ia deixar lá no barracão, que era deles. Aí você cortava o teu arroz todi- nho, aí “terminei, seu fulano”, que era o vaqueiro. Aí secava e depois de seco é que você ia medir. Era tantas cargas pra você e tantas que você pagava de renda pro va-

queiro. Com o pescador não mexia. Era mais com o roceiro. O que plantasse tinha

que pagar a renda. Era outra burocracia muito grande também do dono de terra com o cabôco, com o pescador, com o pobre, com o lavrador (Entrevista com Ribamar em sua casa, 03 de setembro de 2016).

96 O povoado de Bom Jesus não mais existe, apenas preserva o nome e a localização na memória de alguns moradores e, pode-se dizer, que sua área foi incorporada à Pedra do Sal. Em uma das fases do trabalho de

campo, em novembro de 2017, Seu Buchudo e eu caminhamos até o antigo povoado, local das ruínas da casa de seus pais, hoje um terreno cercado pelos Silva para criação de gado de corte. Lá ainda existem vestígios da habitação, pedaços de eletrodomésticos como fogão e botões de camisa em meio a areia e a mata. Durante nossa caminhada, seu Buchudo rememorou a infância e identificou o local da antiga casa dos pais, assim como onde encontrava-se a roça e a lagoa onde pescava quando criança. Lastimava que o local não “foi pra frente”, pois poderia ter se tornado um povoado.

Ao falar sobre o processo de trabalho nos arrozais, Ribamar o classifica como uma bu-

rocracia muito grande do dono de terra com o cabôco. Nesse contexto de situação é interes-

sante perceber como Ribamar engloba não só o lavrador, mas também o pescador na catego- ria de cabôco. E que esta pode ser intercambiável por pobre na semântica da hierarquia entre

cabôcos e donos de terra. Nesse sentido, doutor e cabôco são tipos diferentes de pessoas a

participar nas trocas de cargas de arroz por permanência na terra.

Como bem destaca Ribamar, o processo de trabalho nos arrozais era dividido em dois momentos, o momento de plantar e o de cortar o arroz. Chegada à época da colheita, o pro- cesso era constitutivo das seguintes etapas destacadas pelo interlocutor: cortava-se o arroz e em seguida o deixava no barracão dos Silva para secar; após a secagem no barracão, o arroz era medido e dividido entre diferentes cargas: a carga do dono de terra, entregue ao vaqueiro, e a carga do roceiro. Essa carga dada aos donos de terra era percebida como uma forma de

pagamento de uma renda por plantar nas terras dos Silva. O pagamento da renda era de acor-

do com o que estabelecia o vaqueiro, ficando, assim, a roceiro à mercê do arbítrio do dono de

terras.

O barracão citado por Ribamar foi uma instituição recorrente no rural nordestino, con- tudo, com variações nas formas que assumiu. Nos engenhos de açúcar de Pernambuco, o bar- racão era de propriedade do dono de engenho e nele o morador adquiria mediante compra produtos de primeira necessidade. Como informa Montenegro, o morador do engenho recebia “o pagamento (no todo ou em parte) em vales para comprar no barracão. Havia, ainda, as ca- dernetas do barracão, em que eram anotadas suas compras durante o mês” (2004, p. 404). Re- cebendo 35 cruzeiros diários e comprando no barracão um quilo de charque por $180 cruzei- ros, estava o morador do engenho em dívida permanente com o proprietário. Como relata um perspicaz investigador do DOPS que vigiava a ação das Ligas Camponesas nos engenhos de Pernambuco, os proprietários “recebem o trabalho honesto do camponês e lhe pagam um salá- rio desonesto” (RELATÓRIO DO INVESTIGADOR Nº 239 apud MONTENEGRO, 2004, p. 414). Nesse sentido, a pessoa trabalhava para o patrão e o que recebia na forma de salário voltava para ele na forma do pagamento pelo consumido no próprio barracão97.

97 As relações de exploração estabelecidas pelos donos de engenho com os moradores através do “barracão”, do “cambão”, do “foro”, e do “pulo da vara”, foram importantes para a arregimentação dos moradores da plantation canavieira pelas Ligas Camponesas a partir do momento em que passaram a ser denunciadas publicamente pelo advogado Francisco Julião. É ampla a bibliografia sobre o fenômeno das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Sobre o cambão, consultar JULIÃO, Francisco. Cambão: a face oculta do Brasil. Recife: Bagaço, 2009. As memórias de um militante das ligas podem ser conhecidas em DA GALILEIA, Zito. A história das Ligas Camponesas: testemunho de quem a viveu. Recife: Cepe, 2016. Sobre o próprio Julião, consultar AGUIAR, Cláudio. Francisco Julião, uma biografia: o homem e a política, as ligas camponesas e a reforma agrária, exílio e ocaso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. Sobre as ligas, existe o clássico estudo de

Porto registrou a existência do barracão no Meio-Norte piauiense como um espaço de venda ou de troca do coco babaçu por gêneros alimentícios. Naquele contexto, o quebrador “que vende o seu coco a três cruzeiros o quilo [...] é forçado a comprar um cruzeiro e cinquen- ta centavos no barracão, cujos preços são bastantes elevados. O caboclo devolve [...] o aluguel não cobrado pela suposta generosidade” (1974, p. 132) do patrão. Tanto o caso dos canaviais com o caso dos babaçuais apresentam algum tipo de nexo monetário nas trocas entre proprie- tários e moradores e uma espécie de “dívida impagável” pelo morador nas condições estabe- lecidas pelos proprietários.

Pelo que contou Ribamar, o barracão em Ilha Grande não funcionava como espaço de troca da carga de arroz por gêneros alimentícios ou de venda de arroz ao dono de terra. Fun- cionava, isso sim, como um espaço no qual o roceiro pagava uma renda ao dono de terra por morar e plantar em sua propriedade. Nesse sentindo, assim como o cortador de cana de Per- nambuco o e quebrador de coco babaçu da Mata de Cocais, o roceiro estava em “dívida per- manente” com o patrão dos arrozais, pois a cada época de colheita do arroz essa dívida era renovava.

Figura 20 - Circuito de trocas entre o roceiro e o dono de terra com a intermediação do vaqueiro no barracão

Fonte: Elaborada pelo autor, 2019

Além da Pedra do Sal e do Labino, como apresentei anteriormente, a relação de mora- da estendia-se, então, para o Bom Jesus e para os Tatus, locais nos quais a morada se combi- nava com relações de trabalho em virtude desses locais serem de plantação de arroz. Nesse

sociologia BASTOS, Elide Rugai. As Ligas Camponesas. Petrópolis: Vozes, 1984. Sobre as Ligas no Piauí, consultar SOUZA, Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais. Tempo de esperança: camponeses e comunistas na constituição das Ligas Camponesas no Piauí entre as décadas de 1950 e 1960. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Piauí. Teresina, 2015.

sentido, o sistema de morada possuía diferenciações internas, como as destacadas por Riba- mar e Batistinha entre o roceiro e o pescador e que, além do dono de terra participava tam- bém desse sistema o vaqueiro como uma espécie de “mediador” entre os moradores e os Sil- va. Contudo, se o roceiro pagava uma renda ao dono de terra na forma de uma carga de arroz colhida, como o morador da Pedra do Sal, que não plantava arroz, que não era, nesse sentido,

mexido pelos proprietários, retribuía a morada na terra dos Silva?