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3. ENQUADRAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.3 Mediações

Na eleição de noções que compõem o quadro teórico da presente investigação, também cabe uma observação sobre as mediações. Trata-se de um tema difundido no percurso intelectual de Jesús Martín-Barbero e de grande amplitude na vertente latino-americana dos estudos culturais. Como observa Escosteguy, a noção significa, em síntese, um deslocamento dos meios “para o denso e ambíguo espaço da experiência dos sujeitos” (2010, p. 106), de forma prática com foco de interesse nos momentos onde os atores sociais põem em diálogo as mensagens midiáticas com seus próprios contextos. O caminho para tanto é a proposição inicial de um “mapa noturno” perceptível, tal como o habitus, a partir da esfera do consumo. Desde seu ponto de partida, em 1987, a noção passou por diversas apropriações feitas em meio a própria trajetória de Martín-Barbero, mas também de sistematizações de “autores brasileiros e latino-americanos” como observa Ronsini (2012, p. 56). A mesma autora, em

comunicação científica apresentada ao Encontro da Compós52 (2010), avalia a aplicação das mediações a partir da pesquisa empírica e realiza um diálogo com os diferentes “mapas” que articulam as noções de mediações ao longo do percurso barberiano.

Considerando, no entanto, as questões da presente investigação, tendo esta revisão o objetivo de agrupar as noções diretamente aplicáveis ao trabalho empírico, iremos recortar em dois momentos específicos: o de proposição das mediações ocorrido na primeira publicação de Dos Meios às Mediações e a escrita do prefácio à quinta edição castelhana, publicada no Brasil em 2003. A justificativa para esta definição está na observação de que estes dois momentos, sem excluir a relevância de outros, enquadram-se em proximidade com a presente investigação.

O primeiro, o “mapa noturno” é bastante próximo da “cotidianidade” e propõe a observação do consumo em determinados “lugares” preferenciais. Além disso o autor insere a televisão em sua primeira definição: “propomos partir das mediações, isto é, dos lugares dos quais provêm as construções que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural da televisão” (2003, p. 304). O segundo, como uma atualização deste pensamento, busca traçar um “novo mapa das mediações, das novas complexidades nas relações constitutivas entre comunicação, cultura e política” (2003, p. 15). Nosso papel é o de destacar, em breve medida, estes dois momentos.

Uma das preocupações que acompanham o momento de escrita de Dos Meios às Mediações, enquanto contribuição para os estudos em comunicação latino-americanos, é o rompimento com modelos teóricos de matriz “estrangeira” que foram concebidos no contexto de outras realidades. Somado à isso, como observam Escosteguy e Jacks, houve uma série de acontecimentos oriundos das próprias sociedades e das práticas culturais, como “a redemocratização da maioria dos países da região e a ação de movimentos sociais que levaram adiante lutas contra a repressão e a discriminação” (2005, p. 53). Não obstante, como também destacam as autoras, implicava um projeto de superação de um modelo teórico do marxismo clássico e, portanto, profundamente determinista, para um “marxismo de corte gramsciano” que irá reverberar diretamente em um olhar mais amplo que se insere em uma hegemonia não absoluta das estruturas dominadoras, mas “negociada”. Não apenas Martín- Barbero assim como outros pesquisadores da América Latina participam de um momento de mudanças “que privilegia as conexões entre comunicação e cultura” (2005, p. 52). A alteração de foco aparece no texto de 1987 quando Martín-Barbero observa que o abandono do 

“mediacentrismo”, isto é a atenção primordial aos meios, passa a ser abandonada mais pela “força com que os movimentos sociais tornam visíveis as mediações” (2003, p. 304).

As primeiras mediações delimitam um modo de pesquisa com a atenção voltada ao momento da “recepção” da mídia, pelo lado do consumo. Por muito tempo essa proposta foi interpretada, excessivamente, como se apenas o momento da recepção importasse no processo comunicacional, o que gerou uma série de reflexões críticas a partir do campo, por exemplo sobre a “supervalorização da capacidade de ação dos atores sociais manifesta, para uns, no terreno do consumo, para outros, no espaço da recepção” (ESCOSTEGUY, 2011, p. 199). A atenção à recepção neste momento significou a mudança de rumos necessária à investigação centrada em demasia nos meios, mas não um foco específico a partir do momento da recepção. Como esclarece Renato Ortiz, entre outros, “não se trata portanto apenas de recepção” (1999, p. 73).

