• Nenhum resultado encontrado

SECÇÃO II UMA NOVA GESTÃO PÚBLICA

4. Instrumentos de proximidade aos atores locais

4.4. A municipalização das políticas educativas

A municipalização, enquanto maior intervenção dos municípios na provisão das políticas sociais, decorre de um aprofundamento ou especificação dos processos de descentralização e de territorialização.

O privilegiar os municípios, enquanto estrutura de intervenção no âmbito da educação, impõe-se pela sua relevância na governação local, pelo conhecimento dos contextos locais, pela proximidade aos cidadãos e pela tradição, que ao longo dos tempos tem sido construída, de prestação de serviços que contribuem e facilitam o acesso à

24 «No início da década de 60 surge nos EUA a campanha de educação compensatória, alguns anos mais tarde, na Grã-Bretanha, são criadas as Educational Priority Area (1968) e em 1981 são definidas as Zones d'Éducation Prioritaires (ZEP) em França e a primeira experiência portuguesa, Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), surge em 1996 sendo relançada, com algumas alterações, em 2006» (Cristina Roldão, p. 4).

43 escolaridade. A legitimidade da autoria das políticas públicas, que anteriormente considerámos como critério essencial da decisão política, aparece, no caso dos municípios, assegurada pelo voto democrático e pelo reconhecimento que, hoje em dia, os habitantes atribuem às autarquias locais, não só na prestação de diferentes serviços, nos quais, por vezes, se substituem ao poder central, mas também pelo papel que assumem junto da administração central na defesa dos direitos dos seus munícipes.

A valorização do poder local surge, tal como a educação, como um dos valores centrais da revolução de Abril de 1974. A necessidade de uma maior intervenção do poder local é suscitada pelo sucesso do aumento do acesso à escola. A vinda de mais alunos às escolas também é consequência de uma maior intervenção do poder local. Por outro lado, a chegada desta população à escola exigiu das escolas respostas para um conjunto de problemas para os quais as escolas e designadamente o os seus profissionais, os currículos e as respostas organizativas não estavam preparados. Assim sendo, tornou-se imperiosa a intervenção de outros atores, que pudessem colaborar com a escola na resolução destes problemas. A maior intervenção do poder local aparece na confluência de duas intenções: a de descentralizar os poderes do Estado e a de aumentar a intervenção do poder local, designadamente fazendo com que este deixe de ser simplesmente uma extensão do poder governamental para se colocar ao serviço dos interesses próprios das populações (art.º 235.º da Constituição da República25).

Em 1984 foram publicados diversos normativos sobre a intervenção das autarquias locais,26 alguns dos quais direcionados para a área da educação, contemplando a construção e equipamento de estabelecimentos, os transportes escolares, a ação social escolar, a

25 «Artigo 235.º (Autarquias locais) 1. A organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais. 2. As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas».

http://www.parlamento.pt/Legislacao/Documents/constpt2005.pdf

26 Decreto-Lei nº 77/84, de 8/3 - Define as competências municipais em relação a investimento público. Diploma que estabeleceu a delimitação de responsabilidades entre as Administrações Central e Local. Decreto-Lei nº 98/84, de 29/3 - Aprova o novo regime de finanças locais.

Decreto-Lei nº 100/84, de 29/3 - Lei das autarquias locais.

Decreto-Lei nº 299/84, de 5/9 - Regula a transferência para os municípios das novas competências em matéria de educação, financiamento e controle de funcionamento dos transportes escolares.

Decreto-Lei nº 399-A/84, de 28/12 - Estabelece as normas relativas à transferência para os municípios das novas competências em matéria social escolar em diversos domínios.

44 gestão dos refeitórios, os auxílios económicos, os financiamentos para a educação básica e de adultos, a ocupação de tempos livres, o desporto e a cultura.

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 299/84, que regulamenta o serviço de transportes escolares, veicula-se o significado simbólico deste diploma para o reforço do poder local, já que se trata da primeira área de competências a ser transferida da administração central para o poder local. Por outro lado, reconhece-se a importância da educação para a vida social, cultural e educativa das populações, o que é visto como uma forma de valorização do poder local.

A Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (Lei n.º 5/97) aumentou o papel dos municípios neste âmbito de modo a impulsionar o alargamento da rede de oferta educativa. Pinhal (2014) sublinha a importância de um conjunto de medidas com origem no designado Pacto Educativo para o Futuro, pelo facto de darem um carácter mais político à descentralização», ainda que «insistisse na “centralidade da escola” como paradigma da criação de políticas educativas» (2014, p. 121).

A Lei n.º 159/99 reforça as competências já transferidas para os municípios e atribui- lhes novas responsabilidades na gestão do pessoal não docente e nas atividades de complemento curricular.

Em 2003, para além de novas competências para os municípios, é regulamentado, pelo Decreto-lei nº 7/2003, o conselho municipal de educação27 e a necessidade de conceção das cartas educativas28.

