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O cultivo do fumo e a mídia na sociabilidade

5. A TELEVISÃO NA SOCIABILIDADE DOS PEQUENOS

5.2 A televisão na sociabilidade dos pequenos estabelecimentos comerciais

5.2.6 O cultivo do fumo e a mídia na sociabilidade

No contexto do Bar Liberdade, boa parte dos frequentadores entrevistados trabalha no cultivo do fumo. Em dois casos de informantes chamou a atenção o fato desta cultura ser colocada como uma condição de existência da zona rural de Pelotas, com uma percepção clara dos agricultores de que não seria possível viver na Colônia sem esse cultivo. Apesar de, em geral, as culturas serem bastante variadas, o fumo corresponde ao principal produto dos agricultores em vista de seu valor de mercado e, pelo que pudemos perceber, por conta das condições e assessoria prestados pelas empresas fumageiras nas propriedades. É o caso de André, conforme o relato abaixo:

Sou agricultor, trabalho com fumo. Fumo é o mais [produzido]. Mas tem outras coisas menores como milho, feijão, batata, mas o principal é o fumo. Se não tivesse o fumo a Colônia não existiria, é a única produção que sustenta a Colônia (André, frequentador, 48 anos)133.

Na produção de André, o cultivo de alimentos é feito para o consumo da própria família e para venda. No entanto, legumes, frutas e verduras ocupam uma posição sempre residual no plantio em relação ao fumo. A exceção, dos casos entrevistados, são os agricultores que trabalham com a produção de leite que se dedicam diariamente e de forma exclusiva a essa atividade.

Além de André, também na entrevista com Arnaldo surgiu a percepção de que o cultivo do fumo é o principal motivo de sustento e subsistência da zona rural. Na associação com a televisão, para o informante, o fumo é “muito falado”, mas no sentido das campanhas 

antitabagistas veiculadas pela mídia que pretendem diminuir ou dificultar o consumo do tabaco em locais públicos. Esse discurso dos meios é, de alguma maneira, percebido como uma ameaça ao trabalho dos agricultores do fumo:

O tabaco está muito falado né [na televisão], estão querendo terminar. Mas não termina nunca porque aí vão terminar com a Colônia. A única coisa que está dando é o fumo. [...] Não é só para a Colônia, ele dá muita renda para o país. O imposto que ganham para o país é brincadeira. Hoje tu vê a Colônia, lá é tudo carro novo, trator novo, tudo bem lá. E é o tabaco né? (Arnaldo, frequentador, 65 anos).

É possível perceber o plantio do fumo, nesta percepção, como um “mal necessário” para que a produção na Colônia possa compensar de alguma maneira. O cultivo de alimentos ou a produção do leite, quando comparadas ao fumo, são muito desvalorizados: “o leite já não dá para falar, e o resto que tu planta lá, com um real se compra um saco de verdura. Complicado né?”. Esse mal necessário só é percebido desta maneira quando o consumo do tabaco é colocado, no senso comum, como algo de que deve ser eliminado ou reduzido. Na percepção de Arnaldo essa é uma mensagem compartilhada pela mídia: “na TV eles não falam, [o cultivo do] fumo é fora”. Por outro lado, a “firma”, na figura do orientador, representa para ele um canal de acesso à informação. De forma particular, na conversa, Arnaldo mostrou grande interesse na possibilidade de outros meios, no caso os “novos meios” representarem um canal de informação bastante presente:

Hoje em dia tem TV e internet né? Tem certas coisas que a TV influi muito, principalmente nos jovens. [...] Mas também tem Internet, então já não adianta muito. É diferente por causa dos horários e da censura. Tá muito mudado. Acontece que a tecnologia cada vez avança mais e ninguém pode dizer nada. Quando eu me criei era TV à bateria. Não tinha energia elétrica. Era tudo diferente. Agora a mídia está começando a mudar, a tecnologia está avançando muito. Celular, tablet, Internet, hoje em dia tem tudo. [O senhor costuma acessar a Internet?] Não, não tenho lá, é difícil. Minha guria tem, é bom, muito bom. Porque hoje em dia lá fora eu vendo minha produção, meu produto. Eu acesso a firma lá. Está chegando, estão descarregando, eu já sei quanto foi, quanto eu vendi, quanto vale. Tudo é pelo site. Forneço fumo para China, os compradores vêm comprar direto aí. Na nossa produção tem um código de barra. Para ver a procedência do produto (Arnaldo, frequentador, 65 anos).

