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SECÇÃO I AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO AÇÃO GOVERNAMENTAL

3. As políticas educativas como atribuição do Estado

O princípio da educação escolar obrigatória, assumida como um serviço do Estado, tem as suas raízes na Revolução Francesa e na Revolução Industrial.

A escolaridade é entendida numa dupla vertente, por um lado correspondendo a um desejo e interesse individual dos cidadãos, por outro, como uma aposta dos estados, tendo em conta a mais-valia da educação para o desenvolvimento industrial, económico, social, político e cultural da comunidade.

No caso de Portugal, é comum tomar-se como especial referência da intervenção do Estado o momento em que o Marquês de Pombal5 retirou à Igreja o controlo sobre a educação, substituindo-se, deste modo, à Igreja e à família (Teodoro, 2010; Candeias, 2001). Carvalho (1996) procede à análise do alvará com que Pombal pôs termo à atividade pedagógica da Companhia de Jesus e considera que, com a criação do lugar de Diretor-Geral dos Estudos, «pela primeira vez, na história do nosso ensino, vai surgir uma entidade,

subordinada ao poder vigente, que superintende nos serviços do ensino elementar e

médio, equivalente a um actual Director-Geral do Ensino» (p. 437) (negrito nosso).

Porém, o investimento na educação foi moroso e sujeito a diversos avanços e recuos. O século XIX foi considerado o século da Escola, no entanto «seis anos decorridos sobre a publicação do alvará, a situação do ensino nas Escolas Menores apresentava-se deplorável» (Carvalho, 1996, p. 437). A continuidade do baixo número de alfabetizados fez com que, na I República, se considerasse o analfabetismo uma “vergonha nacional” e, no meio da luta política a que esta realidade dá fundamentos, Afonso Costa, em 1916, fixa o objetivo de que «em duas gerações se possa “extinguir essa chaga horrível que se chama o analfabetismo”» (Nóvoa, 1988, p. 32).

5 Segundo Teodoro (2010, p. 15), «pode afirmar-se que, após as reformas de Pombal, o Estado tornou-se o quase único agente de escolarização».

15 Na I República, reconhece-se a necessidade de todos acederem a um nível mínimo de instrução, que possibilitaria a libertação dos espíritos da ignorância e das superstições (Nóvoa, 1991) e a integração na sociedade republicana. Afonso Costa, citado por Nóvoa, afirmava que «a República6 está disposta a sacrificar-se pela instrução. […] A instrução vai ser, depois da imediata satisfação de todos os princípios liberais, a mediata cruzada da República que espalhará a instrução a ondas» (Nóvoa, 1988, p. 30).

Estes propósitos materializaram-se em diferentes iniciativas7. No entanto, no final dos curtos e atribulados anos da República, «2 em cada 3 crianças portuguesas não cumprem a escolaridade obrigatória» (Nóvoa, 1988, p. 30), tudo isto porque

«os republicanos nunca compreenderam que os seus esforços em favor da instrução se situavam muito mais numa linha de continuidade em relação à última fase da Monarquia do que numa dinâmica de ruptura. Não compreenderam que os sistemas educativos mudam a um ritmo extremamente lento e que muito mais decisivo do que as medidas fortes e pontuais é a capacidade para instituir as condições que permitam uma evolução tendencial num sentido positivo» (Nóvoa, 1988, p. 34).

Tomando por base os estudos feitos por Harvey Graff (1991) a propósito do grau de alfabetização da Europa nos séculos XIX e XX, Candeias (2005) concluiu8 que

6 A República pretendia transformar a mentalidade portuguesa, pela via da educação e da instrução, falando João de Barros em «”educação republicana”, educação interessada na criação de uma nova maneira de ser português, capaz de expurgar a Nação de quantos males a tinham mantido e mantinham, arredada do progresso europeu (…)» (Carvalho R. , 1996).

7 Reforma do Ensino Primário e Normal de 1911.

«Uma das estratégias definidas após 1910 para travar o combate conta o analfabetismo foi a criação das escolas móveis, tidas como uma das realizações mais notáveis da obra educativa republicana». (Nóvoa, 1988, p. 32).

«Para além das reformas do sistema educativo várias medidas administrativas são sugeridas, em jeito de sanção aos analfabetos, nomeadamente: serviço militar mais longo, não concessão de passaportes, proibição de emigrar, proibição de casar até aos 23 anos, criação de um selo (imposto) do analfabeto». Houve uma expansão da rede escolar primária, tendo sido criadas centenas de escolas.

Alterações ao nível da escolaridade obrigatória: Até 1919 mantém-se nos 3 anos, data em que é fixada em 5 anos. «Trata-se de uma medida sem qualquer possibilidade de ser posta em prática, mas que constitui um marco de referência no pensamento pedagógico e confirma as perspectivas de democratização do ensino dos políticos republicanos» (Nóvoa, 1988, p. 37).

8 Num outro ponto da sua análise considera que «Portugal é uma sociedade em que a educação moderna, ou seja, a escola contemporânea, do Estado ou por ele controlada, de frequência obrigatória para classes de idade determinadas por lei, independentemente do sexo, da etnia ou da religião, é de implantação extremamente tardia, por comparação com os países da sua área geográfica». (Candeias, 2005, p. 494) No seu entender, «Portugal e, de certa forma, também a Espanha, (…) foram (…) incapazes de construir o Estado-nação moderno nas condições relativamente benignas do liberalismo da segunda metade século

16 «no que respeita à implantação do modo de cultura predominante da modernidade, a cultura escrita, Portugal tem estado, desde meados do século XIX, separado do espaço geográfico e cultural de que faz naturalmente parte, tornando- se uma periferia da periferia, e tal deriva agrava-se durante o século XX, quando o país se torna ele próprio uma tendência, ou seja, evidencia um atraso tal que não é «agrupável» com outros países europeus» (Candeias, 2005, p. 484).

