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A percepção da sociabilidade ocorrida no Bar Liberdade

5. A TELEVISÃO NA SOCIABILIDADE DOS PEQUENOS

5.1 Os sentidos atribuídos à sociabilidade nos estabelecimentos

5.1.2 A percepção da sociabilidade ocorrida no Bar Liberdade

A forma com que a sociabilidade é praticada no Bar Liberdade, na atividade diurna, é distinta da dinâmica social encontrada no Restaurante Q’Sabor. Entre a maioria dos frequentadores há um comportamento reservado nas relações sociais quase restrito ao casal de proprietários e entre frequentadores que já têm laços sociais recíprocos. De maneira que foram registradas poucas percepções sobre a sociabilidade, sem considerar a televisão. A partir da observação durante o cotidiano do Bar, podemos interpretar ao menos dois aspectos que permitem compreender esta distinção.

O primeiro deles está relacionado com a localização do estabelecimento que, em virtude de um determinado uso do espaço urbano, possui uma temporalidade bastante fragmentada. Os frequentadores que moram na zona rural, a maioria, alternam o tempo que ficam no Bar entre a espera do ônibus e os afazeres objetivos como compras e pagamentos. A proximidade com o centro da cidade e a concentração de serviços no entorno faz com que a permanência no Bar ocorra sempre em função de alguma outra atividade que precisa ser realizada como a ida aos lugares e a espera pelo transporte coletivo. Sobre este aspecto, observamos que existe uma implicação de tempo e espaço específica.

Um determinado uso do espaço urbano que comporta “sistemas técnicos de diferentes idades” (SANTOS, 2006, p. 25), e influi diretamente sobre o modo de vida social dos sujeitos, imprime uma temporalidade específica aos lugares. Na mesma linha de pensamento é possível a relação com David Harvey (2009) e sua percepção do espaço e do tempo na questão moderna. Sobre o caso dos frequentadores da zona rural, em alguns momentos, existe uma “fricção do espaço” a qual os sujeitos estão submetidos a partir do uso que fazem do estabelecimento. Ou seja, a questão do distanciamento da zona urbana: o preço que os sujeitos pagam por morar “longe” da cidade. Para Harvey, a distância é uma questão a ser pensada enquanto inserida no sistema social, pois:

Ela impõe custos de transação a todo sistema de produção e reprodução (particularmente àqueles baseados em alguma divisão social elaborada pelo trabalho, do comércio e da diferenciação social de funções reprodutivas). O distanciamento (cf. Giddens, 1984, 258-259) é apenas uma medida do grau até o qual a fricção do espaço foi superada para acomodar a interação social (HARVEY, 2009, p. 202).

A permanência no estabelecimento, muitas vezes, representa a objetividade da barreira imposta pelo distanciamento. É necessário “aproveitar o dia” na cidade para que todas as tarefas necessárias sejam feitas. Mesmo que haja possibilidade diária de uso de transporte público, são necessárias algumas horas para o deslocamento considerando que são poucas linhas e com determinados horários sob os quais o dia precisa ser organizado. O que, em termos, coloca os usuários do transporte coletivo em uma determinação sobre o tempo: a hora de chegar e a hora de ir embora. O distanciamento, dessa maneira, torna-se uma questão relativa à estrutura e não uma questão totalizante a qual todos estão igualmente submetidos. O distanciamento como superação da fricção do espaço, como coloca Harvey, neste caso, possui diferentes níveis que são condicionados pelo que os sujeitos não escolhem.

Essa experiência de tempo e de espaço em relação à cidade, mediada pelo Bar em nosso exemplo, condiciona uma determinada prática social que está presente no estabelecimento. Ela, de alguma maneira, influi sobre a possibilidade de maior ou menor sociabilidade no entendimento desta como uma “forma lúdica”, de alguma maneira distante das objetividades e necessidades cotidianas. No comparativo entre os dois lugares, é determinante a presença de maior ou menor objetividade em relação ao uso e não exatamente à referência ao tempo de permanência no estabelecimento: um almoço rápido, de cerca de trinta minutos, pode ser mais propício à sociabilidade cotidiana do que uma tarde inteira de espera. A questão da “espera”, relacionada à “fricção do espaço” de que fala Harvey é crucial

para o entendimento da sociabilidade no Bar Liberdade na medida em que, nem sempre, a permanência no Bar é compreendida como um tempo “lúdico”.

O segundo aspecto para interpretar a sociabilidade no Bar Liberdade é o fato de os frequentadores darem preferência às relações sociais com os proprietários ou, com maior frequência, com pessoas que já conhecem ou que residem nas mesmas localidades. Existe sociabilidade entre os frequentadores do Bar mas sem muita possibilidade de abertura aos desconhecidos. Praticamente todas as formas de sociabilidade que vivenciamos, por sinal, ocorreram no ensejo da situação de entrevista. Após o pesquisador se apresentar e dizer do que tratava o tema, havia abertura para diálogo mas, até lá, observamos certa desconfiança de parte dos informantes frequentadores.

