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Aspectos subjetivos e pessoais na sociabilidade relacionada com a

5. A TELEVISÃO NA SOCIABILIDADE DOS PEQUENOS

5.2 A televisão na sociabilidade dos pequenos estabelecimentos comerciais

5.2.1 Aspectos subjetivos e pessoais na sociabilidade relacionada com a

Abaixo foram recortadas situações onde os atores sociais da investigação incluíram na sociabilidade suas questões “subjetivas e inteiramente pessoais”. Relatamos três casos observados em sequência com uma posterior interpretação. No primeiro deles, na primeira semana de março de 2014, um dos assuntos de grande repercussão nos veículos de comunicação do Rio Grande do Sul e do Brasil116, particularmente os da RBS TV, foi o caso do árbitro de futebol Márcio Chagas da Silva que apitou um dos jogos do Campeonato Gaúcho de 2014 entre Esportivo e Veranópolis. O árbitro, neste jogo, foi vítima de atos de racismo com ofensas dos torcedores e dirigentes do clube mandante na cidade de Bento Gonçalves. Ao chegar em casa, relatou por meio de um correio eletrônico enviado à imprensa e amigos a discriminação sofrida que incluiu não apenas xingamentos, mas questões simbólicas como a colocação de bananas em cima de seu automóvel. A mensagem do árbitro teve uma repercussão imediata em todos os veículos de impressa. O Jornal do Almoço, noticiário do meio-dia da RBS TV, durante a semana, deu amplo espaço ao caso comentado não apenas nas notícias esportivas mas em diversos momentos do telejornal.

Em um dos dias, o árbitro concedeu entrevista e se emocionou a falar do caso e da questão do racismo no futebol. Neste dia, no Restaurante Q’Sabor, praticamente todos os frequentadores e funcionários comentaram o caso amplamente. Alguns observando que o racismo não é uma novidade no contexto do futebol e relatando diversas situações presenciadas por eles em jogos dos times locais. Nesta ocasião, almoçamos junto a uma das 

116 Diversos veículos de imprensa do país deram repercussão ao caso além da RBS TV. O que provocou, junto

com outros casos correlatos, um debate sobre o tema nos programas esportivos do tipo mesa-redonda. A presidente Dilma Rousseff, inclusive, recebeu na semana seguinte o árbitro no Palácio do Planato, em Brasília, juntamente com o jogador Tinga, ambos vítimas de racismo no futebol, conforme a matéria do portal de notícias G1: http://glo.bo/1knqBR8. Acesso em 2 de agosto de 2014.

funcionárias117 do Restaurante que comentou o caso. Ela relatou que “isso acontece muito” e que já havia perdido a conta das vezes que sofreu discriminação. A informante contou uma situação em que estava a bordo de um coletivo urbano e foi duramente xingada por um idoso por ocupar os assentos da frente. A repreensão teve um caráter racista e ela reproduziu na conversa exatamente as palavras utilizadas que indicaram a discriminação. Não houve constrangimento na conversa em relatar o caso, que foi associado à repercussão midiática do racismo no futebol. Embora tenha sido possível perceber a revelação de uma dor humana, pelo fato de as ofensas terem sido reproduzidas, conforme ditas, pela informante, o fato cotidiano foi relatado como se correspondesse a um episódio da vida cotidiana, sem nenhum tipo de reserva no relato, considerando a relação de frequentador do pesquisador.

