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3. ENQUADRAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.2 Classe social

3.2.1 Classe social na “nova periferia”

Essa noção de classe social feita à moda de Pierre Bourdieu, quando aplicada ao contexto ao qual esta pesquisa se refere, precisa de determinadas compreensões distintivas. A constituição das classes na realidade brasileira é vivenciada em uma cadência singular. Jessé Souza inclui o caso brasileiro na “nova periferia”, em oposição a uma “velha periferia”. Esta última se caracteriza por um universo simbólico relativamente autônomo, como o caso das sociedades orientais observadas por Max Weber, onde houve certa autonomia do simbólico em relação ao “profano” ou ao econômico e, assim, a dificuldade de certa forma imposta para que o capitalismo, que se desdobra nas classes estruturadas pelo habitus, penetrasse em corações e mentes. No caso da “nova periferia”, como um sinônimo para a modernidade periférica, Souza vai de encontro a algumas teorias de fundo do pensamento brasileiro nas ciências sociais, como a de Gilberto Freyre, ao observar que “a religião jamais chegou a converter-se em uma esfera moral autônoma no Brasil colonial” (2012, p. 95). Ou seja, no caso brasileiro, a modernidade não contou com especificidade simbólica para apresentar algum tipo de “resistência” social ao processo moderno, como nas sociedades orientais pela vista weberiana, tampouco dispôs de algum lastro simbólico que permitisse sua valoração, de alguma forma, por todas as classes, como ocorreu com as sociedades anglo-americanas. No contexto brasileiro, as “práticas” da modernidade antecederam as “ideias” (2012, p. 96). Vivenciou-se a modernidade sem o devido tempo de “incorporação” pela sociedade como um todo, como ocorreu no hemisfério norte.



51 Assim como Jesús Martín-Barbero, na escrita de Dos meios às Mediações também confere à classe uma

Na trilha de Florestan Fernandes, Jessé Souza observa que o processo de modernização brasileiro foi uma “revolução burguesa encapuzada” (2012, p. 98). As marcas distintivas em relação ao hemisfério norte passam por uma contingência de abandono histórico das parcelas socialmente vulneráveis da população que, em determinado momento, como por exemplo o negro cativo, são deixadas à sua própria sorte, como no contexto histórico de Pelotas, visto anteriormente.

No panorama de uma modernidade periférica “nova”, portanto, o uso da categoria de

habitus como definidora da classe social não pode ser interpretado da mesma maneira de seu

contexto original da pesquisa com os atores sociais franceses. O radicalismo de Pierre Bourdieu com as classes subalternas em abstê-las de quase toda a autonomização simbólica, para Jessé Souza, deflagra um dos principais problemas do trabalho do sociólogo de A Distinção que “impede de perceber os processos coletivos do aprendizado moral que ultrapassam de muito as barreiras de classe” (2012, p. 166). Para a sociedade francesa moderna, que proveu o bem-estar social aos seus cidadãos, a “necessidade”, o gosto formado através do prático e do simples, poderia constituir uma marca simbólica de distinção em relação a outras classes.

O que é visto como “necessidade”, neste contexto, comparando-se a sociedades periféricas como a brasileira, adquire o sentido de consolidação histórica e contingente de lutas políticas e aprendizados sociais e morais múltiplos de efetiva e fundamental importância, os quais passam despercebidos enquanto tais para Bourdieu (SOUZA, 2012, p. 166).

De forma que o autor propõe uma “subdivisão interna” ao habitus, de modo a aplicá-lo não apenas genericamente, no caso da pesquisa brasileira, mas constituir “um caráter histórico mais matizado” em falta na teoria de Bourdieu. O raciocínio é lógico: se o habitus é uma “incorporação” de esquemas avaliativos e de julgamentos fundamentados em uma determinada realidade socioeconômica, se há a mudança desta realidade, deve haver também mudanças na constituição dessas disposições avaliativas, “para todas as classes”.