Um dos frequentadores, Arnaldo, fez uma referência a essa questão. “No Bar é difícil, porque a Colônia tu sabe né? Então, às vezes, quando eu encontro um conhecido que gosta de TV e procura conversar sobre jornalismo essas coisas eu até converso” (Arnaldo, frequentador, 65 anos). A reserva dos frequentadores foi observada, em alguns casos, no próprio uso das mesas do Bar como foi o caso de Fabrício que procura sempre sentar nas mesas dos cantos ou próximas a parede porque “ninguém incomoda”. Quando perguntamos se ele conversa com alguém no estabelecimento ele julgou “complicado”:

É que é complicado né? Eu sento aqui [no canto]. É difícil, mas acontece. Geralmente eu fico sozinho. [Costumas encontrar o pessoal conhecido aqui no Bar?] A maioria é de lá, Colônia Osório, mais adiante e Turuçu. Porque o ônibus de Turuçu para aqui também. [Tem alguém que o senhor conheceu aqui?] Ah já, nem um nem dois, vários (Fabrício, frequentador, 45 anos).

A partir deste relato, é possível observar que no caso de Fabrício os conhecidos são os “de lá” referindo-se aos locais cujas linhas de ônibus têm parada no estabelecimento, no caso a Colônia Osório, que pertence a Pelotas e à cidade vizinha de Turuçu. Apesar de ter conhecido diversas pessoas no Bar, ele não costuma conversar e “geralmente” fica sozinho. Cabe observar que no caso de Fabrício e de quase todos os informantes frequentadores do Liberdade essa reserva à sociabilidade demonstrada não foi restritiva ao diálogo com o pesquisador. A maioria dos informantes que aceitou participar, após a entrevista, continuou o diálogo ou manifestou algum interesse em continuar conversando por algum tempo, quando geralmente eram interrompidos pelos afazeres no Centro.

Durante a observação no Bar não percebemos um contato mais próximo entre os funcionários e os frequentadores que denotasse uma situação de sociabilidade como brincadeiras ou conversa sobre outros assuntos que fugissem da objetividade do atendimento.

O que foi diferente com o proprietário, Lopes, que em muitos momentos conversou com os frequentadores. A conversa não apenas ocorreu no balcão como, em algumas situações, Lopes partilhou das mesas. Como observado anteriormente, ele é a principal referência dos frequentadores assíduos e, de alguma maneira, “personifica” o estabelecimento. A grande parte dos frequentadores entrevistados, que já convive no Bar há pelo menos vinte anos, citou Lopes para referir-se ao estabelecimento. Poucos usaram o nome “Liberdade”, mas sim a relação com o proprietário que foi preponderante para a identificação do lugar. Como foi o caso do relato de Arnaldo:

Conheço o dono, Seu Lopes, há muito tempo, desde que ele tinha o Bar na Deodoro, lá em baixo. Faz uns 30 anos por aí. [Onde ficava o Bar?] Na Deodoro, abaixo da Galeria, onde era o Restaurante do Noremberg. Eu conhecia ele dali, e estou sempre frequentando onde ele está. O ônibus Santa Silvana sempre parou no Bar. [O senhor lembra quando era ali na esquina, onde é o banco agora?] Ah, lembro sim. Quando ele saiu dali da galeria, veio para onde era o banco, depois do banco, veio para cá. Mas sempre aqui nessa volta (Arnaldo, frequentador, 65 anos).

Os “fregueses” conhecidos quando chegam sempre cumprimentam o proprietário e essa é a demonstração mais franca de sociabilidade que presenciamos no ambiente do Bar. As conversas entre os frequentadores raramente são intercaladas com outras mesas. Isso apenas acontece quando são encontrados os conhecidos que têm proximidades por morarem na mesma região ou terem algum laço familiar. Algumas conversas entre as mesas, durante o período da tarde, em alguns momentos, ocorreram em alemão ou, em alguns casos no dialeto pomerano115. O fato de falar em outro idioma, para alguns frequentadores, é um fator de aproximação. Em algumas conversas que presenciamos foi possível notar um tom de descontração no diálogo, uma das situações observadas foi uma venda de rifas promovida por um frequentador que abordava os conhecidos em alemão.

Pelo que podemos observar, no fato de que somente após a entrevista houve o contato sociável com os informantes, é possível interpretar no contexto do Bar Liberdade uma relação específica da sociabilidade. A experiência de sociabilidade entre a maioria dos frequentadores é lastreada por questões que os aproximam como moradores da zona rural, há uma marcação simbólica colocada a partir disso que permite um modo reservado e uma identificação com o estabelecimento comercial.



115 O dialeto pomerano é oriundo dos imigrantes alemães da região da antiga Pomerânia que hoje corresponde ao

norte da Polônia e da Alemanha, ao longo do Mar Báltico. O dialeto é oriundo da língua falada na região que se difere ligeiramente do alemão. O sul do Estado do Rio Grande do Sul concentra boa parte dos imigrantes pomeranos do Brasil.