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3. ENQUADRAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.1 Sociabilidade

Como observado no início do trabalho, a noção de sociabilidade aqui utilizada provém do pensamento de Georg Simmel, do texto Sociabilidade: Um Exemplo de Sociologia Pura ou Formal escrito no ano de 191749. De forma bastante singular para a sociologia de sua época, Simmel define uma separação elementar: “em qualquer sociedade humana pode-se fazer uma distinção entre conteúdo e forma” (1983, p. 165). A sociabilidade, conforme o autor, pertence à forma e pode ser identificada em um determinado momento em que o conteúdo das relações 

49 A versão consultada no trabalho é uma tradução em português organizada por Evaristo de Moraes Filho com

textos do autor (SIMMEL, 1983). O texto original, no entanto, intitulado Die Geselligkeit: Beispiel der Reinen

oder Formalen Soziologie tem como data original o ano de 1917 e pode ser encontrado nesta página:

sociais pode não mais carregar a obrigação de obedecer a propósitos e finalidades. O ato de comunicar pode trazer em si mesmo uma finalidade prática e objetiva. A sociabilidade, no entanto, é tida pelo autor como uma forma em si mesma: em um determinado momento, os conteúdos passam a usufruir de certa autonomização e “ganham vida própria”.

Aqui, “sociedade” propriamente dita é o estar com o outro, para um outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberadas de todos os laços com os conteúdos; existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação destes laços. É isto precisamente o fenômeno a que chamamos sociabilidade (SIMMEL, 1983, p. 168).

A sociedade é constituída pela relação social. Os “impulsos” ou “interesses” são veículos que fazem com que as relações aconteçam e os indivíduos se coloquem em interação. Há uma primeira intenção na busca dessas necessidades objetivas. No entanto, este “conteúdo” é um caminho para o desenvolvimento de uma forma de relação específica da sociabilidade que se difere de um primeiro nível prático e operatório justamente por prescindir dele. A conversação, como forma de sociabilidade, exige dos interlocutores habilidades para que os assuntos sejam intercalados a fim de que se mantenha um interesse partilhado na conversa, sem que haja um fim que não o da própria forma de conversação. A sociabilidade, portanto, como categoria sociológica, na origem, é definida como “a forma lúdica da sociação” e traz em si uma disposição para o “jogo” que não visa nenhum proveito a não ser o do próprio sucesso da relação, em um determinado momento. A fabricação da sociabilidade, desta forma, não depende de uma função específica ou de interesses que os interlocutores venham a exercer e sim da própria participação dos sujeitos em uma espécie de esforço para integrar o outro. Quando isso acontece, cabe ressaltar um “desvio” da realidade como forma de evitar a objetividade da relação social. A sociabilidade “se poupa dos atritos com a realidade por meio de uma relação meramente formal com esta” (1983, p. 167)

Na prática da sociabilidade, Simmel destaca alguns predicados e “limiares” que auxiliam a observar sua dinâmica empírica. A questão do “tato” é colocada pelo autor como preponderante no momento em que representa uma capacidade dos sujeitos de observar limites do que pode ser posto em jogo na interação. Mesmo que existam “atributos objetivos” que possam permear o fenômeno da sociabilidade, “eles estão impedidos de participar dela” (1983, p. 170). Os atributos objetivos, na acepção do autor, são características materiais e simbólicas como riqueza, posição social, capacidades e méritos que precisam ficar de fora da sociabilidade para que ela não seja monopolizada ou para que não seja quebrada uma espécie

de democracia aparente entre os sujeitos. O limiar é ultrapassado quando os atributos ou qualquer relação objetiva é posta em frente aos interesses comuns que sustentam a conversa. Embora a sociabilidade não seja revestida de uma ordem ou finalidade específica, para Simmel, sua positividade pode ser observada no estabelecimento desses limites. Há a citação do axioma de Kant de que cada indivíduo estabelece sua liberdade de forma a não sobrepor a liberdade dos outros indivíduos. As regras para a sociabilidade, em uma interpretação nossa, parecem exigir um deslocamento mínimo de identidades e alteridades entre os interlocutores no momento de interação.

Como algo marcante na formulação desse conceito, Simmel atribui à sociabilidade um “mundo artificial” onde se torna possível uma espécie de democracia sem atritos. Não há conflito entre os sujeitos, pois o que se propõe, com a ausência momentânea de objetividade, é uma “interação entre iguais” por meio de atores sociais que estejam dispostos a renunciar os “conteúdos objetivos” de suas vidas. Trata-se de um “faz de conta” que sustenta a sociabilidade desta forma que, segundo o autor, “não é mentira mais do que o jogo e a arte são mentiras devido ao seu desvio de realidade” (1983, p. 173). Se é possível pensar que a sociabilidade então poderia, à época de escrita do texto, e pode, no presente momento, criar simulacros de igualdade entre classes sociais distintas o autor já advertia: “entretanto, esse caráter democrático só pode se realizar no interior de um dado estrato social: sociabilidade entre membros de classes sociais muito diferentes é amiúde inconsistente e dolorosa” (1983, p. 172)50.

