• Nenhum resultado encontrado

As palavras de Bush não revelam um fenômeno de natureza propriamente insólita quando comparado ao processo histórico político dos EUA. O debate acerca do papel da religião na política dos EUA é perene, e o fervor que ascendeu o estopim dessa história remonta os tempos de colônia quando os documentos da Constituição e da Declaração dos Direitos e Garantias (Bill of Rights) eram esboçados. 313 Entretanto, o que sempre esteve em evidência nessa discussão é um dilema aparentemente insolúvel, por intermédio do qual se estabeleceram duas visões controversas que digladiam entre si por um lugar ao sol na democracia dos EUA.

Pelo visto, tudo se deu a partir de apenas “16 palavras [em inglês] escritas há mais de 200 anos”314 quando da criação da primeira emenda constitucional. Enquanto a primeira parte do belicoso parágrafo configurou a chamada establishment clause315, respaldada pelos Accommodationists (“abonatários”), cujas palavras são “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, [...]”316; a segunda, separada desta apenas por uma vírgula “[...] ou proibindo o livre exercício dos cultos”, ficou conhecida por free exercise clause317, tendo em sua defesa os Separationists (“separatistas”).

De um lado do cabo-de-guerra, os Accommodationists professam que a Constituição apenas proíbe o estabelecimento de uma religião nacional sobre as demais, longe de isso

312

Em inglês a palavra está maiúscula, referindo-se a Deus. 313

Cf. WILCOX, op. cit., p.13. 314

WILCOX, loc. cit. 315

Cláusula constitucional norte-americana que proíbe o Congresso de instituir qualquer lei que oficialize ou discrimine qualquer religião. Cf. GOYOS JÚNIOR, D. de Noronha. Noronha’ s legal dictionary... . 5th ed. São Paulo: Observador Legal, 2003. p.134.

316

EMBAIXADA DOS ESTADOS UNIDOS. A Constituição dos Estados Unidos da América. Disponível em: <http://www.embaixada-americana.org.br/index.php?action=materia&id=643&submenu=106&itemmenu=110>. Acesso em: 10 jun 2004.

317

significar a exclusão da religião do governo318, ao contrário, salientam que as igrejas foram estabelecidas em muitas colônias desde o início da fundação e assim permaneceram; por isso, lutam pela prática religiosa na esfera pública e alegam que a neutralidade governamental deve ser apenas relegada às “religiões de tradição judaico-cristã e, às vezes, entre a fé cristã”.319 Do outro lado, os Separationists advogam em favor da concepção jeffersoniana do muro de separação entre igreja e estado.320

Contudo, qualquer dissidência nesse terreno torna-se diminuta face ao peso do legado de uma tradição profundamente incutida na alma do povo estadunidense, isto é, do amálgama político-religioso que se fez presente desde sempre, pois, a despeito de toda pluralidade religiosa existente, e suas conseqüentes divergências, o que há, antes e por trás de tudo, no cerne dos EUA, é um peculiar etos321 arraigado na estrutura da nação, constituído por valores religiosos cristãos equivalentes, que envolve e une os estadunidenses em torno de uma mesma moral cristã, conforme notou Tocqueville já em 1835:

Existe nos Estados Unidos uma multidão inumerável de seitas. Todas diferem no culto que é devido ao Criador, mas todas concordam sobre os deveres dos homens uns para com os outros. Cada seita adora Deus, pois, à sua maneira, mas todas as seitas pregam a mesma moral em nome de Deus. Se, para o homem como indivíduo, muito serve que a sua religião seja verdadeira, o mesmo não é verdade com relação à sociedade. A sociedade nada tem a temer nem a esperar da outra vida; e o que mais lhe importa não é tanto que os cidadãos professem a verdadeira religião, mas que professem uma religião. Aliás, todas as seitas nos Estados Unidos, estão compreendidas dentro da unidade cristã, e a moral do cristianismo é a mesma em toda a parte.[...] Nos Estados Unidos, a religião não regula apenas os costumes322, mas estende seu império até a inteligência. Entre os anglo-americanos, uns professam os dogmas cristãos porque crêem neles, os outros porque temem não parecer que crêem. Por isso, o cristianismo reina sem obstáculos, admitido por todos; daí resulta, como já tive ocasião de dizer, que tudo é certo e decidido no mundo moral, embora o mundo político pareça abandonado à discussão e às tentativas dos homens.323