Apesar desta previsão legal e da sua importância enquanto instrumento visível e simbólico da intervenção do município na educação (Bouvier, 2012), em 2005 constatou-se

27 O conselho municipal de educação é uma «instância de coordenação e consulta, que tem por objectivo promover, a nível municipal, a coordenação da política educativa, articulando a intervenção, no âmbito do sistema educativo, dos agentes educativos e dos parceiros sociais interessados, analisando e acompanhando o funcionamento do referido sistema e propondo as acções consideradas adequadas à promoção de maiores padrões de eficiência e eficácia do mesmo». (art.º 3º do Decreto-lei nº 7/2003). 28 «A carta educativa é, a nível municipal, o instrumento de planeamento e ordenamento prospectivo de edifícios e equipamentos educativos a localizar no concelho, de acordo com as ofertas de educação e formação que seja necessário satisfazer, tendo em vista a melhor utilização dos recursos educativos, no quadro do desenvolvimento demográfico e sócio-económico de cada município». (Art.º 10.º do Decreto- lei nº 7/2003).

45 que, em cerca de 300 concelhos, só 24 tinham as cartas educativas29 concluídas e 20 % dos municípios não tinham constituído o Conselho Municipal de Educação (Rodrigues, 2010).

Com o Decreto-lei nº 144/2008, de 28/07, alargou-se aos 2.º, 3.º ciclos e ensino secundário a transferência de atribuições e competências em matéria de educação, para a administração local, designadamente nas áreas de pessoal não docente30, ação social escolar31, transportes escolares32, componente de apoio à família33, construção, manutenção e apetrechamento dos estabelecimentos de ensino,34 atividades de enriquecimento curricular35. Pinhal (2014) considera que houve aqui um aumento das

29 Em dezembro de 2004, o Ministério da Educação e a Associação Nacional de Municípios Portugueses assinaram um protocolo com «os termos da articulação entre a administração central e central desconcentrada e cada um dos Municípios para a elaboração das cartas educativas». Nesse protocolo é aprovado o modelo de carta educativa.

Em outubro de 2005, o Ministério da Educação celebrou um acordo com a Associação Nacional de Municípios onde, entre outros assuntos, se comprometeu «a assumir as suas responsabilidades ao nível do pagamento da parte que lhe compete dos custos das cartas educativas, durante o ano de 2006 para as que sejam adaptadas e concluídas no decorrer desse mesmo ano e durante o ano de 2007 para as restantes, à medida que forem sendo concluídas, nos termos da cláusula quarta do protocolo celebrado em Dezembro de 2004, entre a ANMP e o ME». n.º 3.

Disponível em http://www.anmp.pt/anmp/proto/2007/PGJ0503.pdf

30 «É transferido para os municípios o pessoal não docente das escolas básicas e da educação pré -escolar a que se refere o artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 184/2004, de 29 de Julho, em exercício de funções à data da entrada em vigor do presente decreto -lei». (Artigo 4.º).

31 «São transferidas para os municípios as atribuições ao nível da implementação de medidas de apoio sócio-educativo, gestão de refeitórios, fornecimento de refeições escolares e seguros escolares». (Artigo 7.º.).

32 «São transferidas para os municípios as atribuições em matéria de organização e funcionamento dos transportes escolares do 3.º ciclo do ensino básico». (Artigo 9.º).

33 «São transferidas para os municípios as seguintes atribuições em matéria de educação pré -escolar da rede pública:

a) Gestão de pessoal não docente, nas condições previstas no artigo 4.º;

b) Componente de apoio à família, designadamente o fornecimento de refeições e apoio ao prolongamento de horário;

c) Aquisição de material didáctico e pedagógico». (Artigo 10.º).

34 Construção, manutenção e apetrechamento de estabelecimentos de ensino

«São transferidas para os municípios as atribuições de construção, manutenção e apetrechamento das escolas básicas». (artigo 8.º)

35 «São transferidas para os municípios as atribuições em matéria de actividades de enriquecimento curricular no 1.º ciclo do ensino básico, sem prejuízo das competências do Ministério da Educação relativamente à tutela pedagógica, orientações programáticas e definição do perfil de formação e habilitações dos professores». (artigo 11.º)

46 responsabilidades municipais, se bem que tenha existido «uma regulamentação pormenorizada que deixou pouca margem para variedades locais» (2014, p. 127).

Na análise do caso francês, Dutercq (2009, p. 93) considera que «se tornou imperativo partilhar tarefas e a forma mais adequada de o fazer é sobre uma base territorial».

Embora as responsabilidades iniciais tendam para uma atuação de caráter gestionária dos processos, a intervenção dos atores autárquicos e da comunidade pode ocorrer também ao nível de outras áreas, como seja, por exemplo, o planeamento da oferta educativa em ligação com outras organizações da comunidade e regulando a oferta e a empregabilidade no conjunto do território. Esta modalidade de descentralização reforça a aposta no poder local e liberta a escola e os professores da gestão de determinadas funções logísticas e instrumentais, permitindo a sua recentração nas componentes pedagógicas e didáticas rentabilizando os seus conhecimentos e competências.

O percurso descrito até aqui permite recuperar a metáfora d’«os caminhos da descentralização», usada por Barroso (1996c), quando dizia que a descentralização,

«à semelhança de um “caminho” é «um “espaço” muitas vezes sinuoso e acidentado, que implica “tempo” (duração) para ser percorrido e que não constitui um fim em si mesmo, (…) além de que “o caminho se faz caminhando”, do mesmo modo que a “descentralização” se faz “descentralizando”, isto é conquistando a autonomia e exercendo localmente o poder» (1996c, p. 11).