Neste ensejo, “à guisa de hipótese” em um primeiro momento, Martín-Barbero estabelece três lugares de mediação. A primeira mediação é centrada no cotidiano familiar e compreende o espaço de contato e enfrentamento com os meios que acontece a partir dos lares, na intimidade das relações familiares. Este local, para o autor, representaria um dos poucos onde os indivíduos poderiam ter uma expressão comunicacional entre iguais, do “confronto” como pessoas. Por esta mediação é possível vislumbrar um determinado dispositivo de proximidade ou de intimidade da televisão que simbolicamente entra nesse espaço privado e cotidiano e estabelece uma “simulação do contato”. Desta forma, há uma retórica própria de alguém que fala às pessoas, por exemplo, na figura do apresentador que direciona seu olhar à câmera, diretamente ao sujeito receptor. “Na televisão, a visão predominante é aquela que produz a sensação de imediatez, que é um dos traços que dão forma ao cotidiano” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 207).

A segunda mediação deste momento é a temporalidade social caracterizada por uma clivagem da ordem da experiência de Benjamin no sentido da percepção fragmentária do tempo. Essa fragmentação opõe o sentido do polo da “produção” à medida em que se inscreve também no cotidiano e, reivindica um próprio aos sujeitos. Martín-Barbero faz uma associação direta do tempo perceptível por meio da experiência com o tempo sugerido pelo fluxo televisivo e o “gênero” atua como uma espécie de mediação entre a temporalidade da produção e o momento de recepção, fragmentário, entre os sujeitos. “Cada programa, ou melhor, cada texto televisivo remete seu sentido ao cruzamento de gêneros e tempos” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 308).

A última mediação do primeiro modelo é a competência cultural que se refere ao atravessamento de diferenças sociais na recepção da televisão. Esta proposição se insere diretamente na temática da classe social na medida em que, para o autor, há uma tensão inerente à televisão: uma tentativa de homogeneização de discursos ideológicos e de “desativação de diferenças sociais” que coabita com um “sensorium” que não é compatível com as classes dominantes. O “gênero”, segundo o autor, trabalha positivamente para a ativação de competências culturais dos sujeitos que “já conhecem” determinadas estratégias narrativas ou estéticas dos produtos da televisão, enquanto audiovisuais. Pierre Bourdieu, como vimos, já havia observado a questão do gênero nas classes populares em seus relatos empíricos no livro A Distinção (2011), com a diferença de que o autor hispano-colombiano atenta para a historicização do gênero, isto é, considera questões para além de seu pragmatismo.

À respeito da associação entre classes sociais observadas pela chave bourdieana e mediações à guisa de Martín-Barbero, Veneza Ronsini observa que a temporalidade social conecta-se com a classe a medida em que ambas permitem pensar um modo específico e próprio de relação do espaço e do tempo. A temporalidade social, neste contexto configura-se na “forma que o indivíduo imprime ritmo as atividades diárias e seu modo de avaliar as mudanças no seu modo de pensar, de se comportar e de atribuir valor às experiências em relação ao modo de fazê-lo das gerações anteriores” (2012, p. 82). No mesmo intuito, observa que a competência cultural, conforme nomeada por Martín-Barbero, refere-se ao conjunto de repertórios de ação, disposições de julgamento, o modo de consumo cultural que os sujeitos adquirem “na família e na escola”. Se localizado na teoria da reprodução de Bourdieu, “a competência cultural decorre ou está relacionada com o habitus” (2012, p. 83).

Da publicação da primeira proposta em 1987 até o prefácio à quinta edição castelhana do Dos Meios às Mediações, como considera Ronsini (2010), o autor “foi retomando as noções de mediação de forma esparsa”. Do prefácio, surge uma tentativa de dar sequência à noção onde são postas em jogo novas complexidades surgidas no caminho desde a publicação da obra inicial. Martín-Barbero preocupa-se com a centralidade da cultura que se instaura como mediadora em diversas afetações e não apenas àquelas circunscritas por antropólogos e sociólogos e suas tradições de pensamento. Entra em jogo um “novo mapa das mediações”, referenciado como mediações comunicativas da cultura pelo autor na escrita de Ofício de Cartógrafo (2004), para pensar essas novas complexidades, especialmente entre comunicação, cultura e política.

Figura 2 - Modelo das mediações apresentado no prefácio à quinta edição castelhana

Fonte: MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 16.

O mapa toma a forma de um esquema, representado graficamente, conforme a Figura 2, onde operam dois eixos: um diacrônico se move entre as matrizes culturais, que provêm do socialmente constituído, aos formatos industriais que apropriam essa constituição, por exemplo, através dos gêneros. Outro, sincrônico, estabelece-se entre as lógicas de produção, definidas pelo mercado, e as competências de recepção ou consumo.

