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O objeto da pesquisa, como observado na introdução do trabalho, teve sua origem a partir do cotidiano do pesquisador. O ponto de vista adotado partiu de um “empirismo grosseiro” que passou a ser confrontado com a possibilidade de sua construção científica “ao longo de um processo de objetivação, que é a progressão da formação, da estruturação e do recorte dos fatos até o procedimento de coleta de dados” (LOPES, 2005, p. 122). A existência do objeto, em estado bruto, foi oriunda da percepção de que alguns lugares, sobretudo estabelecimentos comerciais como bares e restaurantes, ofereciam-se em franca diferença simbólica em relação a outros.

Os comércios, com ambientes planejados e atendimento definido estrategicamente, contrastavam com locais modestos, móveis e objetos de diferentes épocas e a prática de um atendimento não protocolar. Ainda, neste objeto em estado bruto, incidia também uma percepção do social, não tanto pela forma de articulação interna dos estabelecimentos, mas, sobretudo, pelas maneiras de consumo presentes neles. A diferença de um público em relação a outro ficava evidente tanto no que os clientes exigiam quanto no que os proprietários ofereceriam, em cada caso. Nossa percepção “grosseira” partiu justamente de identificar essas diferenças na vida cotidiana, em preferir frequentar alguns em detrimento de outros e, ao mesmo tempo, perceber determinadas diferenças de uso da televisão.

De forma que as questões da pesquisa foram delimitadas sobre lugares que se enquadram na integração efetiva da televisão, sobretudo a de tipo aberto, com as rotinas diárias. Em proximidade com a ideia de “vínculo social”, a partir de Dominique Wolton (1994), o contexto deste uso da televisão faz com que o coletivo prevaleça sobre o domínio individual. Os interesses dos sujeitos, nesta relação integradora, são, de alguma maneira, compartilhados, na medida em que “os gostos dos ‘outros’ são possivelmente tão legítimos quanto os nossos” (1994, p. 155). Assim, como também coloca o autor, a televisão torna-se “o grande relógio da nossa vida quotidiana, aquele que marca o ritmo imutável dos dias que passam” (1994, p. 344). De maneira que interessou, como visto, a participação da televisão na sociabilidade dos pequenos comércios estudados.

No presente momento, ao final do percurso de investigação, cabe observar as correspondências e os limites entre as questões propostas e o desenvolvimento do trabalho, tendo em vista que a pesquisa empírica resulta, também, em um confrontamento do problema com o que encontramos no próprio campo, como observa Ronsini, “sujar as mãos na cozinha empírica” (2010, p. 1). De forma que foram feitos apontamentos do que foi descrito e

interpretado à luz das questões. A seguir, à guisa de conclusão, são relatadas estas percepções134 que assumem um papel de fornecer uma possível contribuição para novas investigações.

A primeira delas refere-se a própria noção de sociabilidade que, tal como utilizada na acepção de Georg Simmel (1983), ao longo do trabalho, confrontou-se de alguma maneira com o empírico. Isso ocorreu no momento em que a sociabilidade, em cruzamento com a televisão dos lugares, tinha como campo de gravidade assuntos que poderiam ser considerados como não pertencentes a essa forma de sociação por sua objetividade ou, de igual maneira, subjetividade demasiada. No conjunto de casos interpretados, apenas o futebol identificou-se com a proposta da ausência dessa objetividade relativa, no que pese sua dimensão social enquanto aspiração, no caso de um informante que entrevistamos. O choque com a forma original do conceito se dá em termos de que o juízo sobre a objetividade e a subjetividade, como limite enquanto tema de conversa, é atravessado por disposições da classe social nos comércios estudados. Isso não significa dizer que a sociabilidade identificada com a classe social sempre é permeada pela objetividade. A prática da brincadeira e da “conversa fiada” é recorrente e cotidiana, como foi observada em campo em algumas situações. No entanto, no momento de cruzamento com a televisão, nos modos de entender e socializar os assuntos vistos nos telejornais, por exemplo, interpretamos de forma mais evidente a inclusão de temas objetivos e pessoais que pedem uma compreensão da sociabilidade em sua especificidade social.

Não distante da sociabilidade e da televisão, entra a percepção de que essa forma social considera não apenas as disposições dos próprios sujeitos, mas também um vínculo com o lugar que pode sustentar diferentes níveis de interação entre os atores sociais. No atravessamento da sociabilidade com a televisão, como principal interesse da pesquisa, o que se observou em campo foi a ocorrência de algumas situações de relação com a televisão que permitiram a integração ampla entre os três papéis sociais observados nos lugares, os proprietários, os funcionários e os frequentadores. No entanto, há de se apontar que a sociabilidade envolvendo a televisão, em maior número, ocorreu de forma mais fragmentada: em pequenas interações e conversas que ocorrem nas próprias mesas ou entre um sujeito e outro. A televisão se insere nesta sociabilidade de uma maneira igualmente complexa. Em alguns momentos os sujeitos tomam contato com as mensagens televisivas e dialogam, de imediato, sobre os temas. Em outros, a mídia está presente como uma “memória” de outros 

134 Cabe observar que, em boa parte, estas percepções tiveram a contribuição do diálogo produtivo com a

conteúdos vistos anteriormente, mas que se inserem diretamente na sociabilidade. Esta segunda situação foi observada pelo pesquisador em diversos momentos e apareceu, de forma evidente, nos relatos das entrevistas com os informantes.

