• Nenhum resultado encontrado

A sociabilidade gerada pela temática da violência a partir da televisão

5. A TELEVISÃO NA SOCIABILIDADE DOS PEQUENOS

5.2 A televisão na sociabilidade dos pequenos estabelecimentos comerciais

5.2.3 A sociabilidade gerada pela temática da violência a partir da televisão

Os temas relacionados à segurança pública e violência quando vistos na televisão nos estabelecimentos, durante o período de observação, foram alguns dos que mais geraram sociabilidade entre os informantes. Geralmente o noticiário sobre os homicídios ocorridos na cidade despertou a atenção imediata dos frequentadores. Nos casos mais flagrantes, todos silenciavam para assistir as notícias.

No caso de Pelotas, cabe contextualizar a respeito do número de homicídios ocorridos durante o período onde as situações de pesquisa foram observadas, em 2014. O veículo impresso de maior circulação em Pelotas, o Jornal Diário Popular, há três anos faz um mapeamento de todas as mortes ocorridas em situação de crime.

Figura 17 - Mapa da Violência em Pelotas até julho de 2014 editado pelo Jornal Diário Popular

Fonte: Google Maps122

No primeiro levantamento, em 2012123, foram registrados 55 mortes. Em 2013124 o número sofreu uma pequena redução, pois houve o registro de 53 homicídios. Já em 2014, o índice tende a fechar o ano em aumento, já que até o mês de julho foram registrados 44 ocorrências. Além dos números, como apresentado na Figura 17, é possível observar a incidência dos crimes sobre o espaço urbano de Pelotas, já que o jornal utiliza a ferramenta Google Maps para demarcar a localização das ocorrências. O mapa atual permite visualizar que a incidência de crimes ocorre sobre as regiões mais pobres da cidade, como nas partes do Bairro Areal 

122 Os dados de 2014 estão disponíveis em http://goo.gl/maps/UlcCt. Acesso em 3/8/2014. Não foi possível obter

da ferramenta uma imagem com melhor resolução.

123 O mapa de 2012 está disponível em http://goo.gl/maps/bqwV7. Acesso em 3/8/2014.

após a Avenida São Francisco de Paula, na região do Navegantes, ao final da Avenida Bento Gonçalves e em algumas regiões do Bairro Fragata, mas não exclusivamente. Os crimes também são recorrentes na região central, especialmente na parte em que sofreu poucas modificações no desenho urbano em comparação ao século XIX, conforme referimos anteriormente.

Uma das situações que gerou repercussão nos frequentadores e funcionários do Restaurante Q’Sabor foi uma notícia exibida no bloco local do Jornal do Almoço sobre a inauguração do policiamento comunitário em Pelotas125, no dia 10 de junho de 2014. A iniciativa implantou onze núcleos de policiamento comunitário abrangendo todos os bairros de Pelotas, com o efetivo de 44 policiais militares. Com a ação, os policiais passaram a residir nos bairros onde cumprem o trabalho. Na matéria do telejornal, foi também entrevistado um morador que ressaltou a facilidade de acesso à Brigada Militar. Uma das iniciativas da ação seria justamente a redução do número de homicídios126. Após a exibição da matéria surgiram diversos comentários dos atores sociais no estabelecimento. Em diferença ao depoimento do morador utilizado na matéria jornalística, houve algumas manifestações com certa desconfiança se, de fato, a presença dos policiais transmitiria mais segurança à população. Um dos frequentadores argumentou que “não adiantaria nada” ter o policial no bairro, já que “quando se precisa, nunca estão por perto”.

