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A sociabilidade e a participação política dos atores sociais

5. A TELEVISÃO NA SOCIABILIDADE DOS PEQUENOS

5.2 A televisão na sociabilidade dos pequenos estabelecimentos comerciais

5.2.4 A sociabilidade e a participação política dos atores sociais

Outro tema recorrente durante a observação em campo foram assuntos que, de alguma forma, envolviam a participação política dos atores sociais. Essa participação pode ser percebida de diversas maneiras: na relação com alguma organização sindical, no contato indireto com organizações, por meio de colegas, ou no relato de vivências, na sociabilidade, que envolveram relações de poder. Embora não tenha havido a inclusão deste tema específico no roteiro de perguntas, chamou a atenção o fato de ser referido em algumas situações. Na programação da televisão no Restaurante Q’Sabor, quando ocorriam reportagens sobre a mobilização de trabalhadores, como greves, passeatas ou em alguns temas políticos noticiados, não havia grande repercussão, mas os temas sustentavam uma pequena conversa. Estes casos ocorreram com frequentadores em situações específicas.

Uma das situações foi a cobertura do noticiário do meio-dia que envolveu, entre outros temas, a greve do SANEP com início no dia 19 de maio de 2014 e duração de mais de 70 dias. Muitos dos trabalhadores da empresa pública almoçam no Restaurante do Q’Sabor e acompanhavam a cobertura jornalística sobre a movimentação e também as reportagens feitas sobre as dificuldades dos serviços públicos. Alguns dias antes do início da paralisação geral dos trabalhadores, em 15 de maio de 2014, o Jornal do Almoço levou ao ar uma reportagem sobre os problemas da rede de esgoto de Pelotas129, observando casos de vazamento em 

diversos pontos da cidade, especificamente uma rua na zona central e um problema ocorrido na localidade da Guabiroba, no bairro Fragata, com o exemplo de uma casa onde o banheiro estava inundado pela água do esgoto.

Alguns frequentadores e funcionários do Restaurante residem nesta localidade e, imediatamente, identificaram os locais e pessoas conhecidas, assim como a dificuldade com o esgoto. A reportagem apresentou, além dos problemas, a visão da empresa com o relato de que “80% dos problemas são utilização inadequada do sistema, materiais jogados na rede de esgoto que deveriam ter sido jogados no lixo”. A empresa também mantém um programa de educação ambiental e dicas para uso do sistema de água e esgoto onde esse é um dos pontos colocados em questão130. No entanto, a declaração gerou alguma polêmica no ambiente do Restaurante pois alguns atores sociais, após a exibição da matéria, relataram que os problemas “não são só culpa deles” em decorrência do mau uso do sistema de esgoto, mas de questões de infraestrutura urbana que não são resolvidas nas localidades.

Outros dois casos, onde esteve presente na associação entre sociabilidade e televisão o tema da participação política, decorrem de momentos de conversa ocorridos em meio à entrevista. Um dos trabalhadores metalúrgicos que é frequentador do Restaurante Q’Sabor, Cláudio, observou que o tema política, além de outros, também pauta as conversas durante o meio-dia. Além desse relato, Cláudio sente falta de ver notícias relacionadas à mobilização dos trabalhadores metalúrgicos na televisão:

E outra coisa que eu gosto e que não passa na TV é que ontem mesmo teve uma passeata do sindicato dos metalúrgicos em Porto Alegre e não mostrou na TV. A gente, como metalúrgico, e muita gente, não sabe e precisa saber do que acontece e do que não acontece. Eles foram em busca ontem de aumento de salário para nós. Mas ficou pouco documentado, pouco falado. [E como tu ficou sabendo?] Por um amigo nosso que faz parte do sindicato e comenta com nós. Mas é raro ver no jornal. [Vocês todos são sindicalizados?] Não, não, só ele mesmo (Cláudio, frequentador, 33 anos).