Um segundo caso ocorrido durante o trabalho de campo, em proximidade a este, ocorreu na combinação de uma situação de estar assistindo TV e da entrevista, também no Restaurante Q’Sabor. No dia 15 de abril de 2014, o bloco local do Jornal do Almoço noticiou a falta de leitos na UTI pediátrica do município. Além disso, a reportagem mostrou o caso de um pai, agricultor, com um filho recém nascido e sem a disponibilidade de leitos. A notícia foi divulgada, curiosamente, um dia depois da inauguração de mais leitos na UTI. Segundo reportagem do Jornal Zero Hora118, do mesmo dia 15 de abril, a inauguração dos novos leitos, noticiada anteriormente, “não foi bem entendida pela imprensa local”, já que, como apurou o Jornal, as novas vagas estariam disponíveis apenas dentro de 60 dias. Neste momento, estávamos em entrevista com o frequentador Alvacir e a reportagem foi exibida durante a conversa. O informante, ao ver a reportagem, lembrou de um caso ocorrido com um familiar seu e relatou:

Até eu estava vendo a notícia da UTI ali. Ela [a filha de Alvacir] nasceu de oito meses também, ficou vinte e um dias na UTI, lá no hospital. Ela não era para ficar, era para ficar um ou dois dias porque tinha baixado a glicose. Só que quando foi para a UTI pegou uma infecção, uma meningite. Aí eles não sabiam o que era a infecção e estavam tratando com antibiótico para uma outra coisa e não dava resultado. Aí eu comecei a pressionar os médicos, ir lá. Conversei né? “Pois é doutora, como é que é? Ia sair em uma semana”. Aí a doutora explicou que estavam tratando para uma infecção, só que não era. “Ela está com meningite. Agora a gente vai ter que trocar o antibiótico”. Aí fiquei vinte e um dias naquela função, eu não tinha tranquilidade, ficava direto dentro do Hospital. Saía para atender e já estava preocupado, eu atendia um pouquinho e já ia para o hospital. Eu vi ali, agora, o drama do pai, 8 meses, a mesma coisa: nenê com problema no pulmão. Porque a RBS entrevistou, agora de tarde eles vão encaminhar para a UTI. Eu graças a Deus com minha filha não tive problema, ela foi direto para a UTI, porque baixou a



117 Em alguns momentos de relato dos informantes, no caso dos funcionários e proprietários que tiveram seus

nomes mantidos, o procedimento foi não identificá-los em vista dos temas tratados.

glicose, levaram. Só que dentro da UTI é muito perigoso né? Ela pegou uma infecção (Alvacir, 53 anos, frequentador).

Por último, um terceiro caso ocorreu quando foi divulgada, também no Jornal do Almoço, no dia 8 de janeiro de 2014, uma reportagem com caráter de serviço que orientava a população sobre a viagem de menores desacompanhados no transporte intermunicipal. As informações eram sobre a documentação necessária para a liberação do embarque de crianças e jovens dos doze aos dezessete anos de idade. Neste dia estávamos dividindo mesa com um dos trabalhadores frequentadores do Restaurante Q’Sabor. Ele contou à respeito de uma enteada que, nesta faixa de idade, estava causando preocupação por um comportamento rebelde e fora dos limites, inclusive envolvendo o Conselho Tutelar que fez diversas visitas à casa da família. O frequentador relatou esse problema pessoal detalhadamente na conversa. Em diferença com os outros casos, na relação com a televisão, está o fato de que a notícia do telejornal tinha um caráter menos objetivo do que a preocupação com sua enteada demonstrada pelo frequentador mas, mesmo assim, serviu de pretexto para iniciar a conversa.

No conjunto destes três casos é possível pensar os limites da sociabilidade, das questões referidas por Simmel como “tato”, em seu atravessamento com o social e o que os sujeitos não escolhem. Nos casos dos atores sociais está implicada uma alteridade específica relacionada diretamente com o entendimento do que se pode ou não incluir na conversa com o outro. A forma pela qual se estruturam as disposições para julgamento, definidoras da classe social, pré-definem, de alguma maneira, a possibilidade que os sujeitos têm de se reconhecer e do estabelecimento dos próprios limites da conversa. Como Simmel (1983) observou, a premissa kantiana de “que a minha liberdade começa quando termina a do outro” pressupõe que os sujeitos tenham em si uma noção específica de liberdade que é socialmente condicionada. Assim, uma falta de “tato” de uma sociabilidade ocorrida à maneira pequeno- burguesa não pode ser compreendida como equivalente dentro das práticas de outras classes.

