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SECÇÃO I AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO AÇÃO GOVERNAMENTAL

5. A regulação profissional e nacional na ação de outros atores

A definição de regulação apresentada por Bauby (2002, p. 21) «como modos de ajustamentos permanentes de uma pluralidade de ações e dos seus efeitos, permitindo assegurar o equilíbrio dinâmico de sistemas instáveis», bem como o reconhecimento de que a regulação decorre da impossibilidade de as regras poderem prever tudo, principalmente em sistemas complexos e descentralizados como as escolas, justificam o, posterior, surgimento de processos de interpretação e adaptação às situações concretas dessas normas, decididas centralmente.

12 Estado Educador é definido por (Maroy, 2006) como o Estado que toma a seu cargo, com graus diversos, a implementação do serviço educativo.

21 A atuação disseminadora e centralizada do Estado fez-se com o recurso a um conjunto de instrumentos de caráter legislativo tratando de modo uniforme, formal e impessoal13 todo o sistema educativo. Porém, os resultados da ação do Estado na expansão do sistema, com mais escolas e uma maior oferta formativa, provocaram também o fortalecimento e expansão de uma regulação profissional protagonizada por parte dos docentes e, de um modo específico, das suas organizações profissionais. O crescimento do sistema provoca um aumento do número de docentes e o surgimento de uma intervenção corporativa e profissional com enfoque na formação, no recrutamento e na gestão da carreira.

No contexto escolar, a figura do professor torna-se central na regulação - aqui entendida como interpretação, explicação, adaptação de normas - da vida escolar, não só pelo seu papel de interlocutor privilegiado com o exterior, designadamente com os encarregados de educação e o poder local, mas principalmente pelas responsabilidades que assume na gestão das escolas e pelas atribuições ao nível dos processos pedagógicos e didáticos, onde se abre um amplo espaço de autonomia na sua intervenção. O professor é visto como a autoridade, não só como representante da administração, mas também dos princípios e valores que caraterizam a escola. As situações de isolamento das escolas, a conceptualização do professor enquanto agente de conhecimento e o facto de este trabalhar com crianças e jovens, em idade de limitada autonomia, reforçam a sua centralidade, autoridade e legitimidade na gestão da educação e na regulação das políticas educativas.

Clarke & Newman (1997) referem que a institucionalização do serviço público, quanto ao conjunto de valores, normas, comportamentos e práticas, como a própria estruturação do Estado-providência, fizeram-se através de um compromisso entre dois modos de coordenação: a administração burocrática e o profissionalismo (Barroso, 2006b).

Também Maroy (2005, p. 4) diz que «o modelo “burocrático-profissional da regulação dos sistemas educativos acompanhou, com importantes variantes nacionais, a

13 «Quer a impessoalidade quer a uniformidade são instrumentos para a consecução da racionalidade administrativa. Tais vantagens eram claramente apreciadas pelos liberais do séc. XIX pois viam nesta impessoalidade e uniformidade e no culto da distância e da reserva a maneira ideal de subtrair o Estado e os seus agentes quer às influências da Igreja quer à dos caciques locais; assim poderiam impor, a partir de cima, a partir de uma elite iluminada, os novos ideais democráticos e o progresso da ciência e da razão» (Formosinho, 2005, p. 16).

22 construção e o desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais “de massa” desde os anos de 1950/60».

João Barroso, no seguimento dos seus estudos de 1995, defende que a história da escola esteve marcada, durante o século XX, por uma tensão permanente entre uma “racionalidade administrativa” e uma “racionalidade pedagógica” que configuram dois modos distintos de regulação:

«Uma regulação estatal de tipo burocrático e administrativo, onde a escola é vista como um serviço do Estado sujeita a uma rede complexa de normativos que reforçam a intervenção da administração central direta (através do seu corpo de funcionários e inspetores) e mediatizada através do diretor da escola, cuja função essencial é fiscalizar o cumprimento das normas e regulamentos.

Uma regulação corporativa de tipo profissional e pedagógico, em que a escola é vista como uma “organização profissional” com uma gestão de tipo colegial, gozando de uma relativa autonomia pedagógica e financeira, onde o diretor exerce as funções mais como um líder pedagógico do que como um administrador delegado do poder central» (Barroso, 2005a, p. 426).

Este tipo de atuação, eventualmente também moldada pelos mecanismos de eleição ou de designação do diretor de escola fazendo com que a sua atuação seja pautada por estratégias ambivalentes e, até, contraditórias, na sua relação com a tutela e na solidariedade para com o seu grupo profissional. Barzanò (2009) no estudo comparativo que fez sobre as culturas de liderança e lógicas de responsabilidade, em Inglaterra, Itália e Portugal, conclui que «o principal sentido de responsabilidade dos diretores era para com os professores, os alunos e os pais, com as autoridades locais a desempenhar um papel menor» (p. 297), daí que no papel de diretor de escola, se confundam as funções de administração do poder central com as de um líder pedagógico dos docentes da escola (Barroso, 2005a). Este tipo de regulação, quer da parte do Estado quer da parte dos professores, fomenta uma menor intervenção dos pais, dos alunos e da comunidade na gestão da Escola (Barroso, 2005b, p. 73).