As notícias da mobilização sindical, na visão de Cláudio, são “pouco faladas”. Ele demonstrou conhecimento da mobilização por meio de um dos colegas metalúrgicos. Há uma preocupação em ter conhecimento dos assuntos do sindicato e da política, “não só” o futebol. O que se pode perceber durante a observação em campo é que essa discussão ocorreu em alguns momentos entre os trabalhadores metalúrgicos, mas não com muita regularidade. É comum os frequentadadores da metalúrgica continuarem o diálogo no caminho até a empresa, 

130 A campanha está disponível em http://www.pelotas.com.br/sanep/turma-do-gotao/. Acesso em 4 de agosto de

após o almoço. Como o pesquisador, no cotidiano, compartilhou o mesmo caminho do trabalho até o Restaurante, foi possível presenciar uma situação onde os trabalhadores comentavam sobre temas políticos.

Alguns informantes metalúrgicos, com média de idade superior a 50 anos, também relataram na conversa com o pesquisador que o processo de aposentadoria é parte de um “desafio” que envolve suas próprias condições de trabalhado atuais, na dificuldade de ter acesso ao direito de encerrar sua carreira de trabalho, como foi o caso de Fernando:

Um desafio é minha aposentadoria, eu estou louco para me aposentar. Estou lutando. Vai fazer 3 anos que está no INSS está na justiça e eles não resolvem. Espero que esse ano saia. E depois o patrão não libera né? Não libera, o camarada se aposenta para descansar e ele não libera. O cara tem que continuar aposentado e trabalhando. [Se liberasse o senhor daria uma descansada?] Ah, daria uma descansada porque eu trabalho em casa também, tenho tipo uma serralheria. É uma coisa assim pequeninha mas dá bem para tirar um dinheiro. Eu até nem penso assim em trabalhar direto em casa. Seria bom que o patrão liberasse, no caso, como tem muitos que ele libera. Só que aí ele não paga os quarenta por cento e o pessoal fica encostado, sem carteira, enquanto tem serviço eles estão trabalhando e quando não tem ele libera o camarada (Fernando, frequentador, 55 anos).

Mesmo que esse exemplo não envolva diretamente a televisão na sociabilidade, vale destacar a percepção dos atores sociais em sua condição de trabalhador assalariado e nas relações, nem sempre fáceis, na obtenção de direitos trabalhistas. Chamou a atenção que apenas Cláudio e mais um metalúrgico, entre os frequentadores, tinham idade próxima dos trinta anos. A maioria dos trabalhadores na área, no contexto observado, têm idades próximas da aposentadoria, tendo iniciado seus percursos laborais ainda jovens.

Um outro caso foi o de Alvacir, no Restaurante Q’Sabor. Ao final de nosso diálogo ele “lembrou” de uma outra entrevista que concedeu a um estudante do Instituto Federal Sul-Rio- Grandense de Pelotas, o IF-Sul. Essa instituição tem uma longa trajetória em Pelotas na formação de técnicos para a indústria, como o caso de Alvacir que é eletrotécnico formado pelo educandário. A partir daí, puxou pela memória seu envolvimento com movimentos estudantis à época de sua formação, como presidente do grêmio estudantil, e também um caso quando trabalhava na usina hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu/PR:

Eu gostava. É bom, faz bem, não adianta. Depois, inclusive na Itaipu os caras não queriam que eu fosse embora porque queriam que eu entrasse no sindicato. Eu fazia a liderança da turma. Nós éramos 21 e eram 20 da Escola [IF-Sul] e um só do Paraná. Era um grupo que fez concurso e foi [para Itaipu]. Quem falava era eu. Quando os caras do sindicato, o pessoal que já estava lá, ex-alunos, souberam que eu estava saindo, chegaram na porta e disseram: “Nós queremos falar contigo. Alvacir, nós precisamos de um cara como tu aqui, não vai embora”. Eu disse: “cara, não me sinto bem, gostaria de dar um apoio para vocês”. E eles disseram: “tu bate de frente

e briga”. Claro, os diretores eram uns caras arrogantes, prometeram muitas coisas que não cumpriram. Eu batia de frente e dizia: “vocês foram lá dentro da Escola Técnica [IF-Sul], chegaram dentro da sala de aula, no auditório, e disseram que a Itaipu dá isso, dá aquilo e hoje vocês não tão nos dando nada”. Quando fui embora os diretores devem ter dito: “que bom que esse neguinho saiu” (risos) (Alvacir, frequentador, 53 anos).