318

Obviamente que a esmagadora maioria da Direita Cristã adota essa posição. 319

WILCOX, loc. cit. 320

Embora boa parte dos conservadores alegue que os Separationists são hostis à religião, Jefferson acreditava que com a separação a religião seria beneficiada. Cf. Ibid., p. 14.

321

Entendemos etos conforme suas duas acepções derivadas de uma mesma raiz, isto é, éthos enquanto costume, uso, hábito, do verbo eíotha; ter o costume ou ter o hábito, ou seja, refere-se ao costumeiro. Já êthos significa caráter, maneira de ser de uma pessoa, índole, temperamento, disposições naturais de uma pessoa segundo seu corpo e sua alma, os costumes de alguém conforme a sua natureza, ou seja, refere-se ao que se faz ou se é por características naturais, próprias da pessoa ou de algo, o caráter de alguém ou algo. Portanto, o êthos é tratado pela ética, que estuda as ações e paixões humanas segundo o caráter ou a índole natural dos seres humanos. Cf. CHAUÍ, M. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 500-1, v. 1.

322

Tocqueville entende a expressão costumes como mores, tal qual os antigos o concebiam, cujo sentido deriva do latim e significa moral. Em grego seria ethos, no sentido de ética. Cf. TOCQUEVILLE, op. cit., p. 221. 323

Claro está, para o autor, que não importa a crença e vínculo religioso dos americanos, engendrado entre eles há uma ética maior que penetra a todos, a qual age como uma espécie de fio condutor que, sob a perspectiva de uma cosmovisão coletiva particular, liga-os guiando a um mesmo fim, o que não diferentemente acontece entre os volteios da conduta política, visto que ambas, religião e política, sempre andaram de mãos dadas nesse caminho:

Ao lado de cada religião encontra-se uma opinião política que, por afinidade, é ligada a ela. Deixe-se que o espírito humano siga a sua tendência, e ele regerá de maneira uniforme a sociedade política e as relações espirituais, procurando, se me é permitido dizê-lo, harmonizar a terra com o céu. [...] Desde o princípio, a política e a religião acharam-se de acordo, e desde então nunca deixaram de estar.324

Entretanto, um ponto importante aventado por Tocqueville a respeito do relacionamento entre política e religião nos EUA que permeia o centro da questão é a parceria existente entre o espírito de religião e o espírito de liberdade. 325 Para o autor, os fundadores do Novo Mundo vivenciavam uma polaridade curiosa, pois, ao mesmo tempo em que, imbuídos de paixão sectária, cerceavam-se em limites estreitos, também eram entusiasmados inovadores que não tinham qualquer preconceito político. Tocqueville observa que a partir disso decorrem duas tendências diversas, mas não opostas, cujos vestígios poderiam ser facilmente encontrados por todo país,

“[...] tanto nos costumes como nas leis. Quando vemos homens, por uma opinião religiosa, sacrificar seus amigos, sua família e sua pátria, podemos julgá-los absorvidos na procura desse bem intelectual que vieram comprar a tão elevado preço. Vemo-los, entretanto, procurar, com um ardor quase igual, as riquezas materiais e os prazeres morais, o céu no outro mundo e o bem-estar e a liberdade neste”326

Na América, a liberdade e a religião caminham lado-a-lado, como irmãs que, amiúde, observadas à distância, pelo olhar alheio àquela dinâmica de vivência particular, causa impressão de sempre estarem entrechassadas em brigas, mas, na verdade, encontram-se apaziguadas, pois o que produz sentido a uma é a própria existência da outra e vice-versa, sendo que a lacuna de uma é o preenchimento da outra. Posto em palavras mais concretas:

324

Ibid., p. 221-222. (grifo do autor) 325

Cf. Ibid., p. 42. 326

[...] no mundo moral, tudo é classificado, coordenado, previsto, decidido de antemão. No mundo político, tudo é agitado, contestado, incerto; num, a obediência passiva, ainda que voluntária; noutro, a independência que desdenha a experiência e inveja tôda [sic] autoridade.

