O Bar Liberdade no espaço urbano de Pelotas

O Bar Liberdade está situado também na área central, mas em um contexto urbano distinto do Restaurante Q’Sabor. O estabelecimento fica próximo ao núcleo central da cidade, caracterizado por uma maioria contígua de imóveis destinados ao comércio. O Bar está distante apenas duas quadras da Rua Andrade Neves que, nesta zona, constitui o Calçadão de Pelotas, um trecho de 450 metros da via destinada apenas aos pedestres com grande concentração de lojas. A Rua onde está localizado o Bar é a Marechal Deodoro que, no fluxo urbano, representa uma via de acesso à zona central oriunda da zona norte e do Bairro Três Vendas, um dos maiores de Pelotas. Um grande número de linhas de transporte coletivo utiliza a Rua como rota de acesso. Pela proximidade com o comércio central, boa parte da população desembarca dos coletivos ao longo do logradouro, sobretudo nas proximidades de onde está situado o Bar, entre as ruas Voluntários da Pátria e General Neto. Neste perímetro, também estão concentrados diversos terminais de linhas de ônibus que ligam regiões da zona rural da cidade. Essa posição no espaço urbano confere ao Bar Liberdade uma circulação bastante distinta a que encontramos no Restaurante Q’Sabor, com um fluxo maior de frequentadores ao longo do período de funcionamento.

Como apresentado no início, o Bar é bastante conhecido em Pelotas por ser um reduto de música popular, especialmente do gênero musical choro, durante dois dias da semana à noite. Durante o dia, a conveniência determina a maior parte dos frequentadores por conta da proximidade dos terminais de ônibus, de forma especial os coletivos que ligam o centro de Pelotas com a zona rural, ou a “Colônia”67. Dessa forma, uma grande parte dos frequentadores diurnos do Bar Liberdade é formada por trabalhadores e moradores do campo que vêm à cidade para diversos propósitos: desde compras de medicamentos, roupas e

utensílios agrícolas até o acesso a médicos, dentistas, serviços bancários e a contabilidade da produção rural que é feita por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. A rotina do Bar é diretamente influenciada pelo trânsito dos coletivos na Rua Marechal Deodoro. Além da proximidade com diversos terminais de ônibus, duas linhas, uma para a região denominada como Santa Silvana e outra para a cidade vizinha de Turuçu, têm o Bar como uma das paradas nas rotas que partem da Rodoviária. Em virtude disso a empresa concessionária dos itinerários mantém no estabelecimento um posto de venda de passagens no período da tarde.

Figura 6 - Mapa urbano atual das redondezas do Bar Liberdade indicando os terminais de ônibus e

outros restaurantes no perímetro da quadra. Fonte: Google Maps68 _{com edição do autor}

Como podemos observar na Figura 6, o Bar Liberdade, em vermelho no mapa, fica em frente a um dos pontos dos terminais de ônibus. Da frente do estabelecimento estacionam os ônibus das duas linhas que têm venda de passagens no interior do Bar. A totalidade dos imóveis da quadra é ocupada por estabelecimentos comerciais ou de serviços e organizações. Alguns tipos de estabelecimentos são mais recorrentes, particularmente neste trecho da Rua Marechal Deodoro que concentra um grande número de óticas, farmácias, lojas de implementos agrícolas, roupas e utensílios usados. Nas proximidades, cabe destacar também a existência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pelotas que possibilita acesso a serviços médicos e odontológicos, além de participar da contabilidade da produção agrícola dos trabalhadores. Embora a Rua seja caracterizada pela concentração comercial, os

estabelecimentos diferem dos situados em outras áreas próximas. Na Marechal Deodoro, especialmente nas redondezas do Bar Liberdade, o que se pode perceber é um comércio com certa dedicação ao atendimento dos públicos da zona rural e classes populares, de forma geral. É possível perceber essa diferença a partir de questões objetivas, como o preço dos produtos e serviços, mas sobretudo por uma concentração de estabelecimentos de interesse direto dos trabalhadores rurais: lojas de implementos agrícolas e sementes, estabelecimentos bancários com foco na produção rural, entre outros.

Além desses tipos de comércio, podem ser encontrados, particularmente, muitos restaurantes populares. Como pode ser observado na Figura 6, apenas no perímetro da quadra do Bar, considerando os dois lados da rua, existem quatro restaurantes, sendo que três deles possuem características muito semelhantes ao Liberdade com a maioria dos frequentadores oriundos dos terminais de ônibus da zona rural. Estes restaurantes têm em comum o fato de oferecer alimentação a um custo baixo, geralmente na modalidade de buffet por quilo ou prato feito, com uma variedade de saladas e carnes grelhadas ao gosto dos frequentadores. Todos eles ocupam espaços bastante modestos e não dispõem de aparelho de ar-condicionado ou conexão de internet sem fio. Apenas um dos restaurantes observados no perímetro se difere, ligeiramente, dessas características.