Algo a ser destacado sobre a temática da violência é também a presença do tema, na relação com a televisão, durante as entrevistas. Um dos informantes do Bar Liberdade, Arnaldo, demostrou certa rejeição à repetição do tema da violência nos telejornais locais. Ele costuma almoçar no Bar e permanecer durante a tarde no aguardo do transporte para a zona rural:

A TV tem coisas boas e tem coisas ruins. Hoje tu vê notícias e é só tragédia, Pelotas aqui está virando um açougue. É só isso que dá, então força muito né? Mas eu gosto de ver. Ás vezes incomoda muito, ficam ali e não resolvem nada, mas o programa é deles (Arnaldo, frequentador, 65 anos).

Na percepção de Arnaldo, não adianta as notícias deflagrarem a violência e não “resolverem” no sentido de propor soluções para o caso. Também no Restaurante Q’Sabor, dois funcionários relataram a temática da violência em relação a percepção das conversas que envolvem a televisão no ambiente do estabelecimento.



125 A notícia pode ser vista no endereço: http://goo.gl/nxSHud. Acesso em 3 de agosto de 2014.

126 Segundo o relato do coordenador do projeto, Júlio César Marobin, conforme notícia da Rádio Gaúcha, a ação

reduziu o índice de homicídios em 57% na cidade de Caxias do Sul/RS. Disponível em http://goo.gl/JiYWXG. Acesso em 3 de agosto de 2014.

Quando tem algum interesse eles olham. [...] Quando eles querem escutar alguma coisa todo mundo fica quieto, todo mundo olhando para cima. Geralmente é assassinato, quando mataram um, principalmente quando é aqui na cidade, aí o pessoal quer saber mais ou menos quem é ou se conhece ou se é conhecido, aí eles ficam focados na notícia (Marizete, funcionária, 50 anos)127.

No caso de Marizete os tema da violência e dos homicídios foi lembrado como um dos mais recorrentes na atenção dos frequentadores, especialmente quando são noticiados os crimes ocorridos em Pelotas e se as pessoas envolvidas são de alguma forma conhecidas pelos frequentadores. Em um dos noticiários de homicídios, em 2014, presenciamos uma situação de um frequentador ter manifestado que conhecia uma vítima de um assalto a um estabelecimento comercial do bairro Fragata em Pelotas. Tratava-se do dono de uma pequena mercearia do Bairro que foi assassinado pelos assaltantes. O tema foi também recorrente no relato do informante Richard, a partir de sua própria experiência com a violência:

O que chamou a atenção na TV foi quando começou a dar muito assalto em Pelotas. Aí a mãe não quis mais me liberar para sair né? E aí eu disse: “Bah, Pelotas tá complicado, bastante assalto, bastante mortos né?”. E aí a mãe disse: “não vai mais poder sair”. Aquilo lá marcou para mim, a mãe não deixou mais sair porque tem que evitar assalto. E além disso, uma vez quando eu fui numa festa eu e minha irmã tínhamos chegado até a metade da quadra quando encostou um cara de moto e deu cinco disparos num guri. E aí aquilo me marcou também e disse: “não, não vou mais nas festas”. Cortei, não quis ir mais. Eu gostava de ir em uma festa. Quando começou a ficar violento não fui mais. Na TV dá as notícias e aí eu já fico avisado (Richard, funcionário, 16 anos).

A experiência de Richard é destacada pelo próprio fato de ele ter presenciado disparos em uma ocasião, na proximidade de uma casa noturna de Pelotas. Ele acompanha o noticiário sobre a violência no Restaurante, geralmente na presença de sua mãe, Adriana, que também é funcionária. A televisão, para ele, tem um sentido de “avisar” os perigos da cidade e perceber o quanto Pelotas se torna uma cidade “complicada”.

Na associação com a teoria, como parte de algumas noções vistas no capítulo dois, é possível observar esta questão a partir da temática do urbano, na contribuição de David Harvey (2009) sobre um determinado espaço que pode ser “apreendido” em termos informacionais. De forma que é possível que se “conheça” a cidade a partir de uma construção puramente informacional, no caso, os relatos midiáticos que são feitos sobre ela. Como também referido no capítulo dois, a partir do que observa Beatriz Jaguaribe, as narrativas midiáticas têm a possibilidade de criar rupturas com o espaço urbano que “deslancham consequências reais” (2007, p. 107). Ainda na contribuição da autora, há a 

questão do “impacto das representações da violência e como elas articulam as noções de perigo e de risco na cidade” (2007, p. 124).

