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1.3 NOVOS TEMPOS: A DIREITA RELIGIOSA

1.3.2 A reação fundamentalista

Ao aproximar-se do fim do século XIX, os Estados Unidos amparavam a pluralidade religiosa nos moldes da lei, mas o que acontecia na prática era diferente. Embora a primeira emenda da Constituição americana impedisse o reconhecimento de uma religião oficial única, a esmagadora maioria que ali vivia era protestante.94 Contudo, uma série de eventos fez com que a cristandade evangélica começasse a se desentender nessa época.

Batistas, metodistas e presbiterianos assumem posicionamentos antagônicos a respeito da escravidão, um tema marcante que dividiu e abalou fortemente a nação com a passagem da Guerra de Secessão (1861-65) e o período posterior da Reconstrução. Somado a isso, o advento imigratório, composto notadamente por católicos, judeus e cristãos ortodoxos; a rápida industrialização da economia e, conseqüentemente, o decorrente processo de urbanização, trouxeram à baila mudanças e problemas da modernidade.

Delineava-se um novo cenário divisor de águas, sobretudo em razão da imigração, que acabou por romper a relativa homogeneidade religiosa e coesão social existentes, dando lugar à formação de múltiplas subculturas divididas por etnia, linguagem, raça, nacionalidade e religião. Assim, com a entrada dessa diversidade de imigrantes, o núcleo protestante perdia força e controle da situação. Ademais, o processo de urbanização como um todo gerou a aparição de um fantasma até então pouco imaginado, a secularização.

Diante de tantas mudanças, ainda havia, para o infortúnio dos evangelistas, dois outros grandes pesadelos tirando-lhes o sono. Um era a teoria da evolução de Darwin, que colocava

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Ibid., p. 4. 94

em cheque um dos alicerces da cristandade americana: o polêmico assunto da criação, sobre o entendimento tanto da natureza como do destino humano. O outro, a influência de uma construção crítica histórica da academia Alemã95 sobre toda a obra bíblica, que foi parar nos seminários e púlpitos. A discussão científica e histórica ultrapassava os muros da universidade, entrava no lócus religioso e abalava as estruturas do cristianismo.

Pautado nesse caminho, funda-se o “Novo Cristianismo”; movimento que acolhe as novas mudanças e caminha na direção liberal e ecumênica, inclusive aceitando, com certo limite, católicos e judeus. Entretanto, em reação a esse novo modelo religioso surgiam os precursores da DC.

Muito em razão dessa rivalidade é que, incontinenti, imbuídos de um espírito de combate ao modernismo, Lyman e Milton Stewart − dois irmãos abastados, proprietários da Union Oil Company96 e co-fundadores da Universidade de Biola − financiaram a publicação de uma coleção de doze volumes, intitulada The Fundamentals: A Testimony of the Truth97, elaborada por renomados estudiosos ortodoxos sob orientação do evangelista A. C. Dixon.98 Talvez, o que os dois irmãos não imaginavam era que naquele momento estariam cunhando a origem do termo “fundamentalismo”, bem como dando o pontapé inicial a um movimento organizado fundamentalista que veio a surgir com a fundação da WCFA99 em Filadélfia (1919), onde estiveram presentes 6.000 pessoas lideradas por notáveis evangelistas como Billy Sunday, John Roach Straton, Paul Rader e William Bell Riley.100

É nesse ínterim, entre o fim do século XIX e começo do XX, que se desenvolvem duas correntes dissidentes dentro do protestantismo dos Estados Unidos: a primeira ficou conhecida por “fundamentalista”101 e a segunda por “modernista”102. A diferença central entre

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Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e Albrecht Ritschl, (1822-89), ambos influenciados pelas idéias iluministas de Kant, são alguns exemplos de nomes importantes que muito contribuíram para a formação do liberalismo. Enquanto o primeiro colocou o lócus da religião no sentimento, no afeto e nas emoções do homem − e, desse modo, inseriu Deus e religião no reino do sentido da experiência − o segundo opôs-se ao subjetivismo de seu antecessor e fundamentou o cristianismo na história, investindo no resgate do Jesus histórico, sendo que para ele Deus não era um objeto a ser julgado teoricamente. Cf. GOUVÊA, R. Q. A morte e a morte da modernidade: quão pós-moderno é o posmodernismo? Revista Fides Reformata, São Paulo, v. 1, n. 2, jul./dez. 1996. Disponível em: <http://www.mackenzie.com.br/teologia/fides/vol01/Ricardo.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2005.

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Empresa de exploração de petróleo hoje, sob o nome de Unocal Corporation. Controlada pelo grupo Chevron, é uma das maiores distribuidoras de derivados de petróleo dos EUA e detentora da marca Texaco.

