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O Restaurante Q’Sabor no espaço urbano de Pelotas

4. OS LUGARES, A TELEVISÃO E A SOCIABILIDADE

4.1 Os lugares estudados no espaço urbano de Pelotas

4.1.1 O Restaurante Q’Sabor no espaço urbano de Pelotas

O Restaurante Q’Sabor está situado na zona do Porto dentro da região central de Pelotas. Esta área traz, em seu traçado urbano, marcas da vivência de um processo de industrialização ocorrido na cidade que tem início durante o declínio da atividade saladeiril, ao final do século XIX, até o início do século XX. O Porto de Pelotas, que ainda se encontra em atividade, era um canal de escoamento desta produção e, por conta da proximidade, diversas indústrias se instalaram em ruas contíguas às margens do Canal São Gonçalo.

O estabelecimento está localizado em uma esquina, no cruzamento das Ruas Almirante Tamandaré e João Pessoa, a poucos metros de alguns prédios industriais antigos e também muito próximo ao Porto de Pelotas. Durante o período de observação, identificamos como principais frequentadores os operários da região. Por ordem de recorrência, os frequentadores mais comuns são os trabalhadores de duas pequenas indústrias metalúrgicas próximas, do Serviço Autônomo de Abastecimento de Água de Pelotas (SANEP) e um contingente de autônomos como mecânicos de automóveis, eletricistas, operários da construção civil e estivadores portuários. É possível dizer que os frequentadores do Restaurante são atraídos principalmente pela proximidade com seus locais de trabalho e, também, pelo preço acessível da alimentação comparando-se com outras opções das redondezas.

Como podemos observar abaixo, na Figura 4, as áreas marcadas em azul representam as duas pequenas metalúrgicas e o SANEP que são os locais de trabalho da maioria dos frequentadores do Restaurante. Ainda, nas áreas em verde, estão representados dois prédios de antigas indústrias, Cotada e Brahma. Essas antigas construções industriais, após a falência, permaneceram sem qualquer tipo de habitação por um longo período. A partir de 2008, no entanto, a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) adquiriu os imóveis para a instalação de novos cursos e espaços administrativos. O prédio da antiga indústria Cotada foi recentemente reformado para aulas, o prédio da Brahma ainda permanece em reformas e será local de um futuro centro cultural e de eventos da Universidade. A aquisição de boa parte das antigas estruturas industriais da zona portuária pela Instituição, além dos dois locais indicados, pode ser considerada significativa para a vida da região que, no momento, convive com a

circulação de estudantes de diversas partes do Brasil e servidores públicos, alguns deles frequentadores do Restaurante Q’Sabor.

Figura 4 - Mapa urbano atual das redondezas do Restaurante Q’Sabor indicando os locais de trabalho

mais recorrentes dos frequentadores Fonte: Google Maps64 com edição do autor

Se compararmos o traçado urbano atual, representado na figura 4, com os primeiros exames detalhados da planta urbana, segundo Mario Osório Magalhães (1993, p. 96), feitos em 1835 pelo engenheiro Eduardo Kretschmar65, não existem diferenças significativas no desenho das ruas que obedecem ao “traçado em xadrez”. Ou seja, a região onde está situado o restaurante Q’Sabor possui, seguramente, um desenho urbano com mais de 170 anos. Na Rua Álvaro Chaves, próxima ao Restaurante, ainda é possível observar trilhos de bondes que, durante a segunda metade do século XIX, funcionavam com tração animal e em 1915 passaram a funcionar com energia elétrica de forma quase concomitante a iluminação pública urbana66.



64 Disponível em http://goo.gl/EfL39p. Acesso em 26/02/2014.

65 Na obra de Magalhães (1993, p. 97) há uma reprodução do mapa urbano de 1835, onde é possível observar o

desenho urbano da região do Porto de Pelotas.

66 As informações sobre o transporte público de bondes em Pelotas são do pesquisador Carlos Pimentel Mendes

A maioria dos frequentadores usa a bicicleta como meio de transporte ao Restaurante durante a hora do almoço, sobretudo os trabalhadores das empresas metalúrgicas. As ruas da esquina e o entorno têm uma constituição espaçosa com calçadas relativamente largas. O calçamento é formado por paralelepípedos e a via de asfalto mais próxima é a Rua Gomes Carneiro, distante duas quadras acima do Restaurante, no sentido do mapa da Figura 4. Esta Rua, Gomes Carneiro, foi asfaltada no ano de 2008, quando houve a mudança da reitoria da UFPEL para a região. O que se pode observar com relação ao deslocamento dos frequentadores é que a maioria não utiliza automóvel para ir ao lugar por conta da proximidade com os locais de trabalho.

