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3. ENQUADRAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.5 Técnicas de pesquisa

Nesta parte, descrevemos as técnicas de pesquisa utilizadas para a presente investigação na compreensão de um “lugar de objetivação” (LOPES, 2005) das opções teóricas vistas acima, dentro da instância metódica. No intuito de dar conta do objeto e sua delimitação, a definição “operacional” da investigação foi em grande parte resultado das escolhas empíricas e teóricas. Cabe considerá-las em diálogo com este momento de definição das técnicas no sentido de observar em que medida contribuem para esta escolha.

As noções teóricas revisadas, sociabilidade, classe social e mediações, estabelecem um “quadro de análise” (LOPES, 2005, p. 127) onde também é forte a presença do empírico em suas formulações. Georg Simmel, ao exercitar uma sociologia “compreensiva” põe em foco, no início do século XX, relações sociais distintas por sua independência formal que podem ser observadas por meio do diálogo em uma espécie de “jogo” social. Pierre Bourdieu e os demais autores que fazem uso de sua teoria observam a classe social dentro da reprodução que, ao contrário do economicismo, é apreensível pelo modos de uso dos objetos, formas de relação social e os próprios discursos que deflagram determinadas “disposições práticas” para o julgamento nas situações da vida. Podemos observar que tanto o trabalho emblemático de Bourdieu (2011) quanto os exemplos brasileiros de Jessé Souza (2009; 2010), assim como o de Veneza Ronsini (2012), tematizam a classe com a inclusão do empírico: o contato direto com os sujeitos, a observação de seus modos de vida e a inclusão de suas falas como elemento de pesquisa. Jesús Martín-Barbero (2003), na medida do que foi incluído nesta revisão, visualiza as três primeiras mediações como observáveis por meio da cotidianidade, assim como na proposição do novo mapa, especialmente com as mediações de ritualidade e socialidade.

As pesquisas desenvolvidas em proximidade, vistas acima, além do elemento empírico evidente, possuem em comum a combinação de técnicas: ora a utilização de dados quantitativos e abordagens qualitativas (REPOLL, 2010; FÍGARO, 2000), ora as abordagens qualitativas com fases complementares entre a observação e a entrevistas com informantes (BRITTOS, 1996; GASTALDO, 2006). Como já delineado inicialmente, a presente pesquisa foi desenvolvida de forma qualitativa com os lugares descritos, Restaurante Q’Sabor e Bar Liberdade, em um procedimento combinado entre (1) observar a sociabilidade mediada pela televisão e participar da sociabilidade enquanto frequentador e (2) realizar entrevistas semi- estruturadas com frequentadores, funcionários e proprietários dos estabelecimentos.

O primeiro procedimento, de dupla via entre participar e observar, evoca em parte uma reflexão sobre a técnica da “observação participante” que é oriunda do campo da antropologia, mais especificamente no momento de uma determinada prática atenta ao desenvolvimento da cultura, como situa Denis Cuche, “em seu estado presente” (1999, p. 71).

Seu principal precursor é Bronislaw Malinowski, antropólogo polonês que cunhou a expressão (CUCHE, 1999, p. 74). Para Malinowski, não haveria outra forma de pesquisar a cultura senão pela combinação, nem sempre harmoniosa, entre a atividade de observar o campo cientificamente e participar do cotidiano do grupo estudado, essa última referida diretamente à exigência de um modo de alteridade específico do pesquisador. A pretensa

desta dinâmica estaria em afastar o etnocentrismo das investigações e reduzir discrepâncias entre o que é pesquisado e vivenciado em sociedades distantes que implicam, em igual medida, alteridades distantes. Como observa García Canclini (2005, p. 130), no entanto, o papel fundador de Malinowski não o distanciou dos problemas de sua prática que constituíram uma dialética bastante produtiva.

Na reflexão antropológica, o campo era “legitimado” pela presença de descrições empíricas que lastreavam o antropólogo como pesquisador e participante em culturas longínquas. No entanto, como demonstra García Canclini, tal estatuto foi profundamente questionado à medida que as sociedades distantes se aproximaram simbolicamente das “civilizações”, o que fez com que o papel de “tradução” entre diferentes culturas, desempenhado pelo etnólogo, fosse ameaçado em seu sentido original. Apenas a presença dos relatos empíricos na pesquisa revelaria a dura crítica de uma “condição de simulacro” do outro (GARCÍA CANCLINI, 2005, p. 133) por meio da articulação do relato. Para que, no entanto, a “autoridade” do pesquisador seja possível, ao considerar interculturalidades, García Canclini especifica algumas operações necessárias ao trabalho de campo: incluir nos dados empíricos a interação cultural e política entre o pesquisador e o grupo estudado; suspender a pretensão de dar conta da totalidade e dar atenção “às fraturas, às contradições, aos aspectos inexplicados, às múltiplas perspectivas sobre os fatos” (2005, p. 133); e por último dar pluralidade ao texto ao reproduzir o “caráter dialógico” das interpretações.