Quase centenária, a noção de sociabilidade de Georg Simmel pode ser encontrada em associação com algumas investigações do campo das ciências da comunicação no Brasil. Um exemplo é o pesquisador Édison Gastaldo que parte do pressuposto do autor alemão em um contexto de observação próximo, de alguma maneira, da presente temática de estudos. Em investigação etnográfica das relações sociais em bares onde os torcedores se reúnem para assistir futebol pela televisão, o pesquisador usa a sociabilidade à respeito da forma lúdica da sociação, conforme enfatizado por Simmel, especialmente no tocante ao esporte: “a sociabilidade masculina brasileira tem na tematização do esporte um porto seguro. Basta perguntar a um homem qualquer qual o seu time para começar uma conversa que pode se alongar indefinidamente” (GASTALDO, 2006, p. 5).



50 Cabe uma nota sobre a percepção de Simmel à respeito do papel do simbólico na estruturação das classes

sociais no ano de 1917, assim como é possível perceber uma relação como o escopo da presente pesquisa na medida em que, dessa maneira, para existir sociabilidade precisa haver relação social entre sujeitos de estratos sociais não muito díspares.

A sociabilidade, tal como expressa por Georg Simmel, em sua autonomização como forma social, existe a partir de uma condição fornecida pelo cotidiano. A necessidade de sociabilidade geralmente ocorre a partir de circunstâncias não definidas, não planejadas ou não objetivadas que são baseadas na “tática”, assim como a conversação ocorre a partir de uma espécie de improviso dos interlocutores. Michel de Certeau, em A Invenção do Cotidiano (2012), define uma oposição entre tática e estratégia. A estratégia, segundo ele, pertence a “um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta” (2012, p. 45). Assim, o próprio, a que ele se refere como definidor de uma estratégia, imprime certa objetividade no impulso da ação. Já a tática é um oposto: “um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível [...] o que ela ganha não o guarda”. A sociabilidade, em uma relação nossa, pode, portanto ser baseada na tática e no agir a partir de um improviso, sem que se tenha consciência de uma exterioridade ou de uma diferença. A “democracia” da sociabilidade, mencionada por Simmel, pressupõe uma relação artificial “entre iguais”, assim como uma operação tática, como um jogo, o que é ganho não permanece para além do próprio ato de jogar.

Não obstante, na mesma abordagem, De Certeau dedica-se a examinar o relato ou a narratividade, como “artes do dizer” e “artes do fazer”, ambas relacionadas, que operam a partir do verbal e do gestual na vida cotidiana. A narratividade então, o ato de contar a própria vida ou conversar sobre determinado assunto recorrendo a uma forma narrativa, assim como a sociabilidade, opera em uma espécie de “desvio” em relação ao real ou à credibilidade de quem está falando: tal qual na sociabilidade, a questão objetiva interessa menos do que a própria relação que se constitui:

A história narrada cria um espaço de ficção. Ela se afasta do “real” – ou melhor, ela aparenta subtrair-se à conjuntura: “era uma vez...”. Deste modo, precisamente, mais que descrever um “golpe”, ela o faz. Para voltar ao que dizia Kant, ela mesma é um ato de funâmbulo, um gesto equilibrista em que participam a circunstância (lugar e tempo) e o próprio locutor, uma maneira de saber, manipular, arranjar e “colocar” um dito deslocando um conjunto, em suma “uma questão de tato” (DE CERTEAU, 2012, p. 142).

A história narrada, portanto, que pode fazer parte tanto da oralidade dos interlocutores como do discurso da mídia televisiva, no caso desta investigação, opera a partir da circunstância, definidas pelo tempo e pelo lugar. Essa capacidade de narrar o acontecido, o “tato” como também referido por Simmel, é uma tática presente na fabricação das sociabilidades que, como forma, está relacionada com o simbólico. O limiar do “tato”, que define as regras da

sociabilidade, parece ter uma relação estreita com o ajuste necessário entre estruturas que fornecem um determinado aparato para que ele seja possível e sua própria prática. A estrutura, de certa forma, pode condicionar que a sociabilidade aconteça, estritamente, “entre iguais”.

Michel de Certeau, na mesma obra, observa um interesse sociológico, com origem em Pierre Bourdieu, no “modo de geração das práticas” que ocorre por meio do habitus. Esta noção tem o papel de sustentar “a explicação de uma sociedade pelas estruturas”, mas o faz a partir do “invisível” e “incontrolável”: opera como uma espécie de mediação entre a estrutura que define as relações sociais e sua face simbólica que se traduz por meio de práticas. As estruturas são interiorizadas pelos sujeitos como aquisições que, ao mesmo temo, se colocam em termos de expressão das mesmas aquisições, a partir do simbólico.