Dentro da proposição de Jessé Souza, no entendimento de uma ciência social “que não obscureça, mas ao contrário, explicite os conflitos sociais e as dores humanas silenciadas” (2012, p. 19), entra a relação da teoria disposicionista de Bourdieu e a do reconhecimento social oriunda de Charles Taylor. O segundo autor, em A ética da Autenticidade (2011), observa que o “relativismo suave” é um princípio moral do individualismo moderno. Como define Taylor, a cultura moderna coloca como o foco de uma vida considerada boa e desejável, a própria “vida ordinária: isto é, a vida de produção e da família, do trabalho e do amor” (2011, p. 53). Dentro desse relativismo, os sujeitos devem compreender sua existência como algo a ser aproveitado, uma “vida boa”, distante, portanto das dores e dificuldades

humanas. Existe, conforme o autor, uma conexão dessa premissa com o fato de que nosso reconhecimento como sujeitos, exige, obrigatoriamente, uma relação de reconhecimento dos outros. Ou seja, o relativismo suave não existe apenas individualmente, mas também é partilhado, por exemplo, através da sociabilidade.

De maneira que é possível uma associação entre o “relativismo suave”, como um princípio moral, e a proposição kantiana em relação à liberdade condicionada à do outro inclusa na sociabilidade. No atravessamento da estrutura social, nos casos observados na investigação, a aspiração a uma “vida boa” não pode ser integralmente depositada sobre a “vida ordinária”. Em curtas palavras, nem sempre é possível sustentar uma prática de sociabilidade que preze por uma exclusão dos temas puramente pessoais, já que essas questões não são desprezíveis na vida cotidiana dos sujeitos. Elas representam diretamente uma desigualdade em termos de reconhecimento social, na impossibilidade em excluir sumariamente as “dores humanas” em algumas situações de contato sociável com os outros ou, de outra maneira, reservar esse tipo de conteúdo a uma situação permeada por laços sociais muito íntimos, por exemplo.

De forma que, na relação entre televisão e sociabilidade, o “tato”, compreendido em sua espessura social, está presente na maneira com que os sujeitos fazem juízo do que pode, ou não, ser comentado com os outros na potência dos assuntos que assistem na mídia quando estão em grupo. Ele pode ser compreendido como inserido na mediação da socialidade, situada por Martín-Barbero entre matrizes culturais e competências de recepção ou consumo, enquanto “gerada na trama das relações cotidianas que tecem os homens ao juntarem-se” (2003, p. 17). Na mediação da socialidade as matrizes culturais “ativam e moldam os habitus que conformam as diversas Competências de Recepção”. Tal qual observado pelo autor, no caso do atravessamento social dos limites da sociabilidade, as matrizes culturais moldam as disposições dos sujeitos e estas são traduzidas em competências de recepção e consumo cultural específicas.

Assim, é possível observar o habitus como ativador de uma competência cultural que se constitui em termos de ver os temas do telejornal, nos casos estudados, em proximidade com os problemas da “vida ordinária” e fazer disso um elemento da sociabilidade no caso das classes populares. Cabe observar que compreender a sociabilidade em relação com o social constitui minimamente uma diferença à abordagens excessivamente culturalistas sobre as práticas dos sujeitos já que o que está em questão é a “não escolha”, a impossibilidade ou dificuldade, imposta socialmente, em estabelecer um limiar de uma vida, na forma social, ausente de “dores humanas”. As formas com que os sujeitos se relacionam com a mídia ou

falam sobre suas próprias vidas, desta maneira, é conexa, de alguma maneira, com a estrutura social à medida em que, como lembra Stuart Hall, devemos manter “a dialética entre as duas metades da proposição segundo a qual ‘os homens fazem história com base em condições que não escolhem’” (2003, p. 149).