Uma outra percepção dá conta do percurso entre a eleição de dois lugares, de alguma maneira, identificados com as classes populares, e o desenvolvimento efetivo da investigação nestes dois locais. O que se revelou foi um cenário de muitas diferenças entre os dois pequenos estabelecimentos nos modos de sociabilidade e de integração das conversas cotidianas com a mídia. No Restaurante Q’Sabor, houve uma prática social mais franca e aberta entre os atores sociais. Já no Bar Liberdade, as interações foram mais reservadas à rede de relações familiares entre os frequentadores. Como observa Ronsini, a tematização das classes sociais não ocorre na compreensão de culturas isoladas, mas a partir de “cruzamentos e sobreposições entre elas em um mesmo campo de luta” (2012, p. 31). O que se pode apontar em relação à isso é o fato de podermos identificar um habitus comum que os identifica em proximidade com as classes populares. No entanto, este habitus é atravessado por diversas “sobreposições” que são oriundas da vida social dos sujeitos. A relativa proximidade entre os frequentadores do Q’Sabor, em boa parte, colegas de trabalho, põe as práticas de sociabilidade em contraste com o que encontramos no Bar Liberdade, onde os trabalhadores da zona rural, em geral, mantêm os diálogos quase exclusivamente entre familiares ou conhecidos de muitos anos, como o caso do proprietário Lopes.

Em proximidade com este apontamento, está a dificuldade observada na pesquisa de Édison Gastaldo: “fazer comparações entre situações de campo distintas, uma vez que cada situação é única em suas especificidades” (2006, p. 6). Nessa perspectiva, mesmo com um interesse comum a partir do habitus das classes populares, cada estabelecimento também revelou diferentes atravessamentos que incidiram sobre a sociabilidade e, principalmente, sobre a relação desta com a televisão. De forma prática, enquanto potência de sociabilidades coletivas, a televisão revelou-se de forma mais franca no contexto do Restaurante Q’Sabor.

Outro aspecto a relatar são algumas contradições, observadas em campo, das práticas sociais dos sujeitos no entorno da mídia. A principal delas refere-se ao fato de que, como referido no capítulo quatro, a maioria dos atores sociais expressa que “não tem tempo para ver televisão” nos estabelecimentos. Esta percepção é, no entanto, imbricada com uma prática social efetiva de constante contato com a mídia, ainda que isso ocorra, invariavelmente, de forma fragmentada. Os sujeitos, ao mesmo tempo que dizem não ver TV, manifestam apreço por conteúdos que passam nos horários de trabalho ou, como no caso do Bar Liberdade, atribuem à televisão uma função pragmática de “ocupar o tempo” enquanto esperam o ônibus.

Com base no empírico, esse apontamento sugere duas interpretações. A primeira delas é a de que a experiência de assistir TV nos estabelecimentos torna-se oposta a outras, por exemplo, relacionadas com o ambiente familiar, justamente porque ocorre de forma fragmentada, como um dos momentos na complexidade da vida cotidiana que, por sua vez, envolve outros momentos de consumo midiático. A segunda, relacionada com proprietários e funcionários, é a naturalização do aparelho de televisão em meio à rotina do estabelecimento. Como exemplo mais evidente, há o caso do Bar Liberdade. Há 40 anos, o estabelecimento utiliza o televisor geralmente em um mesmo canal e o aparelho fica ligado a todo o momento. Apesar de ser identificado por uma função operacional, “como chamarisco” para os clientes, a televisão integra-se “naturalmente” as rotinas de trabalho do lugar.

Dentro disso, no cenário de um consumo midiático, que nem sempre é percebido objetivamente pelos atores sociais, é possível apontar que o papel da televisão como mediadora da sociabilidade apresenta-se de forma tênue nas situações e lugares observados. O limite entre conversar cotidianamente com outros sujeitos e, de outra forma, integrar a televisão na interação social, pode apresentar muitas variações em torno de uma situação observada em campo. Essa oscilação é, em parte, fruto da experiência fornecida pelos próprios lugares e constituiu um desafio à pesquisa no sentido da dificuldade da percepção objetiva entre ambos, sobretudo considerando a observação em campo. De alguma maneira, este apontamento permite interpretar, nos casos observados, a incidência direta das práticas sociais que são oriundas do próprio lugar sobre a mídia. Ao mesmo tempo, este lugar está situado na experiência cotidiana dos indivíduos em meio a diversas outras situações que condicionam, diretamente, sua interação com outros atores sociais e o quanto pode ser possível integrar a televisão nestas interações.

De forma que é possível, também, apontar que a televisão, quando vista nos pequenos estabelecimentos, constitui uma das partes da vida social dos sujeitos e insere-se nesta complexidade. A conversa cotidiana que ocorre nos estabelecimentos pode ser sugerida pelos conteúdos midiáticos em diversas situações, mas não há garantias da ocorrência dessa influência em todos os momentos e, muito menos, da possibilidade de uma incidência direta sobre os assuntos. Em alguns casos observados, como o caso do informante Alvacir do Restaurante Q’Sabor, um conteúdo midiático pode servir como tema indireto para o relato de uma experiência da ordem do “puramente pessoal”, ou seja, sem correspondência entre a temática da mídia e o assunto da conversa. De forma que a televisão não pode ser compreendida como um valor em si mesmo, mas a partir da costura com uma experiência cotidiana cercada de outros elementos, midiáticos ou não. Neste sentido, é possível também