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4. AGREGADOS E DONOS DE TERRA

4.3 A instituição da relação de morada

4.3.3 Fracos e fortes

Na história contado por Antônio, apresentada no início da discussão sobre a instituição da relação de morada, a “legitimação” da condição de agregado pelo próprio morador não

“terrenos interiores de ilha marítima” ocorreu apenas em 1976 com a aprovação do então Diretor Geral da Secretaria do Patrimônio da União (BRASIL, s/d, p. 01).

94 Como foi anteriormente apresentado neste texto, a partir do “Relatório de 1865” de Davi Caldas sobre sua navegação pelo Delta do Parnaíba e no “Caso curioso” ocorrido entre 1868 e 1869 na Pedra do Sal, relatado no jornal Cearense.

passa por ele despercebida. O interlocutor frisa que a mulherzinha, personagem da história que contou, podia ter outra atitude e reivindicar um pedaço de terra para ela – “podiam dizer assim, não, esse pedaço aqui é meu. Tudo foi fraqueza que se aproveitaram”. Mas por que, então, a mulher não disse ao Silva velho o que Antônio esperava que ela dissesse? A fraqueza da personagem destacada por ele pode ser compreendida em termos relacionais, o que lega ao Silva velho, por contraste, o sentido de “força”.

Quadro 3 - Categorias de percepção do morador em relação a sua condição e a dos Silva

MORADOR FAMÍLIA SILVA

Fraco Forte

Humilde Senhor

Caboco Doutor

Fonte: Elaborado pelo autor

Comentando sobre a teoria dos “atos de fala” do filósofo da linguagem John Austin, Bourdieu dirige uma crítica a maneira de encontrar a “eficácia simbólica” do “discurso” no próprio discurso. Para o sociólogo, não era ali que sua eficácia residia.

Conforme se pode constatar, todos os esforços para encontrar na lógica propriamen- te linguística das diferentes formas de argumentação (…), o princípio de sua eficácia simbólica, estão condenados ao fracasso quando não logram estabelecer a relação entre as propriedades do discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as

propriedades da instituição que o autoriza a pronunciá-lo (BOURDIEU, 1996, p.

89 [Destaques meus]).

A pista que Bourdieu oferece para o trabalho de interpretação do mundo social expres- so na história contada por Antônio, é estabelecer as relações entre o “discurso”, as “proprie- dades sociais” de quem o pronuncia e a “instituição” que o autoriza a pronunciar. Dessa ma- neira, a compreensão da “eficácia simbólica” dos “atos de fala” do Silva velho depende de determinar seu status e qual a instituição que o autorizava a executar atos de “magia social” como a transição de status dos moradores para condição de agregado.

João Silva, à época, meados do século XX, era um juiz de direito. Teve suas primeiras aulas em São Luís no Maranhão, estado no qual nasceram seus pais. Formou-se “bacharel” pela Faculdade de Direito de Recife, lugar onde eram educados os herdeiros de fazendeiros e donos de engenho do Nordeste. Como “bacharel” atuou em importantes centros como Piracu- ruca e Araioses. Era um filho de deputado provincial, capitão da Guarda Nacional e senhor de escravos com uma descendente de “nobre família maranhense” (PASSOS, 1982), ambos pro-

prietários de terras na região do Delta do Parnaíba. Vindos do Maranhão para Parnaíba, os filhos de Claro Silva e Geracinda Tavares estabeleceram matrimônios com os Moraes Correia, família já estabelecida naquele município como políticos, proprietários e donos do jornal o Nortista.

Foi essa pessoa que bem conhecia o “mundo das leis” e possuía o “habitus” (BOUR- DIEU, 1983) do proprietário que “saiu em casa e casa por aí. Nessas casa da pessoa humilde que não sabe nem o que é nada”, para usar as palavras de Antônio, e disse para aquela mu- lherzinha e tantos outros que povoavam Ilha Grande, que “a partir de hoje você é meu agrega- do, essa terra é minha”. Passados quase cem anos dos primeiros registros de terra do Silva velho encontrados durante a pesquisa, ainda rende a eficácia simbólica dos seus atos de fala que o instituiu como dono de terras e os outros como agregados, vide a terceira geração de seus descendentes ainda proprietários em Ilha Grande95.

As histórias sobre a chegada do Silva velho a cavalo na ilha foi uma forma dos mora- dores identificarem a passagem de seus antepassados para a condição de agregado dos Silva e descrever o estabelecimento daquilo que em ciências sociais se convencionou chamar de rela- ção de morada, ainda que a “morada” na Pedra do Sal e demais povoados apresente particula- ridades quanto a sua instituição, que a distância em relação aos casos brejeiro, canavieiro e sertanejo estudados décadas atrás. Do ponto de vista dos interlocutores, essa condição de agregado foi instituída arbitrariamente pelo Silva velho, que escreveu as terras em seu nome, valendo-se da fraqueza de uma gente “neutra que não sabia de nada”, segundo a avaliação negativa dos interlocutores sobre os antepassados. Desde essa época, “de lá pra cá”, comenta um morador, “tão em confusão as terras”.

Com este tópico busquei situar o leitor sobre como o morador pensa o que estou cha- mando de instituição da relação de morada na Pedra do Sal, que possui especificidade em relação a outros tipos de “morada” observadas em diferentes contextos sociais. É por serem já

moradores do lugar antes da chegada do Silva velho, de ali já terem pais e avós, que a relação

de morada, por mais que tenha sobrevivido ao longo de diferentes gerações de famílias de

95 No dia 12 de julho de 2018, o juiz federal José Gutemberg de Barros Filho, da Vara única de Parnaíba, recebeu denúncia contra Herbert de Moraes e Silva Júnior, filho de Herbert Silva, bisneto do Silva velho. Tratava-se de denúncia do Ministério Público Federal sobre Herbert Jr manter trabalhadores em condição análogo à de escravidão. A denúncia originou-se de fiscalizações ocorridas em agosto e outubro de 2014 na fazenda Bom Jesus de propriedade de Herbert Jr. em Ilha Grande. No local, o Grupo Especial de Fiscalização Rural do Ministério Público do Trabalho e Emprego no Piauí, encontrou 44 trabalhadores realizando a coleta de palhas de carnaúba em condições precárias, sem banheiro, dormindo em redes na mata, sem local adequado para se alimentar e sem registro de carteira de trabalho. Estes trabalhadores eram provenientes de Acaraú, no Ceará. Portal GP1. Bárbara Rodrigues. Juiz aceita denúncia contra filho do prefeito Herbert Silva. 31 de julho de 2018. Disponível em: <https://www.gp1.com.br/noticias/juiz-aceita-denuncia-contra-filho-do-prefeito-herbert-silva- 437251.html>. Acesso em 27 de julho de 2019.

moradores e dos Silva, como será discutido adiante, sofreu de uma espécie de uma má reputa- ção na ilha.

Mas as histórias de morador por aí não param. Mais complexa fica a morada e suas re- lações na ilha. A estrutura envolve mais do que aqueles que anteriormente se auto reconhe- cendo como moradores tornaram-se agregados após a chegada do Silva velho ao lugar. Parti- cipa dela, todavia, aqueles que lá não nascidos, contudo, pediram uma morada.