Longe de se contradizerem, essas duas tendências, aparentemente tão opostas, marcham de acordo e parecem prestar-se mútuo apoio. A religião vê, na liberdade civil, um nobre exercício das faculdades do homem; no mundo político, um campo entregue pelo Criador aos esforços da inteligência.

[...] A liberdade vê na religião a companheira de suas lutas e seus triunfos, o berço de sua infância, a fonte divina de seus direitos. Considera a religião como a salvaguarda dos costumes; os costumes, como garantia das leis e penhor da sua própria preservação.327

2.3.1 Bush is not beating around the bush

Muito próximo às idéias tocquevilleanas é que Bush, sem rodeios, insere a religião na área política e investe na promoção de uma moral exclusivamente cristã face a um governo que, em tese, pretende-se afirmar secular; seja isso por meio das inúmeras políticas de ação − como, para citar um exemplo, quando, sem consultar o Congresso, por decreto, “na canetada”, deferiu facilidades de financiamento às Iniciativas Baseadas na Fé328 com a urgência de quem esperava o retorno em votos da DC na eleição de 2003 − ou por meio de uma retórica que a todo o momento exaltou valores morais cristãos. O sentimento do aviltamento da establishment clause pela prática política e retórica religiosa da administração Bush foi bem captado por setores da mídia que conseguiram não somente resumir com precisão suas principais características, mas também apontar que, se há uma novidade desse governo quanto ao aspecto político-religioso, essa se refere à dimensão do papel que ocupa:

Duas das tendências mais perturbadoras ocorrendo na sociedade americana

são o colapso da separação entre a igreja e o estado e o uso cada vez mais

freqüente da retórica religiosa como um marco da identidade política e da formação de política pública. A religião sempre desempenhou um papel pujante no cotidiano dos americanos. Mas, jamais ocupou um papel com tamanha influência nos níveis mais altos do governo americano como acontece sob a presidência de George W. Bush.329

327

Ibid., loc. cit. 328

Cf. STEVENSON, R. W. In order, President eases limits on U.S. aid to religious groups. The New York

Times, New York, 13 Dec. 2002. Section A, p. 1.

329

3 “VIVEREI E GOVERNAREI POR ESTES PRINCÍPIOS...”

Neste penúltimo capítulo exporemos uma noção geral da teoria que serve de base para a análise da retórica de Bush a ser apresentada no próximo capítulo. Trata-se do Tratado da Argumentação de Perelman, um corpo teórico clássico no campo da lógica e da filosofia contemporânea que inaugurou a proposta de uma nova retórica, buscando, conforme as palavras do autor, “retomar e ao mesmo tempo renovar a retórica dos gregos e dos romanos, concebida como a arte de bem falar, ou seja, a arte de falar de modo a persuadir e a convencer, e retomar a dialética e a tópica, artes do diálogo e da controvérsia.”330 Porém, à teoria perelmeniana, agregaremos ainda dois conceitos teóricos distintos para consubstanciá- la: o primeiro abaliza-se na idéia de arquétipo da psicologia analítica de Carl G. Jung; o segundo, à luz da sociologia, fixa-se na concepção designada por religião civil, cujo principal expoente teórico é Robert Bellah.

Destarte, este capítulo principia pela explanação dos conceitos fundamentais da proposta da nova retórica de Perelman e, em seguida, dos outros dois conceitos (arquétipo e religião civil) incorporados a ela; procura-se, desse modo, oferecer um esboço teórico a priori, necessário à compreensão da análise.