As mediações são colocadas entre as quatro extremidades dos eixos, no sentido diagonal, como pode ser observado no esquema. Entre lógicas de produção e matrizes culturais há a institucionalidade, entre as mesmas lógicas e os formatos industriais a tecnicidade. Na parte inferior, entre as matrizes culturais e as competências de recepção encontra-se a socialidade e entre essas competências e os formatos industriais, a ritualidade. Para o propósito desta revisão, vamos nos ater às mediações inferiores, socialidade e ritualidade, por conta de serem, na medida do necessário, diretamente convergentes com o objetivo deste estudo. No entanto, compreendemos a relação dinâmica destas com as que ocupam os quadrantes superiores, em proximidade com as lógicas de produção. Ou seja, essa opção, embora defina a socialidade e ritualidade como mediações preponderantes, não exclui a possibilidade de observação, no empírico, da relação com outras mediações propostas.

Embora não haja um aprofundamento da discussão, Martín-Barbero coloca a socialidade como um sinônimo de sociabilidade que é “gerada na trama de relações cotidianas que tecem os homens ao juntarem-se” (2003, p. 17). Dessa forma, a socialidade, em certa

medida, aproxima-se com a noção de Georg Simmel53 vista no início do capítulo por conta da proximidade com o cotidiano e da forte ênfase no tecido das relações sociais e em movimentos de “reencontro com o comunitário”. A relação que produz a socialidade no novo mapa, entre matrizes culturais e competências de recepção, é também associada a categoria de

habitus: “as MC [Matrizes Culturais] ativam e moldam os habitus que conformam as diversas

Competências de Recepção”. Nesse sentido o habitus teria uma direta relação com a matriz cultural dos sujeitos compreendida como uma “disposição prática” que estabelece um quadro valorativo sobre as escolhas da vida e, não distante da televisão, sensos estéticos e culturais específicos. Segundo Ronsini, a socialidade, conforme inserida no esquema barberiano, “conecta a tradição cultural com a forma como os receptores se relacionam com a cultura massiva. É o lugar das práticas sociais onde as pessoas estão em constante negociação com a ordem vigente” (2012, p. 65).

A ritualidade é, por sua vez, colocada na relação entre competências de recepção e consumo e os formatos industriais. Martín-Barbero situa a mediação na constituição de determinados ritmos ou modos de ação da integração dos meios no cotidiano dos sujeitos. Tal como a temporalidade social, desenhada no primeiro modelo das mediações, a ritualidade constitui um olhar sobre como o tempo dos sujeitos, ou o tempo do lugar, se conecta com o tempo da mídia. O interesse está posto nos “usos sociais dos meios”, no modo de consumo midiático em relação à sua forma que constitui o que ele chama de gramáticas da ação: “do olhar, do escutar, do ler – que regulam a interação entre os espaços e tempos da vida cotidiana e os espaços e tempos que conformam os meios” (MARTÍN-BARBERO 2003, p. 19).

Considerando sua posição no mapa proposto, Martín-Barbero interpreta que, se observadas a partir das competências de recepção, as ritualidades permitem o olhar sobre os modos de consumo da mídia. Em nosso caso, a forma de uso da televisão a partir do cotidiano e a importância que ela ocupa em determinados lugares e não em outros. Segundo o autor, a ritualidade, na abordagem tradicional sociológica ou antropológica é revestida de uma temporalidade arcaica com pouco espaço para a interculturalidade. Não se trata, no mapa, de hermetizar as ritualidades fabricadas no contato com a mídia, mas considerar como isso ocorre na “contemporaneidade urbana” em diálogo e conflito.

Sobre a ritualidade, uma questão colocada por Ronsini é a recorrência de os estudos de recepção enfatizarem a autonomia do receptor para sua relação com os meios. A ritualidade, portanto, sem a devida vigilância, seria um espaço de celebração da “criatividade das 

53 Não há, no entanto, referência direta de Martín-Barbero à essa noção de sociabilidade conforme compreendida

audiências em interagir com os produtos midiáticos em circulação” (2012, p. 91). No entanto, no modo de ver da pesquisadora, essa perspectiva rejeita as preocupações iniciais dos fundadores dos estudos culturais em compreender como se articulam as relações hegemônicas e, principalmente, não considera o vínculo entre uma possível “resistência” perante aos discursos midiáticos e a “assimilação de valores e visões de mundo contraditórios que, por isso mesmo podem se tornar efetivos” (2012, p. 91). Na proposta de Martín-Barbero está expressa essa ponderação entre o formato industrial e a competência de recepção. A ritualidade, por sua vez, produz-se na tensão entre os dois: não é resultante absoluta da “postura ativa” dos atores sociais e de suas matrizes culturais e nem da relação de poder exercida pelos formatos industriais em sua assimilação plena.