Figura 7 - Entorno do Bar Liberdade na Rua Marechal Deodoro durante o horário de almoço

Na fotografia da Figura 7 é possível observar o entorno do Bar Liberdade na Rua Marechal Deodoro durante o horário de almoço. O Bar, o primeiro estabelecimento da direita para a esquerda na imagem, está instalado no imóvel há doze anos e a movimentação das linhas de ônibus, em frente, ocorre especialmente durante o período da tarde69_{. É possível} observar marcas na parede externa do estabelecimento que indicam se tratar de um local de espera e o meio-fio em amarelo indica uma área de proibição para estacionamento de veículos por conta do transporte coletivo. Segundo Magalhães (1993, p. 30) a Rua Marechal Deodoro, hoje asfaltada, surgiu em 1815 junto com outras ruas principais do Centro de Pelotas, como a Gonçalves Chaves e a Félix da Cunha que, ao longo do tempo, mesmo sem terem sido planejadas para este fim, tornaram-se ruas de acesso entre bairros e centro da cidade. Na Figura 6, semelhante a localização do Restaurante Q’Sabor, é possível perceber a recorrência do “traçado em xadrez” característico da zona central de Pelotas.

A experiência do caminhar relacionada ao Bar Liberdade, para o pesquisador, ocorreu de forma semanal na maioria das vezes. Diferente do Restaurante Q’Sabor, o local integra nosso cotidiano em apenas um dos dias da semana. Em outros momentos de maior frequência, as idas ao estabelecimento ocorreram exclusivamente com a finalidade de pesquisa, o que não ocorreu com o primeiro local, cuja frequência em quase todas as vezes foi imbricada ao cotidiano. A proximidade do Bar com o Calçadão da Andrade Neves permite que, em poucos metros, tenha-se a mudança de uma experiência de um espaço urbano amplo para o caminhar, com muitas vitrines, chafarizes, árvores, para uma via de trânsito rápido com intenso fluxo de veículos e pouco espaço para o trânsito de pedestres. Percebemos que a Rua Marechal Deodoro apresenta-se como um primeiro contato com o Centro de Pelotas aos que chegam à cidade oriundos da zona rural ou dos lugares da zona norte do tecido urbano.

O que se pode observar a partir do contexto urbano dos lugares estudados é que ambos estão inseridos em meio a um espaço que comporta diferentes temporalidades: regiões com mais de 150 anos que não sofreram alterações em seu desenho urbano durante este tempo, mas que comportaram alterações da história da região. De uma economia baseada na atividade saladeiril movida pela força do trabalho cativo, passa-se, de forma brusca, a um período de instalação do modo de produção capitalista. A industrialização, ocorrida principalmente durante o século XX, em boa parte, não consegue perdurar de forma efetiva no

69 _{Embora a placa de patrocínio, pouco visível na imagem, sinalize “Restaurante Liberdade”, no trabalho,}

optamos por chamá-lo de Bar Liberdade por conta do estabelecimento ser reconhecido desta forma na cidade e, também, porque seu período de funcionamento ocorre não apenas no horário das refeições.

presente. Todos esses períodos deixam suas marcas a partir do espaço urbano, desde o momento inicial até a vivência do contemporâneo.

Em ambos os casos estudados há a imbricação de diferentes práticas de espaço. As formas novas, no entanto, não conseguem apagar por completo as práticas fundadoras que, de uma maneira ou de outra, estão presentes. No caso do Restaurante Q’Sabor, chama a atenção o fato de que a região já possuía o mesmo desenho urbano conforme o mapa de 1835. Este mapa, originalmente residencial, passa a coabitar com diversas plantas industriais que não perduram no tempo e, recentemente, passam a ser ocupadas por atividades educacionais. Com poucas exceções, as ruas não foram alteradas em relação a sua configuração original e não receberam asfalto ou outro tipo de cobertura para facilitar o trânsito dos automóveis.

No caso do Bar Liberdade, o que podemos observar é a localização em uma via que, junto com outras, adquire a função de conectar à região central os bairros mais novos ao longo do tempo. A necessidade do transporte urbano, para bairros e para a zona rural, induz a utilização de uma via não projetada para este fim, no encontro de novas e velhas práticas que se aplicam sobre o espaço. A cidade do século XIX, durante o século XX torna-se paulatinamente em um grande “centro” com a inscrição de antigos prédios reformados e antigos prédios que expõem as fraturas do tempo.