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4. AGREGADOS E DONOS DE TERRA

4.4. O funcionamento da relação de morada

4.4.2 O pedido de Ribamar

Após o Silva velho ter estabelecido a relação de morada na Pedra do Sal, aquele que almejava morar no lugar teria que pedir uma morada aos Silva. E foi assim que o anterior- mente mencionado Ribamar fez. No povoado dos Tatus ele nasceu e anos depois iniciou com Selena uma família no povoado Cal. De lá saiu em direção à Pedra do Sal, porque a sua roça era constantemente perdida quando subiam as águas do Rio Parnaíba, além do que, a família crescia, eram já seis curumins98 e o plantio não dava conta de tanta boca. Ele sabia que para morar na praia não podia apenas no lugar fazer sua casinha. Havia uma regra que ele já co- nhecia. Mesmo não conhecendo os Silva, nunca tendo visto um deles antes, sabia Ribamar de algumas das regras para morar na Pedra do Sal. Sabia, por exemplo, que pedir uma morada era a forma mais segura, apesar da burocracia, para ali se estabelecer com a esposa e os fi- lhos.

Era uma burocracia muito grande pra eles te liberarem [uma morada]. Ia lá várias vezes pra eles aceitarem você morar. Ia a Parnaíba, eles moravam em Parnaíba. Essa minha [casa] mesmo, foi uma burocracia. Assim, o vaqueiro era muito meu amigo e aí eu não conhecia a família Silva, conhecia só pelo nome. Eu era aquele pescador-

zinho lá, escondido. Aí um dia, o vaqueiro era muito meu amigo, aí eu comecei a

pedir a ele, pra ele pedir uma morada pra mim. Aí, até que um dia, nós vindo num ônibus, eu e o vaqueiro, e ele [Herbert Silva] tava ali na região. Esse que é hoje pre- feito da cidade de Ilha Grande [do Piauí], o Herbert. Aí eles conversaram, conversa- ram, aí eu cutuquei nele.

– Eduardo, peça aí a morada ao Seu Herbert. Ele foi e pediu.

– Ô doutor, eu queria que você desse uma morada pra mim.

– Uma morada pra você, Eduardo, quer morar agora na Pedra do Sal?

– É, bom, na verdade não é pra mim não, é pra esse cabôco. Ele é um dos nossos. Ele já envolvendo com política, né? Porque a gente só votava pra eles.

[...] Aí ele disse:

– Você quer morar aqui Eduardo?

– É, não é bem pra mim não, é pra esse cabôco, ele é um dos nossos.

98 Curumim é palavra que por lá se usa para referir-se a filho, neto, sobrinho, vizinho que não é velho, nem rapaz, mas também não é jovem. Curumim é, assim, equivalente a criança e de ambos os sexos, existindo, contudo, ainda, a variação curuminha para as meninas. É usada por adultos para referir-se a crianças, mas dificilmente será usada pelas próprias crianças ao referir-se umas às outras.

– Quando ele não for mais um dos nossos você [Eduardo] mata ele.

Não, deixe que eu mato, não precisa nem você mandar não, pode deixar que eu mato ele [risos].

– Pois mande esse filho de uma égua fazer a casa dele onde ele quiser (Entrevista com Ribamar em sua casa, 3 de setembro de 2016).

A história de Ribamar sobre como conseguiu uma morada informa a ocorrência de moradores de povoados vizinhos indo para a Pedra do Sal em busca de condições de vida e trabalho, indicando, assim, a existência de uma mobilidade das famílias da ilha entre diferen- tes povoados. Contudo, o que conta Ribamar para a compreensão da morada na Pedra do Sal está em descrever o funcionamento do ritual de pedir morada na praia aos Silva como algo que envolvia mais do que o pedido e a concessão de um terreno, mas que incluía também o

voto nos candidatos da família Silva como forma de retribuição do morador pelo acesso a mo-

rada.

Como é comum nas histórias de morador, não há o estabelecimento de uma data para o que se descreve, contudo, em conversa com a esposa de Ribamar, Selena falou-me que para a Pedra do Sal eles foram com os filhos na segunda metade dos anos 1980, o que indica algo sobre a extensão geracional da relação de morada existente entre os Silva e as pessoas do lu- gar, agora assumida por um neto do Silva velho, Herbert de Moraes e Silva99. Pode-se afirmar que o governo da relação de morada obedecia a uma ordem patrilinear, sendo passada através das gerações entre pais, filhos e netos100.

Figura 21 - Circuito de trocas entre aspirante a morador e dono de terra com intermediação do vaqueiro na praia

Fonte: elaborada pelo autor, 2019.

99 No período de meu trabalho de campo era então Herbert prefeito de Ilha Grande do Piauí, município situado no território de Ilha Grande de Santa Isabel. Ele é filho de João Tavares da Silva Filho.

A particularidade do caso de Ribamar encontra-se no lugar onde aconteceu o rito de

pedir morada e a presença do vaqueiro de Herbert, que era amigo seu. Nesse sentido, apesar

de ser comum ir à cidade de Parnaíba ou ao sítio Paraíso as margens do Igaraçu, Ribamar pe- diu a morada quando da presença do Silva na Pedra do Sal. E não foi ele próprio a pedir a Herbert, foi o vaqueiro que intermediou o pedido e a liberação para Ribamar construir sua casa na praia.

Assim, entre o cabôco e o Silva, localizava-se o vaqueiro. Este parecia ser uma espé- cie de “pessoa liminar” no universo social da Ilha, não só porque era um “intermediário” entre os Silva e o roceiro, como foi destacado sobre o plantio de arroz, mas porque ao mesmo tem- po em que obedecia às ordens do patrão também era amigo de morador. Assim, não é difícil entender por que ele operou um tipo de intermediação entre o pedido de Ribamar e a conces- são de Herbert Silva, justamente por possuir essa existência social liminar entre o mundo dos donos de terra e o mundo dos moradores.

Outra particularidade é que a concessão de morada a Ribamar por Herbert Silva foi condicionada a adesão eleitoral do primeiro ao segundo. Assim, ao conseguir a concessão de Herbert para construir uma casa na Pedra do Sal, Ribamar não apenas seria a partir dali um

morador dos Silva na praia, mas também continuaria a ser um dos nossos, expressão que no

vocabulário da relação de morada significava a “lealdade eleitoral” (CANIELLO, 1990) da pessoa a facção política dos Silva através do voto em seus candidatos nas eleições.

Como observou Dibe Ayoub (2016) em relação aos estudos de Palmeira (1992) e He- redia (2010), as “obrigações”, “compromissos” e “ajudas”, maneiras pelas quais as pessoas percebem seus vínculos umas com as outras, e que conformam “lealdades”, se sustentam em laços “entre pessoas que nem sempre são tidas como iguais”. No caso de Ribamar, manter-se na condição de um dos nossos era um pressuposto para a concessão de morada pelos Silva, condição que era afirmada por “meio do voto, que é a expressão de compromisso que se tem com um candidato” (AYOUB, 2016, p. 59).