Esta reflexão sobre a “observação participante”, cabe ressaltar, pertence em sua origem ao campo antropológico. Mesmo que haja, como propõe García Canclini (2005, p. 16), um conjunto de questões compartilhadas entre os campos que se impõem no contemporâneo, existem diferenças entre o modo predominante na prática etnográfica da antropologia e o contexto ao qual o presente trabalho se insere. Rosana Guber destaca a “falta de sistematização” (2001) do trabalho de campo de caráter etnográfico que, por fim, caracteriza-se como a própria marca distintiva da antropologia em torno da técnica da observação participante. No entanto, de acordo como Escosteguy, é possível perceber na pesquisa com as audiências nos estudos culturais, a partir dos anos 1980, “uma atenção crescente ao trabalho etnográfico” (2010, p. 42) que, embora tenha permitido aos pesquisadores ultrapassar o limite da “crítica ideológica”, tendeu, em algumas pesquisas, ao risco da valorização em demasia do protagonismo dos atores sociais diante dos meios. Segundo a autora, a crítica a isto se dá em termos de a etnografia, no estudo das audiências, recuperar o sentido de uma hegemonia mais contextualizada: sem prescindir das relações de poder que estão inscritas nos meios e sem enclausurar os sujeitos nessa estrutura. No tocante a

esta pesquisa, cabe frisar que não se configura uma prática etnográfica dos lugares estudados. A eleição da observação participante como técnica de pesquisa, e a discussão em seu entorno, é recuperada à medida em que pode contribuir com a presente situação de investigação no binômio participar/observar.

Sobre o tema, para Rosana Guber a “observação participante” coloca à pesquisa uma situação ambígua que se converte em sua principal virtude. O conflito inerente à técnica é compreendido em termos de que a observação reivindica um panorama “positivo” de apropriação dos dados empíricos com objetivo científico, já a participação significa um deslocamento radical de alteridades entre pesquisador e pesquisado no “estar junto”, inserindo-se nas dinâmicas sociais do grupo estudado. Do ponto de vista da observação, a participação produz um mal-estar, pois não se pode participar enquanto se observa, ou vice- versa. O que Guber propõe em sua reflexão é observar os limites de cada prática: “nem o pesquisador pode ser ‘um a mais’ entre os nativos, nem sua presença pode ser tão extrema de modo a não afetar de modo algum o cenário e seus protagonistas” (GUBER, 2001, p. 58)57.

A interpretação do termo, segundo Guber, é equivalente nos fatores da equação: se participa para observar pelo limite imposto pelo campo científico que compreende a participação como “um mal necessário” e se observa para participar porque, em determinadas pesquisas, a participação é “o único meio” para acessar significados que são partilhados pelos atores sociais. A participação nesse último caso coloca-se como condição “sine qua non do conhecimento sociocultural” (2001, p. 60).

De forma prática, a aplicação da técnica da observação participante na presente pesquisa ocorreu em todo o período de investigação, uma vez que o pesquisador é um frequentador dos lugares estudados. A relação com boa parte dos frequentadores, funcionários e proprietários é anterior a pesquisa, mas os lugares vêm sendo observados enquanto objetos de estudo desde o ano de 2012. Essa conversão de elementos do cotidiano em objetos de pesquisa ocorreu paulatinamente: alguns informantes, como os proprietários e funcionários, sabiam que se desejava realizar uma pesquisa nos locais desde 2013, já outros informantes, como os frequentadores, foram abordados com este intuito na situação posterior de entrevista. Como expresso na introdução, a frequência aos lugares estudados aconteceu semanalmente ou diariamente em meio ao cotidiano do pesquisador. Ambos os lugares foram visitados durante o período de almoço, na faixa de horário entre o meio-dia e uma hora da tarde. No Bar Liberdade foi necessária também, em determinados momentos, a realização de visitas durante 

57 Tradução nossa do espanhol. Texto original: “ni el investigador puede ser “uno más” entre los nativos, ni su

todo o turno da tarde para observar os usos do lugar e, especialmente, sua vinculação com o transporte público para a zona rural. A maior parte das entrevistas ocorreu na parte da tarde no estabelecimento, em vista deste fluxo com o transporte.

