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A televisão e a percepção do socialmente decisivo

5. A TELEVISÃO NA SOCIABILIDADE DOS PEQUENOS

5.2 A televisão na sociabilidade dos pequenos estabelecimentos comerciais

5.2.2 A televisão e a percepção do socialmente decisivo

Na linha do recorte sobre temas recorrentes, conforme observado em campo, é possível também destacar o papel da televisão na sociabilidade quando entram em foco temas relacionados ao “socialmente decisivo”. Consideramos o uso da palavra “decisivo” para designar situações onde se apresentam temas aos sujeitos que podem ser considerados preponderantes socialmente, de forma prática a potência do noticiário televisivo sobre o acesso a bens públicos, como saúde e educação. O uso da palavra tem um fundo barberiano, em determinado momento em que o autor propõe a educação como um dos temas para pensar a mudança de século: “os filhos das maiorias pobres” para quem “a escola é o espaço decisivo de acesso às novas formas de conhecimento” (2004, p. 353). Pelo que foi percebido em campo, também a saúde pública pode ser percebida como decisiva para os atores sociais. São duas passagens que se encaixam neste caso.

A primeira delas ocorreu quando, no dia 9 de janeiro de 2014, o Jornal do Almoço divulgou uma matéria jornalística que denunciava um descarte ilegal de material hospitalar em um container de lixo orgânico no Centro da cidade119. A reportagem, inserida no bloco estadual do telejornal, gerou grande repercussão no Restaurante Q’Sabor pelo fato de o material descartado estar ainda lacrado, sem uso e, também, por conta do descarte ter sido feito há uma quadra da sede da Secretaria Municipal de Saúde do município. No momento da exibição da matéria todos silenciaram e, assim como em outros casos com maior repercussão, comentaram o fato. Nesta situação, nas conversas, ouvimos ao menos dois relatos de frequentadores que dependiam da rede de postos de saúde e que já tinham registrado situações de falta dos materiais descartados quando precisaram.



119 A reportagem está disponível online e pode ser vista em http://goo.gl/3MZRKU. Acesso em 2 de agosto de

Figura 16 - Imagem da reportagem do Jornal do Almoço sobre o descarte ilegal de materiais hospitalares

Fonte: Website Jornal do Almoço120

Na Figura 16 é possível observar a primeira imagem que abre a reportagem jornalística com os materiais ao chão próximos ao container de lixo orgânico e em proximidade com o prédio da Secretaria. Embora não seja objetivo da pesquisa incluir uma análise sobre o texto midiático, cabe a observação de que constam, na reportagem, diversas opiniões da população sobre o descarte de materiais que mostravam indignação a partir do ocorrido. Não é possível mensurar até que ponto houve influência do próprio texto, com o uso de depoimentos na matéria, sobre a percepção do fato. O que podemos interpretar foi que esta reportagem teve uma repercussão bastante grande entre os frequentadores que, cabe destacar, manifestaram uma percepção sobre o “socialmente decisivo” a partir de sua condição de usuários dos serviços públicos.

O segundo momento a ser destacado constitui um debate, também veiculado pelo Jornal do Almoço, sobre a greve dos professores estaduais na rede pública de educação básica121 veiculado dia 18 de março de 2014. Neste dia, durante o almoço, duas funcionárias do Restaurante acompanharam atentamente o tema que ocupou cerca de 18 minutos do tempo do telejornal. Uma das funcionárias manifestou que estava muito preocupada com a situação da escola de seu filho, que era estadual, já que o menino, com cerca de doze anos de idade, estava com diversos problemas de aprendizado e não tinha professores para ministrar aulas em algumas disciplinas do currículo. A percepção se deu também a partir do “socialmente decisivo” na medida em que a mãe revelou ao pesquisador que “não conseguiu” estudar na vida e sabia que era necessário que o filho concluísse o ensino básico.



120 Disponível em http://goo.gl/3MZRKU. Acesso em 2 de agosto de 2014.

Os dois exemplos reunidos podem ser interpretados como uma disposição das classes populares na relação “decisiva” que os serviços públicos desempenham em suas vidas em diferença a uma possível opinião sugerida, de forma mais evidente no exemplo do descarte dos materiais, com relação ao descaso com os interesses públicos. Para os sujeitos, em ambas as situações, em suas formas de ver, importou mais o que as deficiências dos serviços públicos representam enquanto cerceamento de possibilidades, já que utilizam e dependem de acesso público à saúde e educação, do que propriamente a sugestão de uma interpretação característica da abordagem midiática sobre o “descaso” com o serviço público, como uma leitura preferencial das classes médias. Em ambas as abordagens, cabe a observação de que, dentro da retórica midiática da denúncia, houve um modo de leitura sugerido de modo a deflagrar as fraturas do serviço público à população.

Dentro do modelo de Martín-Barbero, é possível observar essa questão na mediação da institucionalidade que se produz na articulação entre as matrizes culturais, que ativam o

habitus, e as lógicas de produção. Conforme o autor, quando vista a partir da

institucionalidade, “a comunicação se converte em questão de meios, isto é, de produção de discursos públicos cuja hegemonia encontra-se hoje paradoxalmente do lado dos interesses privados” (2003, p. 18). A percepção dos atores sociais quando ocorrida sob determinadas condições, no componente das matrizes culturais e de suas disposições para julgamento, de alguma maneira, encontra-se em contraponto com as lógicas de produção: mais do que o “descaso” como leitura do texto midiático sugere, a sociabilidade gerada pelos temas conduz a interpretação da efetiva diminuição de oportunidades de acesso a serviços públicos ou do “socialmente decisivo”.

Não distante, sobre o caso particular da educação em seu atravessamento com a estrutura social, no segundo exemplo em campo, cabe relacionar com o que Jessé Souza chama de “má-fé institucional”, pois a educação, de forma geral, possui uma “pretensa neutralidade da instituição escolar que, ao postular a igualdade das possibilidades escolares, coloca o sucesso escolar como dependente exclusivamente do esforço pessoal” (2010, p. 74). No caso de nossa informante que “não conseguiu” estudar e que o filho tem dificuldades, parece ser presente, de alguma maneira, essa neutralidade. De forma que a diferença na percepção do “descaso” das autoridades, e sobre o que a ausência ou precariedade do serviço público representa na vida dos sujeitos, reside no quanto a educação, ou a saúde, pode representar de “decisivo” em termos de acesso. Essa disposição para julgamento pode ser lida por meio de um atravessamento de classe.