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As equipes de representação dos pequenos estabelecimentos

4. OS LUGARES, A TELEVISÃO E A SOCIABILIDADE

4.4 A sociabilidade nos pequenos estabelecimentos comerciais

4.4.1 As equipes de representação dos pequenos estabelecimentos

Como observado na introdução, a noção de “equipes de representação” insere-se nesta pesquisa de forma a permitir visualizar os três papéis sociais que identificamos: proprietários,

funcionários e frequentadores. O trabalho presente em A Representação do Eu na Vida Cotidiana, pretende um estudo da vida social quando ocorre a partir de limites físicos, ou situações dispositivas que implicam uma relação de poder e necessidades objetivas. Estas necessidades formam o “todo” de uma determinada situação e passam a regular a maneira com que os atores sociais se relacionam. De forma que Goffman, em sua obra, propõe já no início “um quadro de referência aplicável a qualquer estabelecimento social concreto, seja ele doméstico, industrial ou comercial” (1985, p. 9).

A ideia de uma equipe de representação está inserida à medida que serve para descrever um grupo de indivíduos que cooperem entre si e necessariamente interajam em uma determinada situação objetiva. Uma das premissas do trabalho de Goffman é a de que a representação serve para “expressar características da tarefa a ser representada” (1985, p. 76) de forma que se assume a ideia de que os sujeitos desempenham “papéis sociais”, sem que este desempenho diretamente esteja relacionado a eles próprios. O ator social desempenha seu papel “não tanto porque lhe permite apresentar-se como gostaria de aparecer, mas porque sua aparência e maneiras podem contribuir para uma encenação de maior alcance” (1985, p. 76).

De maneira que fazemos uso deste aporte teórico para a presente observação da sociabilidade nos lugares estudados na medida em que boa parte das relações sociais que ocorrem nos estabelecimentos são atravessadas por uma necessidade objetiva de trabalho. Cada lugar depende diretamente da cooperação dos sujeitos em suas representações para que se tenha um “todo” simbólico que é fundamental para o contexto comercial de prestação de serviços na área de alimentação. O que observamos na investigação é que, para além dos sujeitos envolvidos em relações de trabalho, também os frequentadores podem ser inclusos na equipe de representação, pois precisam desempenhar papéis sociais em negociação com o que é solicitado, simbolicamente, pelos comércios.

Em outras palavras, o proprietário ao organizar seu negócio, além de apresentar suas disposições próprias, de alguma maneira, exige alguns pressupostos simbólicos de seus funcionários e, também, dos frequentadores. Esta relação está implicada desde o nível mais elementar de interação de clientes com funcionários e proprietários na esfera do “atendimento” e sua importância para o estabelecimento comercial. De maneira que as formas de atender, tidas como a relação social obrigatória dos lugares, estão relacionadas com o

habitus, no sentido de constituir disposições para julgamento de ambas as partes,

necessariamente implicando a alteridade entre o que o comércio tem a oferecer e o que o cliente espera em relação ao serviço.

Descrevemos as equipes de representação dos lugares a partir da observação das relações “objetivas” e elementares entre proprietários, funcionários e frequentadores. Estas relações estão presentes no cotidiano e não constituem diretamente uma forma de sociabilidade tal qual descrita por Simmel. No entanto, para avançarmos neste sentido, observamos que um possível “pano de fundo objetivo” fornece elementos indiciais para pensar a sociabilidade: nem todos os frequentadores participam das formas de sociabilidade presentes nos lugares, mas as relações sociais entre frequentadores e proprietários ou funcionários iniciam a partir deste nível elementar de interação fornecido pelo caráter objetivo da equipe de representação. De modo que o foco aqui são estes dois polos específicos: o conjunto de proprietários e funcionários e o papel social dos frequentadores nesta situação.

No Restaurante Q’Sabor a equipe de trabalhadores é bastante numerosa: são sete funcionários e a proprietária. Há uma maioria de frequentadores assíduos e pouca circulação de clientes que vêm pela primeira vez ao estabelecimento. O que é representativo no modo operacional da equipe é que, como já observado, não é necessário que os frequentadores assíduos peçam o almoço. O simples ato de sentar em uma das cadeiras já indica o pedido, sem a necessidade de formalizar. Em geral, um novo frequentador toma a iniciativa e inicia o contato para perguntar sobre o serviço. Apesar de haver basicamente o prato feito há a opção de escolha entre meio prato e prato completo que precisa ser explicada aos clientes. A proprietária, da cozinha, controla a necessidade de pratos sem qualquer anotação, apenas observando o movimento no salão. As tarefas de atendimento são concentradas em três funcionárias: Cristiane, Adriana e Edna. Como a totalidade dos trabalhadores observados nesta investigação, nenhuma delas desempenha apenas uma única tarefa, mas é possível ver que o contato com o público é uma de suas principais ocupações. Geralmente é Adriana quem leva os pratos até os frequentadores, nos horários de maior movimento ela é auxiliada por Edna. Cristiane também realiza esta tarefa, mas, entre as três, é praticamente a única que cumpre a função operacional de cobrança.