Mais do que o confronto entre dois mecanismos de regulação, surgem aqui novas possibilidades de regulação do sistema, as quais, curiosamente, tendem ambas para mecanismos de regulação nacional. Se o Estado atua a nível nacional para, de um modo mais eficaz, abranger todo o território nacional, também os representantes dos professores fomentam uma homogeneização do sistema e defendem uma atuação forte do Estado, designadamente nas questões do foro laboral, o que lhes facilita o conhecimento, a

23 presença e a influência em todas as escolas do país. Quanto mais idênticos forem os problemas e os contextos, maior será a abrangência das soluções por si propostas e a economia de meios necessários na sua regulação profissional. Neste sentido, os princípios da atuação burocrática do Estado são adotados pelas estruturas representativas dos docentes, as quais recorrem também a uma rede de colegas que se equiparam, no processo de transmissão, aos “funcionários” administrativos dos sistemas burocráticos. Como bem salienta Barreto (1995), «no essencial, unidade, integração e centralidade são também o resultado da acção dos professores, suas associações e sindicatos» (p. 165). As tomadas de posição por parte das associações representativas dos professores, como veremos, ilustram este tipo de comportamento que privilegia a uniformidade das regras, a sua centralização e uma oposição à intervenção de outros atores.

Acresce ainda que os mecanismos de regulação profissional tendem a aproveitar e capitalizar as fragilidades e instabilidade da ação governativa, transformando-as, estrategicamente, em armas ao serviço de uma atuação corporativa. Barreto (1995) constata que

«de modo muito claro em Portugal, mas também frequente noutros países, sempre os professores viram com receio uma eventual dependência funcional ou contratual de outras entidades que não o Estado: pais, comunidades locais, autarquias, associações, empresas privadas e igrejas não são bem vistos, pelos professores, como eventuais substitutos do Estado central e do Ministério da Educação» (Barreto, 1995, p. 165).

Nóvoa (1988) dá-nos conta da forma tempestuosa como se pronunciaram os professores perante as diferentes tentativas de descentralização do ensino ensaiadas durante o período republicano14. A reação havida em 1924 tem paralelo com atitudes

14 Neste contexto compreende-se melhor a resistência tenaz que o professorado primário opôs a quase todas as tentativas de descentralização do ensino ensaiadas durante o período republicano. Desde logo, por ocasião do primeiro ímpeto descentralizador republicano, em 1913: «“Hoje, mais do que nunca, os professores são oprimidos e escravizados por vereadores ignorantes, por regedores ineptos”. Mais tarde, quando João Camoesas apresentou em 1923 o seu Projecto de Reforma da Educação, que recebeu a adesão entusiástica da União, excepto no que diz respeito à proposta de descentralização. Finalmente, em 1924, no momento em que o ministro António Sérgio intentou reabrir o dossier: “Ao Sr. António Sérgio gritamos com toda a força dos nossos pulmões, porque a razão está do nosso lado: Instrução a cargo das Câmaras? Não e não”. Por detrás destas reações estão sobretudo dois receios: “receber ordens de quem sabe menos” e “ser transformado num empregado Camarário”» (Nóvoa, 1988, p. 44).

Só um projecto descentralizador contou com o apoio e o empenhamento dos professores: as juntas escolares. Segundo Nóvoa tal acontece porque contrariamente aos projectos de “descentralização municipalista” as juntas escolares consagravam uma importante participação dos professores na gestão e na administração do ensino (Idem, p. 44).

24 expressas noutros momentos de transferência de competências, por exemplo para as autarquias locais, e ilustra a dificuldade de outros grupos entrarem no seio da escola. Num comunicado de 9 de fevereiro de 2008, o Secretariado Nacional da Federação Nacional dos Professores (FENPROF) dizia:

«A FENPROF exigiu (8/02/2008) ao Primeiro-Ministro a negociação do projecto de Decreto-Lei que prevê a transferência de novas competências para os municípios em matéria de Educação. Tal deveu-se ao facto de, no artigo 11.º do projecto do Governo (a que a FENPROF apenas teve acesso informal), se prever a possibilidade de os municípios assumirem a gestão do pessoal docente, bastando que, nesse sentido, celebrem contratos específicos com o Governo.

(…)

Já no que diz respeito à selecção e gestão do pessoal docente, a FENPROF é liminarmente contra qualquer processo de transferência destes profissionais para outras tutelas. Os docentes deverão ser seleccionados pelo Ministério da Educação com base em critérios justos, equitativos e transparentes; a acção disciplinar não pode deixar de ser assumida pelas instâncias próprias da Educação, designadamente a IGE; as tutelas pedagógica e administrativa terão de se manter no Ministério da Educação» (FENPROF, 2008).

Por seu lado, também a FNE, em comunicado de 13/02/2008, rejeita a descentralização de competências para os Municípios, dizendo que

«uma tal medida que não tem qualquer justificação, nem em nada contribui para a melhoria do funcionamento do sistema educativo ou da sua eficiência, e que portanto não é oportuna» (FNE, 2008).