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SECÇÃO I AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO AÇÃO GOVERNAMENTAL

2. O primado do Estado nas políticas sociais

A referência que fazemos a políticas sociais parte do entendimento expresso por Leal (1985) quando, em face da Constituição de 1976, considera as políticas sociais «como acções destinadas a realizar ou a satisfazer os direitos dos trabalhadores (tanto de natureza cívica como de natureza económica), os direitos sociais e o direito à educação» (p. 925). Se, de um modo genérico, podemos situá-las naquilo que se refere ao bem-estar social das pessoas, elas concretizam-se, ente outras, na política educativa, nas políticas de emprego, da habitação, da cultura, da saúde, da emigração e da proteção social, na linha do que Bismarck havia defendido (Lambert, 2010). Distinguem-se daquelas que, de um modo mais focalizado, têm como prioridade o desenvolvimento económico e o aumento de capital. Porém, quer umas quer outras, não podem ser vistas de um modo independente, já que a origem e eficácia de umas decorrem das fragilidades e do sucesso de outras.

O crescimento económico, registado após a II Guerra Mundial, suscitou um aumento do emprego com os naturais e consequentes benefícios para os trabalhadores. Porém, a necessidade de estes investirem parte dos seus rendimentos nas áreas sociais, como a saúde, a educação e a segurança no emprego, diminuía as possibilidades de canalizarem os seus rendimentos para o consumo. O não aumento do consumo fazia diminuir a produção e, por consequência, o emprego. A disponibilização de serviços sociais aos trabalhadores diminuía os encargos das famílias, que assim podiam libertar as suas economias para o consumo, contribuindo para um crescimento da procura, com aumento da produção e do emprego.

11 Neste enquadramento, ganha importância a intervenção da entidade governativa na condução das políticas públicas, procurando regular e estabelecer equilíbrios num compromisso, como lhe chama Boaventura Sousa Santos, entre o Estado, o capital e o trabalho (Santos, 1987). O papel regulador assumido pelos governos requer que os patrões abdiquem de parte dos seus lucros e os trabalhadores de parte das suas exigências. O Estado passa a investir os «recursos financeiros que lhe advêm da tributação do capital privado e dos rendimentos salariais, em capital social2» (Santos, 1987, p. 14), assegurando, com essas verbas, aos trabalhadores garantias face à eventual perda ou instabilidade do emprego, garantindo-lhes serviços de saúde, de educação e de segurança social. Paralelamente, havia também um benefício para os patrões, na medida em que estavam menos expostos às reivindicações de melhorias salariais e de condições de trabalho. Este investimento do Estado revertia, assim, em ganhos para todas as partes, patrões, trabalhadores e para o próprio Estado.

Com a gestão destes equilíbrios e o investimento nestas áreas sociais, o Estado, paulatinamente, assume-se como Estado-providência, num papel de moderador e de fiel da balança, quer da vida económica quer da vida social, cuja complexidade tendia a aumentar fruto da divisão social do trabalho e dos processos de urbanização e industrialização. Mozzicafreddo diz que «quanto mais a diferenciação, mais a necessidade de organização institucional que assegure a integração e a interdependência dos indivíduos» (1994, p. 14). O contexto histórico de duas guerras mundiais fez com que, principalmente na segunda metade do século XX, «os Estados Ocidentais assumissem como suas, as funções de carácter social iniciando as chamadas “Grandes Reformas Sociais”, constituindo o período entre 1945-1975 a idade de ouro do Estado de Welfare» (Rocha, 2010, p. 40). O

Welfare State carateriza-se por um esforço do Estado «para modificar as condições do

mercado e proteger os indivíduos das consequências económicas que os poderiam afetar» (Meny & Thoenig, 1992, p. 19).

2 Boaventura Sousa Santos (1987, p. 14) ilustra este investimento social com bens e serviços, que aumentam a produtividade do trabalho, tão «díspares como as despesas com parques industriais subsidiados pelo Estado, auto-estradas, portos e aeroportos, electricidade para a indústria, planos de rega, tele-comunicações, formação profissional, investigação cientifica aplicada (I e D)».

12 Embora a intervenção do Estado na condução das políticas públicas seja mais evidente a partir da segunda metade do século XX, a organização de serviços de distribuição de recursos entre os pobres, ainda que rudimentares, aparecem na Europa nos séculos XVI- XVII (Meny & Thoenig, 1992). Habitualmente considera-se que os mecanismos de proteção social decorrentes da industrialização são oriundos do final do século XIX, designadamente da Alemanha de Bismarck, entre 1883 e 1889. Perante a legislação sobre acidentes de trabalho, estabelecida em 1881 na Alemanha e, em 1898, na França, que assegurava aos trabalhadores dois terços dos rendimentos em caso de incapacidade total, Mozzicafreddo sublinha, como novidade e profunda alteração da filosofia social da época, o facto de o acidente de trabalho não ser «encarado como sendo da responsabilidade do indivíduo ou da empresa, mas sim da sociedade no seu conjunto» (1994, p. 16s).