A partir da experiência de frequentador é possível observar que as relações objetivas da rotina de trabalho entre a equipe e os frequentadores são bastante sucintas. Há pouca necessidade de diálogo operacional no cotidiano do Restaurante para o serviço aos clientes como uma disposição partilhada por todos os funcionários que, mesmo com relações familiares entre eles, não costumam conversar sobre assuntos “de casa” no salão e procuram manter algum silêncio enquanto trabalham. A ausência de protocolos no atendimento ou registros do consumo em comandas são situações que em princípio constituem diferença em relação a experiência de outros estabelecimentos comerciais.

Apesar de todos os funcionários e a proprietária costumarem dialogar com os frequentadores assíduos de alguma maneira, a abertura ao diálogo não ocorre na dinâmica operacional com todos os frequentadores. Novos frequentadores, por exemplo, não costumam ter muita possibilidade de conversa. Nosso relato de experiência neste aspecto é que esse diálogo ocorre apenas com a frequência mais assídua, com a necessidade de “sedimentar” uma relação, como ocorreu com o pesquisador. Essa disposição não decorreu de uma não abetura generalizada da proprietária e dos funcionários, mas de uma compreensão específica da relação operacional com os frequentadores de que não é necessário o diálogo para além do que representa o trabalho. Cabe observar que esta prática coloca-se, de forma pré-reflexiva, em profunda diferença a um “novo espírito empresarial” observado por Jessé Souza (2010, p. 66) como decorrente de uma possibilidade de inclusão das subjetividades como parte das estratégias comerciais, a exemplo de seu estudo empírico com o caso dos operadores de telemarketing de “ter atitude no atendimento” como um mecanismo de transferência de responsabilidades ou, ao mesmo tempo, a obediência a protocolos rígidos que sobredeterminam as relações sociais de trabalho.

Pode-se, então, compreender que o atendimento do Restaurante Q’Sabor revelou-se de uma maneira sutil, estritamente operacional, até que o frequentador passasse a ser um “conhecido da casa”, o que ocorreu pela assiduidade na frequência ao estabelecimento. Essa passagem indica a possibilidade da criação de laços sociais entre os trabalhadores do Restaurante e os frequentadores, mas não é um sinônimo de inclusão nas formas de sociabilidade. No período do trabalho de campo, observamos diversos frequentadores assíduos que dialogavam diariamente com os funcionários mas não participavam das sociabilidades que ocorriam no Restaurante. Este diálogo mais específico, de alguma maneira, permite algumas concessões na dinâmica de trabalho do estabelecimento. Jairo, um dos frequentadores entrevistados, tem problemas cardíacos e não pode comer determinados alimentos com carboidratos e gorduras. As funcionárias do Restaurante já o conhecem e, sabendo desta limitação, alteram as opções do prato feito ou servem alguma opção em separado: “para mim, que tenho problema de coração, colesterol, elas servem em um pratinho separado. Já não botam massa, quando é massa e arroz. Colocam mais a comida que eu vou comer mesmo” (Jairo, frequentador, 57 anos). Além deste caso, é comum, também a proprietária em diversos momentos “reforçar” a comida exclusivamente para frequentadores assíduos que chegam ao final do horário de movimento.

O Bar Liberdade conta com três pessoas para atendimento aos clientes. Além do proprietário Lopes, a esposa Vera e mais um funcionário cumprem esta função. Diferente do

que observamos no Restaurante Q’Sabor, é necessário que os frequentadores façam o pedido que geralmente é anotado pelo atendente nas mesas. No almoço, no entanto, a maioria dos frequentadores utiliza o buffet e, desta maneira, realiza os pedidos de bebida ou acompanhamento no momento de pesagem dos pratos. Durante a tarde e aos sábados ao meio- dia, todos os pedidos são feitos diretamente nas mesas. Como, além do almoço, existe o período da tarde com grande circulação de frequentadores, o proprietário e os funcionários têm como dinâmica um atendimento ágil aos clientes que ocupam as mesas. Esta agilidade parece ser fruto de um modo de apropriação específico do espaço urbano onde o Bar Liberdade se encontra: uma Rua com grande circulação de pessoas e com uma concentração de estabelecimentos que prestam o mesmo serviço. O cliente que entra no Bar precisa ter espaço para permanecer e ser atendido o mais rápido possível por conta de circunstâncias de horário de trabalho. Embora a maioria dos frequentadores seja da zona rural e, com isso, tenha uma circunstância específica de tempo da ida ao Centro da cidade, o Bar também atende frequentadores eventuais que param para almoçar ou fazer um lanche à tarde.