Cabe observar a distinção que Arnaldo faz entre a televisão e a Internet a partir dos “horários” na contraposição da oferta de conteúdos a qualquer momento e da “censura” no caso da informação na rede telemática, aparentemente, não apresentar filtros. A percepção da tecnologia, para ele, é um fato consumado sob o qual “ninguém pode dizer nada”. Apesar de não ter acesso à internet na Colônia, Arnaldo, em outros momentos, através de sua filha, consegue visualizar os dados da produção que é rastreada, desde a origem, pelas fumageiras.

Há um código eletrônico para permitir não apenas aos compradores, mas também ao produtor, informações sobre a valorização do produto. Ele também nos contou que a produção é analisada pelos compradores que dizem o valor baseado na qualidade diretamente proporcional às condições de plantio: se orgânico o fumo é acrescido no preço em cem por cento. A percepção deste uso da informação está em proximidade com o que a TV representa, ou representava, em termos de conexão, pois, o exemplo do controle da produção surgiu no diálogo quando se falava na tecnologia: “hoje em dia tem TV e internet”.

É possível interpretar estes relatos a partir do que a proposta das mediações de Martín- Barbero oferece como “possibilidade de enfrentamento” dos sujeitos em relação aos meios. Essa possibilidade, como explica José Luis Braga, surge na pertinência da teoria das mediações que “é relevante, não apenas porque põe em cena o receptor integrado em seus ambientes – mas também porque começa a fazer perceber os processos midiatizados” (BRAGA, 2012, p. 33). Ainda, para o autor:

Como os meios, antes dessa virada, apareciam de modo preocupante como produtores de efeitos não controláveis pela sociedade, as mediações se põem, praxiologicamente, como espaço de ação e de resistência. Não se trata apenas de conhecimento do mundo (nos aspectos e objetos em foco), do viés com que se percebe e pelos quais nos relacionamos com os meios. Mas também – e talvez sobretudo – da possibilidade de enfrentamento, da reflexão sobre a qualidade das condições para esse enfrentamento, como uma interação de natureza político-social (BRAGA, 2012, p. 33).

Essa possibilidade de enfrentamento se traduz não apenas na recepção, mas também quando os atores sociais assumem certo “protagonismo” na relação com os meios. Não é um domínio apenas dos sujeitos, tampouco um controle hermético, mas sim das possibilidades comunicativas de ambos postas em diálogo. Na linha da reflexão feita por Braga do caso midiático, o “campo”, na acepção de Pierre Bourdieu, perde a “capacidade de refração” ou vê suas estruturas de legitimação bastante diminuídas frente a possibilidade dos próprios sujeitos de assumirem certo protagonismo na comunicação.

No caso do fumo, como tema das conversas e entrevistas com os informantes, interpretamos um exemplo desse “enfrentamento” de forma mais evidente no posicionamento do cultivo como subsistência para a zona rural, no que pese o discurso midiático contra o consumo do tabaco. Principalmente, podemos ver isto no caso das disposições de Arnaldo para uma leitura da TV e da internet como decorrência de um desenvolvimento tecnológico que, em um novo cenário, permite que a produção seja monitorada por ele com muita facilidade. A informação do cultivo, que, no cenário da televisão está “fora”, chega por meio

da orientação da empresa produtora de tabaco, na figura do orientador, e pode ser acompanhada pela internet. De alguma maneira, a possibilidade de “enfrentamento” se coloca nesse protagonismo em relação ao uso social de uma ou de outra tecnologia. Cabe ponderar, no entanto, que a possibilidade de enfrentar não garante uma autonomia plena dos sujeitos em relação aos meios, mas cria uma afetação recíproca entre eles.

Na visão deste recorte do empírico à guisa das disposições definidoras da classe, essa possibilidade de enfrentamento não se constrói apenas “culturalmente” mas também integra, de alguma maneira, o pré-reflexivo que é atribuído pelas condições sociais. As competências culturais para uso da tecnologia, no caso de Arnaldo a disposição para perceber um uso da internet atrelado à sua produção, é decorrente de determinada estrutura que permite certo grau de “protagonismo” em relação aos meios. Esse protagonismo, ou possibilidades de enfrentamento, portanto podem ser lidos de forma relativa à estrutura social, na “qualidade das condições desse enfrentamento”, como observa Braga.