Também Teodoro (2010) regista diversas iniciativas tomadas pelo Estado português no sentido de incentivar o investimento na escola, como o facto de ser, provavelmente, o quarto país no mundo a publicar, em 1835, uma lei estabelecendo o princípio da escolaridade obrigatória. Apesar disso, constata que

«a expansão da escolarização de massas em Portugal pode ser considerada como um processo típico do que Yasemin Soysal e David Strang (1989) designaram de construção retórica da educação: uma significativa precocidade no plano legislativo e no discurso político sobre o papel da escola na modernidade e uma continuada denegação de recursos para o incremento da escolarização» (p. 16).

Apesar de algumas dúvidas, hesitações e contradições9, o Estado assumiu, ao longo dos séculos XIX e XX, um papel determinante na criação e desenvolvimento da escola de massas, na senda do espírito republicano de uma escola democrática, centralizada e laica, onde «ler, escrever e contar, ainda por cima na mesma língua, eram exigências da organização militar e da eficácia laboral» (Barreto, 1995, p. 163).

O período posterior à segunda guerra mundial marca a passagem de uma escola elitista para uma escola de massas. «Neste período, a expansão quantitativa dos sistemas escolares coincide com uma atitude optimista que associa “mais escola” a três promessas: uma promessa de desenvolvimento, uma promessa de mobilidade social e uma promessa de igualdade» (Canário, 2004, p. 53).

XIX, vieram a fazê-lo na primeira metade do século XX (…). A fraqueza das suas elites e o atraso da acumulação de riqueza realçaram, nesta transição, uma visão «reguladora» que, partindo do princípio de que os «seus» povos não estavam preparados para a «modernidade» plena, acentuou os mecanismos de bloqueio à difusão de práticas sociais autónomas, sendo a educação um caso sintomático». (Candeias, 2005, p. 496) .

9 Porém, não podemos pensar, como ilustra Filomena Mónica (1978), que houvesse uma unanimidade generalizada sobre a importância e necessidade de o Estado dever investir num sistema educativo nacional. A autora cita intervenções de alguns deputados, durante o Estado Novo, onde são notórias as dúvidas sobre a vantagem da escolarização da população: João Ameal - «Portugal não necessita de escolas»; «Ensinar a ler é corromper o atavismo da raça». Virgínia de Castro e Almeida - «A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75 por cento de analfabetos». O conde de Aurora - «Felizes aqueles que não sabem ler!».

17 São estas promessas que sustentam também o investimento na educação no período após o 25 de Abril de 1974. Apesar da instabilidade governativa da época, a aposta na educação surge como um apanágio da luta contra o fim da ditadura e como um sinal, bem acolhido pela população, da instituição de um estado democrático.

Os investimentos em educação são justificados e compreendidos como a possibilidade de a generalidade da população poder aceder à oferta educativa, sem qualquer restrição. A educação é vista como veículo de promoção social das populações, designadamente para os jovens de origens camponesas e do operariado, e como uma condição de crescimento e desenvolvimento económico. A afirmação deste desígnio permite acentuar a diferença entre o novo Estado democrático e o anterior regime, servindo de legitimação à revolução e de baluarte à construção de uma sociedade igualitária, livre e democrática.

É comum constatar-se a existência de uma reciprocidade entre os contributos do Estado para a educação escolar e desta para o crescimento e fortalecimento do país, já que ela veiculava e difundia uma visão de identidade nacional, contribuindo, desse modo, para a construção do Estado Nação. Afonso (2001) diz mesmo

«que a construção dos modernos Estados-nação não prescindiu da educação escolar na medida em que esta se assumiu como lugar privilegiado de transmissão (e legitimação) de um projecto societal integrador e homogeneizador, isto é, um projecto que pretendeu, mesmo coercivamente, sobrepor-se (e substituir-se) às múltiplas subjectividades e identidades culturais, raciais, linguísticas e religiosas originárias» (2001, p. 18),

o que, segundo Barreto (1995, p. 161), «consagram a visão centralizadora e unificadora da instrução».

Embora existam diferentes apreciações sobre o evoluir da situação portuguesa, é importante registar o sucesso, embora tardio, do sistema educativo português na generalização da escolaridade obrigatória às populações em idade escolar10.

10 Gomes diz que «ao contrário de outros países europeus, Portugal, só muito recentemente tem promovido a consolidação da escola de massa através do alargamento da escolaridade obrigatória a nove anos e do aumento das taxas de escolarização». (Gomes, 1999, p. 141).

«Portugal chega à década de 70 com os mais baixos índices de escolarização europeia. Também por virtude da intervenção crescente da OCDE a valorização do capital humano passa a ser a lógica dominante das reformas». (Gomes, 1999, p. 136).

No quadro a seguir apresentado damos conta do número de alunos matriculados no ensino público entre 1971 e 2000. Podemos verificar momentos de acentuado aumento desse número (a amarelo – ensino

18 A necessidade de facultar o acesso à escolarização à generalidade da população é intrínseca à representação do papel do Estado e requereu o desenvolvimento de uma rede escolar que, gradualmente, abrangeu todo o território nacional. Paralelamente e de um modo crescente, foi efetuado um investimento na formação, no recrutamento de docentes, na organização do currículo, na produção de manuais escolares, na gestão financeira das escolas e no apoio às famílias, pela via da ação social escolar, das refeições e dos transportes escolares.