No Liberdade, embora haja uma regularidade na sequência do atendimento, também não há um protocolo rígido e a comunicação operacional com os frequentadores é bastante sucinta. Os clientes, em geral, fazem o pedido e são atendidos rapidamente. Uma semelhança com relação ao Restaurante Q’Sabor é que parece haver uma adaptação no atendimento que manifesta preferência pelos “fregueses” que já conhecem o estabelecimento, em alguns casos há décadas, e fazem uso periódico dos serviços. Esta adaptação do atendimento não é deflagrada aos novos frequentadores, mas é do conhecimento dos frequentadores assíduos. De maneira que alguns serviços e possibilidades muito importantes para o Bar, dessa maneira, estão presentes mas precisam ser previamente conhecidos, revelam-se com a observação das dinâmicas do lugar. É possível citar dois exemplos destas adaptações. O primeiro é o fato de que, ao meio-dia durante a semana, os clientes dispõem de frutas para a sobremesa que ficam acima do aparelho de buffet. A disposição das frutas é feita com uma fruteira doméstica, de maneira semelhante ao universo da casa. O segundo é a possibilidade oferecida aos frequentadores da zona rural da guarda de bagagens. Ambos os serviços constituem a rotina operacional de atendimento do Bar, mas foram percebidos através da presença regular, não estão claramente evidentes aos frequentadores eventuais.

Em relação a equipe de representação de ambos os lugares, é possível observar que existe um limiar bastante claro entre frequentadores eventuais e assíduos. O atendimento é preferencialmente adaptado em relação aos “fregueses” que já conhecem as rotinas e os horários de ambos os estabelecimentos. Há também um esforço dos proprietários e

funcionários em agradar esta freguesia já inclusa em um nível de maior fidelidade que permite a formação de laços sociais no plano operacional. Dessa maneira, para que o cliente conheça todas as possibilidades do estabelecimento é necessário que haja um nível mais próximo de relação que ainda não representa uma sociabilidade. Sobre isso, o fato de o pesquisador ser reconhecido, por meio da assiduidade nos lugares, faz com que o atendimento ocorra de uma maneira mais propícia ao diálogo. Recorrendo a Goffman, é possível observar o surgimento de uma “familiaridade” entre os trabalhadores dos lugares e os frequentadores que é diretamente proporcional à frequência da representação em equipe que se define por uma “intimidade sem calor” ou um “relacionamento formal, automaticamente ampliado e recebido, tão logo o indivíduo tome lugar na equipe” (1985, p. 81). Assim, é possível compreender que os frequentadores assíduos não são compreendidos de forma “estratégica” nestes lugares, mas como parte das equipes de representação compostas por funcionários e pelos proprietários. Trata-se de uma “intimidade sem calor” por conta de seu caráter operacional e objetivo.

A experiência de frequentar pela primeira vez traz consigo um estranhamento, de alguma maneira produtivo, com relação aos modos de fazer dos lugares que não significa um mau atendimento, mas a necessidade solicitada aos frequentadores de uma espécie de “descoberta” dos lugares. Diferente de estabelecimentos que sejam constituídos de uma “programação da subjetividade” no atendimento, com protocolos de interação bastante rígidos, ou que os funcionários disponham de treinamento para o relacionamento com os clientes para forjar uma “pseudo-gemeinschaft”, para citar Goffman (1985), as representações da equipe com os clientes ocorrem com certo ineditismo. Desta maneira, é possível observar que este “descobrimento” dos lugares passa obrigatoriamente pelo diálogo de funcionários e proprietários com os frequentadores e, dentre outras coisas, reforça o papel dos estabelecimentos como lugares.

A reflexão sobre o “bom atendimento” presente na fala e nas conversas com as equipes não parece ser fruto do pensamento estratégico e, portanto, exterior, mas parte da reflexão dos próprios sujeitos a respeito da forma que julgam ser justa com os frequentadores. Esta disposição para julgamento, como parte do habitus, é oriunda de suas experiências de trabalho e também de consumo, como surgiu no relato de Adriana do Restaurante Q’Sabor: “tem restaurantes que às vezes eu frequento para jantar ou fazer um lanche que são horríveis da gente chegar, porque o atendimento é péssimo. As gurias não têm paciência. Tem uns que tratam a gente tão bem, mas tem outros que tratam com estupidez”.