A situação de pesquisa em meio ao cotidiano impôs certa vigilância relacionada ao binômio participar/observar, pois não se foi ao “campo” exclusivamente para fins de pesquisa e houve sempre a convivência de uma alteridade de pesquisador com outra de frequentador. Muitas situações foram registradas em anotações de campo58, desde 2012, por vezes quase no mesmo momento, mas também posteriormente aos acontecimentos: em alguns casos, depois de refletidas, as vivências tornaram-se dignas de nota. A situação de participação, consideramos, foi de absoluta relevância para a compreensão da sociabilidade entre os atores sociais e seus vínculos com a televisão.

A outra técnica de pesquisa foi a realização de entrevistas semi-estruturadas com os três tipos de atores sociais que observamos nos lugares como participantes da sociabilidade: frequentadores, funcionários e proprietários. A entrevista com roteiro semi-estruturado (THIOLLENT, 1987) permitiu ao pesquisador certa autonomia em relação ao fluxo das conversas com os informantes ao permitir que fossem feitos outros questionamentos ou intervenções quando propícios.

Considerando esse formato, o roteiro de perguntas foi feito a partir de três eixos. O primeiro teve interesse no uso da televisão pelos sujeitos nos lugares e sua relação com a sociabilidade. As questões se colocaram em termos de observar como os informantes percebem a televisão no cotidiano e o quanto ela participa da sociabilidade nos estabelecimentos comerciais. Já o segundo concentrou-se em saber como é a sociabilidade entre os atores sociais de um mesmo estabelecimento, com o foco nas relações sociais e levando em conta as diferentes situações entre funcionários, proprietários e frequentadores. O terceiro e último teve como foco os sentidos atribuídos pelos sujeitos à sociabilidade dos lugares, com e sem a presença da televisão.

Quanto a classe, considerando a distinção feita por Souza (2012) nenhum dos informantes da pesquisa pertence ao grupo da “ralé estrutural” que compõe o habitus

precário. A distinção etária apenas foi feita para recortar a pesquisa nos sujeitos em idade



58 A forma de registro foi a anotação no telefone celular que, por ser um manuseio corriqueiro, não despertou

atenção dos atores sociais, de modo que não interferiu, aparentemente, nas situações observadas. Assim como é o caso de algumas fotografias que compõem o registro de campo e que foram, também, feitas com o telefone celular, com a anuência dos proprietários.

ativa que, segundo o IBGE, pode ser definida a partir dos 15 anos de idade59. Não há qualquer recorte de gênero, raça ou etnia nos sujeitos entrevistados, muito embora estas questões apareçam em algumas situações de pesquisa60.

Tomando como ponto de vista a reflexão sobre “a neutralidade das técnicas” (BOURDIEU et al, 2000), no procedimento da entrevista, não houve um número específico de informantes, mas a realização de entrevistas a medida que se pudesse fornecer um ponto de saturação para a observação da sociabilidade mediada pela televisão nos dois lugares estudados. Neste contexto, a investigação teve o total de 28 informantes entre proprietários, funcionários e frequentadores, 14 em cada estabelecimento comercial estudado. A realização de entrevistas foi concentrada no período final de observação dos lugares estudados, de março a junho de 2014. A transcrição das entrevistas e as anotações no diário de campo constituíram os instrumentos de coleta de dados para a observação, descrição e interpretação.



59 De acordo com matéria no jornal O Estado de São Paulo. Disponível em http://goo.gl/CCtk1O. Acesso em

30/12/2013.

60 Com relação a identidade dos informantes, percebemos duas situações diferentes. A primeira delas se aplicou

aos frequentadores que possuem relações mais ou menos efêmeras com os lugares sendo, neste caso, possível a utilização de nomes fictícios. A segunda referiu-se aos proprietários e funcionários dos estabelecimentos que, na maioria das vezes, têm histórias de vida e trabalho profundamente relacionadas com os lugares. Portanto, da mesma forma que optamos por manter os nomes dos lugares e sua localização no espaço urbano de Pelotas, também os nomes dos informantes proprietários e funcionários foram mantidos. Ambas as situações ocorreram com o consentimento dos entrevistados.