Alvacir relatou que deixou Itaipu por “não ter se sentido bem” e preferiu retornar a Pelotas. Ele se formou em eletrotécnica no ano de 1988 e retornou a cidade para trabalhar como autônomo após a experiência na hidroelétrica. O envolvimento com a militância política, desde o movimento estudantil até sua atuação profissional, foi lembrado com muito apreço por ele no sentido de “ser bom” e das lembranças dos tempos de estudante onde podia auxiliar os que não tinham condições de almoçar ou de comprar materiais de estudo.

Ao fazermos opção pela teoria disposicionista do habitus para observar a classe social a partir do recorte empírico proposto, assumimos o ponto de vista de Pierre Bourdieu “no condicionamento pré-reflexivo” (SOUZA, 2012, p. 65). Ou seja, a perspectiva é a de uma “inconsciência” de classe que permite visualizar uma estrutura simbólica que é incorporada, sem que haja, obrigatoriamente, uma racionalização por parte dos sujeitos de sua posição no sistema social. De maneira que este apanhado de situações empíricas não é, neste contexto, compreendido no sentido empregado pelo marxismo tradicional onde os atores sociais dominados precisam ser tomados, objetivamente, pela “consciência” de sua condição.

Articulando-se como uma situação observada em campo que, por conta da opção teórica, não constituía, a priori, um interesse direto da investigação, a inclusão dos temas da participação política dos sujeitos pode ser interpretada como uma disposição, neste caso, para o senso de justiça e solidariedade ou, ainda, para a criação de vínculos que pertencem a uma acepção das classes trabalhadoras de um “velho capitalismo”. Como interpreta Jessé Souza (2010), em diversos momentos, esse quadro anterior coabita com a atual fase de um “novo espírito”. Como observa o autor:

O que caracteriza toda classe trabalhadora é a sua “inclusão subordinada” no processo de acumulação do capitalismo em todas as suas fases históricas. O trabalhador, ao contrário da “ralé” e de todos os setores desclassificados e marginalizados, é reconhecido como membro útil à sociedade e pode criar uma narrativa de sucesso relativo para sua trajetória pessoal. [...] No período fordista, ou no setor ainda fordista da classe trabalhadora tradicional, essa narrativa tende a ser construída com base em vínculos comunitários a partir de um destino que é percebido como comum pelos trabalhadores. O sindicato, as greves, o partido político e as associações de classe são o reservatório desse tipo de necessidade e sentimento compartilhado (SOUZA, 2010, p. 53).

No contexto dos informantes da pesquisa, neste caso, é possível interpretar um modo de compreensão da vida de trabalho como muito próxima ao paradigma fordista por conta da experiência laboral, no presente e no passado, ser oriunda da narrativa de “um destino comum”. Nos relatos observados, o que está em jogo são os vínculos comunitários ou “solidariedades internas” características dos trabalhadores fordistas. Este modelo, ao contrário do capital flexível, dá a possibilidade de o ator social construir sua narrativa de uma maneira coletiva, com os outros em igualdade a ele e na diferença com os patrões e encarregados. A oposição com a “nova fase” põe-se justamente na possibilidade de a narrativa não possuir um caráter puramente pessoal, onde o sucesso profissional depende apenas de cada sujeito.

Na reportagem sobre os problemas com o esgoto em Pelotas a percepção dos frequentadores de que “não é bem assim”, em nossa interpretação, integra essa “solidariedade interna” ante a responsabilização quase solidária da população pelos problemas de saneamento. O interesse de Cláudio pelas notícias do sindicato, a leitura de Fernando sobre a dificuldade de aposentadoria também são disposições próximas a essa solidariedade. Elas podem ser identificadas na identificação de cada um deles em relação à situação da “categoria” ou do “outro” em igual condição. No caso do informante Alvacir, quando relatou ao pesquisador sua história de trabalho, a realização profissional considerou momentos onde exerceu liderança nas associações e sindicatos. O que, simbolicamente, é mais forte do que o fato, individual, de ter logrado sucesso em concurso público para a Usina de Itaipu, além da inclusão do relato do retorno a Pelotas: “fiz concurso, passei, daí fui pra lá, mas não me senti bem. Não sei, não me senti bem”.