Figura 5 - Esquina do Restaurante Q’Sabor na hora do almoço

Fonte: fotografia feita pelo autor em fevereiro de 2014.

Outro aspecto que se refere ao entorno do lugar é relacionado ao meio-fio, ou “cordão da calçada” que, assim como na maioria das ruas da região central de Pelotas, é bastante alto em relação ao nível da via urbana. A ausência de asfalto nas ruas do entorno, de certa forma, estabelece um ritmo mais lento ao trânsito, claramente diferente das mudanças ocorridas com o asfaltamento da Rua Gomes Carneiro que culminaram no excesso de velocidade dos automóveis e uma experiência urbana de maior hostilidade aos transeuntes. A altura do meio- fio, em igual medida, indica um espaço urbano que não foi originalmente projetado para o

trânsito de automóveis e que permaneceu inalterado, em certa medida, mesmo com o advento dos veículos motorizados no século XX.

O Restaurante Q’Sabor está há mais de nove anos no atual imóvel, mas existe há 20 anos. Com a aquisição dos antigos prédios industriais pela UFPEL, além dos já existentes, houve um aumento considerável na circulação de público nos estabelecimentos comerciais da zona do Porto e, muitos deles, ampliaram sua área física para atender a demanda. Além disso, muitos outros estabelecimentos da área de alimentação, como restaurantes e bares, foram criados. No perímetro de um quilômetro do Q’Sabor é possível identificar ao menos mais oito restaurantes, sendo que seis desses estabelecimentos foram criados após o ano de 2008 com o aumento da circulação dos públicos em vista da ocupação da UFPEL. A grande maioria dos outros restaurantes observados, sete, possuem distinções em relação ao Q’Sabor em vários aspectos: todos têm sistema de buffet por quilo, com preços maiores, sem a opção do “prato feito”, aparelhos de ar-condicionado, conexão a internet sem fio e uma programação estética quanto a decoração e móveis, em maior ou menor grau. Em pelo menos dois desses estabelecimentos é comum a permanência de sujeitos que, como Jessé Souza (2012) define, pertencem ao habitus precário: permanecem na porta dos estabelecimentos pedindo esmolas ou como guardadores de carro dos clientes. Em outros, os proprietários contratam funcionários que impedem a permanência desses sujeitos. Apenas um estabelecimento, pelas características simbólicas e pelo preço dos serviços, tem aproximações quanto aos públicos com o Restaurante Q’Sabor. Este Restaurante está situado a duas quadras do estabelecimento estudado e surgiu, também, a partir do ano de 2008.

Durante o período de observação, no contexto do espaço urbano, não percebemos a ocorrência de pedintes ou guardadores de carro no entorno do Restaurante Q’Sabor. Embora o público do Restaurante, em sua maioria, não seja identificado com o habitus precário, em algumas ocasiões, observamos a presença de sujeitos pertencentes a este estrato social, seja como clientes ou para fazer uso do banheiro e pedir água.

A experiência do espaço urbano, segundo Michel de Certeau, pode completar-se a partir do ato de caminhar “que está para o sistema urbano como a enunciação (o speech act) está para a língua ou para os enunciados proferidos” (2012, p. 164). De forma que a caminhada é a “realização espacial do lugar”. Como tal, a experiência de contato do pesquisador com o Restaurante, deu-se, quase que diariamente, na caminhada entre o local de trabalho e o estabelecimento na hora do almoço. Como no caso da maioria dos frequentadores, o percurso ao Restaurante constituiu um trajeto curto, de poucos minutos. A experiência é a de transitar por calçadas largas e ruas arborizadas que não convivem com um

frequente movimento de automóveis em alta velocidade. No entanto, longe de ser uma experiência hermética, fruto de um planejamento urbano moderno, o caminhar, neste caso, permite o contato com uma maioria de construções residenciais com muitos anos e também prédios abandonados, alguns, pelo que se pode notar, há muito tempo abandonados. A estrutura urbana, projetada há muitos anos, permanece e traz consigo marcas temporais que são visíveis nas paredes dos imóveis e, também, nas calçadas, muitas delas com algumas irregularidades.