Jessé Souza chama de habitus primário o que Pierre Bourdieu define em sua teoria sob condições básicas que são partilhadas entre as classes. Trata-se das mesmas disposições para julgamento, já vistas, que distinguem as classes, mas sob determinadas condições de “dignidade”. Essa dignidade, fruto da associação feita por Souza com a teoria de Charles Taylor, tem um caráter “transclassista” à medida em que é percebida como premissa para fundar a ideia de igualdade e, consequentemente da “noção moderna de cidadania”. No

subsistência nas dimensões da vida social. O nível mais raso, portanto, ocorre exatamente na simples existência dessas condições básicas, quase como uma obviedade, própria aos trabalhadores pobres da França. Souza atenta para a fragilidade dessa primeira noção em sua pesquisa e produz subdivisões no habitus para fazer com que possa ser aplicado a outros contextos da “nova” periferia. Para tanto, propõe outras duas segmentações, um habitus

precário e um habitus secundário.

O habitus precário é definido pelo limite do habitus primário só que “para baixo”. Os

sujeitos, portanto, que não acessam condições mínimas de subsistência e têm seu direito à vida limitado ou negado, partilham de um esquema de disposições práticas de ordem precária em relação à exigência produtiva da modernidade, não gozam de nenhum reconhecimento pelos outros e são excluídos em praticamente todas as dimensões sociais. Na sociedade brasileira, como demonstra o autor em seus trabalhos anteriores (2009), há um imenso contingente de pessoas, “quase 1/3 da população” (2009, p. 22) que está situada estruturalmente nesse local, a “ralé brasileira”.

Já o habitus secundário utiliza também o limiar da “dignidade” como marca, só que

ocorre “para cima” e pressupõe a existência de uma condição onde possa ter aplicação prática e efetiva uma disposição definida pela categoria do “gosto”, tal como a origem bourdieana, mas diferente dela à medida em que nem toda a sociedade está inclusa no esquema classificatório. Essa condição secundária, o terceiro elemento da tríade de divisões propostas, representaria toda a parcela da população brasileira que tem, em maior ou menor medida, acesso à vida digna, e portanto pode ser inclusa em um universo de distinções simbólicas bastante complexo. Uma vez que os sujeitos são “úteis” ao capital, sua posição na sociedade pelo ponto de vista da produção, como define o marxismo clássico, é associada a “uma estilização da vida’ de modo a produzir distinções sociais” (SOUZA, 2012, p. 172).

A categoria gosto é uma espécie de “moeda invisível” que, segundo o autor, transforma o capitalismo econômico e cultural por meio das performances dos sujeitos no uso de discursos estéticos e culturais, sem considerar como ocorre a oferta desses discursos. O “talento inato” necessário ao exercício do gosto opera pelo apagamento de sua base fornecida pelas condições. Além da pré-disposição para o julgamento, em última análise, o que garante a existência do habitus como distinção social e estruturação de classes é a “dimensão objetiva da moralidade”, fruto da associação da teoria de Bourdieu com a de Taylor, como forma de superação de uma abordagem “contextualista” e a-histórica do primeiro. Souza observa que as subdivisões do habitus, no caso da “nova periferia” o habitus precário e o habitus

poderiam explicar “o apelo e a eficácia social” de que dispõem e “o caráter violento e injusto da desigualdade social se manifestaria de forma clara e a olho nu” (SOUZA, 2012, p. 169). No caso da classe social pertencente à disposição precária, a base moral é colocada em termos de uma “ideologia do desempenho”, proveniente do pensamento crítico de Reinhard Kreckel, que observa um pano de fundo sobre o qual o “trabalho útil, disciplinado e objetivado” fornece uma explicação moral convincente para a exclusão social dos que não têm esse pressuposto. Se os pobres não conseguem lograr o êxito produtivo no capitalismo, isso não é um problema das outras classes. O que, para Souza, produz o fenômeno da “subcidadania” nas sociedades periféricas que não apenas não conseguem incluir mas também tornam invisíveis essas parcelas da população de todo o resto.

No habitus secundário, no entanto, a disposição moral dominante para a estruturação das distinções sociais, segundo Souza, é a expressividade e a autenticidade, oriundas do trabalho de Taylor. A justificativa para a distinção, portanto, coloca-se por uma busca por identificações singulares em relação a todos os outros, na lógica de um imperativo de autenticidade para os sujeitos, sempre ameaçados pela falta dessa autenticidade. O “gosto”, portanto, manifestado de forma flagrante no consumo, é moralmente justificado pela necessidade de expressão do sujeito em relação ao mundo. Essa busca pode acontecer tanto em termos de um “estilo próprio”, na construção de um discurso pessoal identitário, quanto ao “processo de individuação superficial”, mais recorrente, baseado na noção de um quick fix, as soluções rápidas para a questão da autenticidade fornecidas pelos universos de consumo.