O desenvolvimento da indústria, com deslocação de trabalhadores e das suas famílias para os grandes centros, no início do século XX, desencadeia a quebra das redes de apoio social, das redes familiares e comunitárias destes trabalhadores, aumentando a exposição ao risco do próprio trabalho, o que amplia a necessidade de mecanismos de proteção social3. Entre 1903 e 1929, tem lugar a introdução

«nas principais sociedades industrializadas da Europa, incluindo as sociedades escandinavas, os esquemas de segurança social básica, nomeadamente, seguros de

3 Mozzicafreddo (1994, p. 21s) lista um conjunto diversificado de serviços que o Estado-providência assegurava:

«a) sistemas de segurança social, universal, uniforme e centralizado, abarcando situações de risco, incapacidades físicas e etárias várias, seguros de desemprego, vários tipos de reformas e pensões, etc; b) sistema de provisão de serviços sociais, institucionais e directos, tais como saúde, educação, formação profissional, investigação e desenvolvimento, equipamentos sociais básicos;

c) sistemas de transferências sociais de benefícios monetários de dimensões diversas, tais como, abonos de família, subsídios ao nascimento e assistência aos filhos, subsídios à maternidade, comparticipação nos medicamentos e tratamentos de saúde, atribuição de subsídios para a reconversão profissional, abonos complementares, educação especial, manuais escolares, subsídios de casamento, de funeral, de deslocação, de interioridade, etc.

(…)

d) sistemas de assistência e de acção social, encaminhados para cobrir as categorias de cidadãos socialmente necessitados, tais como os indivíduos em situação de doenças físicas, mentais, de incapacidade física por deficiência, sectores desprotegidos da terceira idade, grupos marginalizados em risco social ou marginalizados em consequência da desagregação das estruturas sociais:

e) sistemas específicos não estruturais de atribuição de benefícios sociais e monetários indirectos, tais como deduções fiscais a in divíduos e entidades colectivas, linhas específicas de crédito para aquisição de serviços, subsídios à investigação, formação acadêmica e profissional, compensação social conjuntural para categorias sociais, individuais e colectivas, devido a processos de reestruturação das actividades econômicas e sociais;».

13 acidentes de trabalho, seguros de doença, seguros de velhice-invalidez e seguros de desemprego” (Mozzicafreddo, 1994, p. 18).

Este tipo de intervenção do Estado, que ocorre ao longo de todo o século XX, tem lugar também em Portugal. Segundo Pereira (1999),

«Antes de 1910, a intervenção social do Estado tinha um alcance muito limitado. (…) De 1919 em diante, começou a ser implementado um sistema completo de segurança social. Num espaço de tempo relativamente curto, Portugal, que nesta área não tinha anteriormente acompanhado outros paíeses europerus, colocou-se na vanguarda no plano legislativo, juntamente com a Alemanha, os países nórdicos, a Inglaterra e a Espanha, deixando para trás a França» (Pereira, 1999, p. 49). Ilustrativo desta intervenção, temos em 1935 a criação da previdência social assegurando a cobertura de riscos sociais clássicos: substituição de rendimento em caso de velhice, invalidez, e sobrevivência (Pereirinha & Carolo, 2006, p. 1).

Embora o modelo de Estado-providência keynesiano4, tenha como ingredientes básicos «o pleno emprego, um conjunto de serviços universais ou quase universais para satisfação de necessidades básicas e um empenho em manter um nível nacional mínimo de condições de vida» (Mishra, 1995, p. xi), estando, portanto focado nas classes trabalhadoras, os seus fundamentos apontam para uma nova visão da sociedade com um maior equilíbrio no acesso à educação, à formação profissional e à cultura o que, no caso português, significou o combate ao analfabetismo.

O crescente papel da intervenção do Estado, extravasando mesmo as atribuições ao nível das componentes sociais, é testemunhado por Freire (2010) quando ao proceder à análise da evolução do papel e do peso do Estado em Portugal, a partir da segunda metade do século XX, constata um aumento da taxa de atividade da população portuguesa e, no que toca ao emprego público, regista, entre os anos 50, 70 e 91, um

4 As elevadas taxas de desemprego registas na década de 30 levam Keynes, o grande ideólogo do Estado- providência, a elaborar uma teoria que visava o regresso ao pleno emprego num tempo que a economia estava marcada por elevadas taxas de desemprego. Ele considerava que o aumento da acumulação capitalista com poucos benefícios para os trabalhadores, designadamente em termos salariais, faria diminuir o consumo e, por seu lado a necessidade de maior produção o que não gerava mais emprego e fazia crescer a pressão dos trabalhadores sobre o capital, reclamando a necessidade de melhores salários e maior proteção social.

Para Rosanvallon «Keynes conclui que o Estado é levado a intervir por intermédio da política fiscal e da determinação da taxa de juros para regular o nível adequado ao pleno emprego da propensão para consumir. Mas também deve intervir para estimular o investimento, não sendo a influência da política bancária da taxa de juros considerada suficiente para o fixar no seu valor optimal» (1981, p. 41).

14 «crescimento do pessoal afecto às funções sociais do Estado, - sobretudo nas áreas da educação e da saúde - com um enfraquecimento da parte consagrada às funções de soberania e também, embora em menor grau, do pessoal empregue em funções económicas» (p. 7).