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Os Fundamentalistas: Um Testemunho à Verdade. 98

A obra, publicada entre 1910-15 e contendo 30 ensaios da Bíblia e tópicos correlatos, teve cerca de três milhões de cópias impressas e distribuídas.

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World´s Christian Fundamentals Association: Associação Fundamentalista Cristã Mundial. 100

Em seguida, esses líderes espalharam-se pelos EUA e Canadá pregando seus ideais em mais de 100 conferências. Cf. WILCOX, op. cit., p. 26.

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O tripé central da doutrina fundamentalista era basicamente composto de três idéias: pré-milenarismo, dispensacionalismo e criacionismo. Cf. Ibid., p. 26-7.

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A corrente modernista, também conhecida por “cristianismo liberal ou progressista”, foi um movimento religioso que tentou conciliar o cristianismo histórico com as descobertas da ciência moderna e a filosofia.

ambas fixava-se em torno da interpretação bíblica. Para os fundamentalistas, a Bíblia, uma obra de Deus transmitida aos seres humanos, tinha de ser interpretada ipsis litteris; portanto, inseri-la em um contexto histórico, científico ou qualquer outro, como faziam os acadêmicos racionalistas modernistas, constituía uma profanidade.

Os fundamentalistas, contrários ao envolvimento do “Novo Cristianismo” com os valores e a racionalidade da vida urbana, bem como com a orientação voltada ao social introduzida pelo movimento Social Gospel103, enfatizavam a salvação individual como elementos prioritários para o cristianismo; exaltavam o dever de todo cristão de ser evangelizado pela fé, o combate a outras religiões e, conseqüentemente, outras culturas, as quais julgavam falsas e perigosas. Além disso, incentivavam uma conduta de vida mais simples possível, a qual deveria ser abstinente, laboriosa e o mais próximo possível ao estilo de vida rural, tradicional e uniforme.104 Era uma clara oposição aos sedutores valores plurais da vida cosmopolita, que, para os fundamentalistas, conduziria ao vício e ao desvio do caminho à salvação.

O medo latente dos fundamentalistas era que a concepção do cristianismo liberal usurpasse a cena, deixando as questões religiosas por eles consideradas puras à margem, substituindo-as por preocupações seculares, e até superficiais, que consideravam fora do âmbito religioso, tais como educação, saúde e bem-estar social.

Neste ponto é possível evidenciar uma oposição à globalização e a resistência ao contato com outras culturas. Os fundamentalistas mais ativistas defendiam a idéia de que o Cristianismo era a fundação necessária da civilização em geral e, em particular, da nação americana. Para eles, a vida urbana trazia uma ameaça latente ao que já estava consolidado; os novos valores eram estranhos, isto é, vinham do estrangeiro, não pertenciam a eles e, mais do que isso, para os líderes mais radicais, não faziam parte do reino de Deus, eram obra de Satã.105 A política, a seu modo, também incorporava essa ideologia, utilizando a guerra bem-

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Evangelho Social: movimento liberal do protestantismo americano que investia na aplicação dos ensinamentos bíblicos aos problemas associados com o processo da industrialização. Os dois principais expoentes do movimento foram Washington Gladden (1836-1818) e Walter Rauschenbusch (1861-1918). Os adeptos fomentavam-se na crença pré-milenarista de que as pessoas poderiam ajudar na condução do retorno de Cristo, caso interviessem na preparação do Reino na terra. Cf. SOCIAL gospel. In: THE COLUMBIA encyclopedia. 6th ed. New York: Columbia University Press, 2005. Disponível em: <http://www.bartleby.com/ 65/so/SocialGo.html>. Acesso em: 12 mar. 2005.

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Um bom exemplo de como esses valores eram exaltados na época pode ser visto em músicas como a de Miss Clara F. Berry, que compôs uma canção (1871) intitulada Don´t Leave The Farm Boys (Não Abandonem a Fazenda, Meninos). Cf. THE LIBRARY OF CONGRESS. Rise of industrial America, 1876-1900… Disponível em: <http://memory.loc.gov/learn/features/timeline/riseind/rural/leave.html>. Acesso em: 12 mar. 2005.

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Cf. BRUNS, R. A. Preacher: Billy Sunday and big-time American evangelism. Champaign: University of Illinois Press, 2002. p. 15.

sucedida como um potencial pedagógico a serviço do imperialismo, conforme as palavras de Hobsbawm:

[...] o imperialismo mobilizou com êxito a popularidade dos canhões para a guerra [...] Na verdade, as elites governantes dos EUA, encabeçadas por Theodore Roosevelt (1858-1919), presidente de 1901-1909, acabava por descobrir o caubói-inseparável-de-seu-revólver como um símbolo do verdadeiro americanismo, da liberdade e da tradição branca nativa contra a horda invasora dos imigrantes das classes baixas e a incontrolável grande cidade. Desde então, esse símbolo tem sido extensivamente explorado. 106