Sobre a questão do espaço urbano de Pelotas e os casos recortados, cabe a interpretação da violência vista na televisão pelos atores sociais dos estabelecimentos. Os discursos da mídia têm uma possibilidade “virtual” de definir o próprio espaço urbano na situação de uma cidade “complicada”, na visão de Richard que se apresenta pela televisão, cotidianamente, considerando mais de 40 homicídios em seis meses. Em seu caso, os relatos sobre a violência assistidos no Restaurante representaram uma “consequência real” de não poder mais ir à casa noturna por proibição de sua mãe. Assim como, também, pela saturação, os noticiários de assassinatos passam a fazer, de fato, parte desse cotidiano dos atores sociais. Os repetidos relatos midiáticos dos crimes conduzem à banalização deste tipo de registro quando ocorrido em determinado extrato social. Como observou Arnaldo, a cidade vira um “açougue”.

Em relação à banalização do tratamento da violência, como observa Jessé Souza “existe uma rede invisível que une desde o policial que abre o inquérito até o juiz que decreta a sentença final, passando por advogados, testemunhas, promotores, jornalistas, etc.” (2012, p. 175) que, no exemplo citado pelo autor, podem concordar em inocentar e, acrescentamos, ao inverso, podem também culpar por conta das disposições pré-reflexivas da classe social. Na recorrência dos registros midiáticos dos homicídios, contabilizados pelo Mapa da Violência em Pelotas, e nas matérias dos telejornais acompanhadas durante o almoço no período de observação, chama a atenção a produção de uma abordagem protocolar, com a maioria das vítimas identificadas com o que Souza percebe como “ralé estrutural”, no comparativo com crimes ocorridos em outras classes128.

Na relação com as disposições da classe social, foi representativa em duas situações a proximidade dos atores sociais com a violência urbana. No caso de Richard, a percepção midiática sobre a violência foi entrecruzada com a experiência real de presenciar disparos em uma determinada situação. E, de forma mais evidente, no interesse dos frequentadores, como observou Marizete, quando existem notícias sobre homicídios: “o pessoal quer saber mais ou menos quem é ou se conhece ou se é conhecido”, como de fato ocorreu no caso de um dos frequentadores ter manifestado que conhecia uma das vítimas de assassinato. Em ambos os exemplos é possível perceber a proximidade entre uma apreensão informacional da violência 

128 Como, por exemplo, ocorreu durante a pesquisa com o tratamento midiático do caso do menino Bernardo, da

cidade de Três Passos/RS, que também gerou alguma repercussão nos lugares, lembrada pelos informantes Arnaldo, do Liberdade, e Cláudio no Q’Sabor.

na cidade com a própria experiência cotidiana, de saber onde os crimes acontecem e já ter presenciado uma ou outra situação.

Não é possível dizer que os atores sociais da pesquisa têm um contato experiencial cotidiano com a violência urbana, mas, tampouco, que sua percepção produz indiferença ou total distanciamento. A maneira de comentar sobre os noticiários de crimes e homicídios sob a hipótese de “conhecer”, já que, em alguns casos, os atores sociais moram em relativa proximidade com onde ocorrem os crimes, indica uma forma de julgar estes temas como não tão distantes quanto a percepção colocada em outros estratos sociais poderia sugerir. O que permite interpretar que a violência urbana, no contexto dos informantes da pesquisa, é um tema lido a partir de determinadas competências culturais do “conhecer” que são ativadas pelo habitus. O espanto com a criminalidade e as mortes, no julgamento dos atores sociais, convive com uma proximidade do “conhecer” ou de saber onde a violência ocorre.