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Aplicação dos argumentos baseados na estrutura do real

4.1 A RETÓRICA DE BUSH

4.1.4 Aplicação dos argumentos baseados na estrutura do real

Em primeiro lugar o que salta à vista é a relação existente entre a religião civil sob o aspecto do nacionalismo religioso e o argumento de autoridade. Ambos dizem respeito à autoridade depositada na figura do presidente, que, como já discutimos, carrega o peso histórico da tradição que começa com os Pilgrim Fathers, os quais passaram o bastão aos Founding Fathers e, finalmente, deixaram-no a cargo da figura do presidente da nação; aliás, não à toa, os primeiros presidentes foram os próprios fundadores, fato que fez Junqueira chamá-los de “heróis” e conjunto do “panteão sagrado”424 dos fundadores da nação. São, respectivamente: George Washington (1789-97), John Q. Adams (1797-1801), Thomas Jefferson (1801-09) e James Madison (1809-17). É, portanto, mais uma estrutura que de história ganha força mítica.

Para fazer a análise do argumento de autoridade, iremos recorrer apenas ao discurso de posse, pelos seguintes motivos:

d) Por considerá-lo um discurso deveras importante no sentido de autoridade propriamente dito, isto é, pelo costume do discurso de posse gerar uma boa expectativa nos cidadãos que anseiam por ouvir os rumos oficiais da nação, quer seja pela exposição da autoridade oficial do presidente a ser declarada pela primeira vez, ou mais importante ainda, ao considerar o papel que o presidente dos EUA representa à nação;

e) Por acreditar que Bush daria uma resposta retórica fundamentada em argumentos de autoridade, em função de todo embate e da grande confusão política gerada no processo eleitoral entre Gore e Bush antes de conquistado o definitivo direito de posse.

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A representação do esquema está baseada na divisão das cores: primárias (amarelo, vermelho e azul) e secundárias (laranja, verde e violeta)

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Em face disso, podemos notar que Bush já demarca a autoridade, na abertura de sua primeira posse, utilizando o argumento de autoridade: “a transferência pacífica de autoridade é rara na história, porém comum em nosso país. Com um simples juramento, nós ratificamos antigas tradições e estabelecemos novos começos”. E, em seguida, em cima do mesmo argumento, fala de seu compromisso solene: “É esse meu compromisso solene: trabalharei para construir uma única nação de justiça e oportunidade. Sei que isso está ao nosso alcance porque somos guiados por uma força maior do que nós próprios que nos criou a Sua imagem.”

Ao final do discurso, Bush, vale-se de uma passagem que inclui um Founding Father de peso, que, junto a uma mensagem bíblica, fecha, com chave de ouro, sua fala:

Após a assinatura da Declaração da Independência, o estadista John Page escreveu a Thomas Jefferson: ‘Sabe-se que a contenda não é dos céleres, nem a luta dos fortes. Achais que um anjo cavalga o redemoinho e comanda essa tempestade?’

Esse trabalho continua. Essa história continua. E um anjo ainda anda no furacão e direciona a tempestade. Deus abençoe vocês todos, e Deus abençoe a América.

Bush utiliza-se claramente do argumento de autoridade em dois momentos chaves, ao abrir e fechar o discurso, sendo que, próximo de terminar, faz uso da imagem simbólica memorável de Thomas Jefferson − autor da declaração da independência e terceiro presidente dos EUA, um homem ícone aos cidadãos estadunidenses − ao vincular a antiga história a si, isto é, à situação atual. Bush também se vale de argumentos de comparação, deixando clara a distinção dos EUA perante o resto do mundo, colocando todas as nações restantes na posição de ‘raros’ quanto ao status de pacificidade democrática, que, por outro lado, é algo para eles comum.

Sob a teoria da religião civil, há o aspecto do nacionalismo religioso que também engloba a glorificação dos heróis da nação e a sacralização dos propósitos nacionais que, nesse caso, está intrinsecamente relacionado ao argumento que utiliza a ligação simbólica como instrumento de adesão. Ambos operam no mesmo sentido, pois se envolvem pelas emoções emanadas dos símbolos que se afiguram no imaginário coletivo.

Por esse enfoque, encontramos invariavelmente, nos discursos de Bush, ora pontos de captura primários − na figura do herói ou dos fundadores, pais da nação −, ora pontos de captura secundários − como a bandeira e a exaltação da nação como imperativo ufanista.

Vejamos primeiramente exemplos de pontos de captura secundários: “Nas ruínas das duas torres, sob uma bandeira estendida no Pentágono, nos funerais de muitos, fizemos uma promessa sagrada.” Ou em “A bandeira dos Estados Unidos representa mais que nosso poder

e nossos interesses.” Não somente a bandeira, mas as torres e, em conseqüência dos ataques, até mesmo o Pentágono e a imagem do funeral são passíveis de serem úteis pontos de captura secundários e bons argumentos que resgatam o nacionalismo do povo em estímulo ao combate.

Já os elementos primários como os Pais Fundadores e heróis estiveram muito presentes e foram bastante enfatizados. A imagem do herói foi utilizada na imagem e ato heróico dos passageiros do avião, do auxílio incansável dos cidadãos comuns, do povo solidário às vítimas e, especialmente, dos bombeiros, policiais e soldados. Foi recorrente hábito de Bush trazer pessoas “comuns” aos seus discursos, a quem se dirigia com cumprimentos, e logo os tornavam exemplos à nação. Às vezes era uma esposa de um soldado morto em combate, outras vezes soldados resgatados ou comissários de bordo, cidadãos comuns que se livraram das drogas. Sem esquecer também de discursos não oficiais – mas que foram, naturalmente, momentos de evidência na mídia −, por meio dos quais, por exemplo, de megafone em mãos, tentava, sem êxito, comunicar-se com bombeiros à distância nos escombros das torres gêmeas (lugar simbólico). À medida que os bombeiros responderam, aos gritos, que não conseguiam ouvir o presidente, ele replicou: “eu consigo ouvi-los, o mundo inteiro consegue ouvi-los, e logo os evildoers também vão ouvir falar de nós ”425

Vejamos outros exemplos dos argumentos baseados na estrutura do real de ligação simbólica em cima da figura do herói e dos Pais Fundadores:

Nossos fundadores consagraram este país à causa da dignidade humana, aos direitos de cada pessoa e às possibilidades de cada vida [...] // Shannon, garanto a você e a todos os que perderam uma pessoa amada: nossa causa é justa e nosso país nunca se esquecerá da dívida que temos com Michael e com todos os que deram a vida pela liberdade // O povo norte-americano respondeu de forma magnífica, com coragem e compaixão, força e obstinação. Quando me encontrei com os heróis, abracei as famílias e olhei os rostos cansados dos que trabalhavam no resgate, eu tive grande respeito pelo povo norte-americano // O povo norte-americano respondeu de forma magnífica, com coragem e compaixão, força e obstinação. Quando me encontrei com os heróis, abracei as famílias e olhei os rostos cansados dos que trabalhavam no resgate, eu tive grande respeito pelo povo norte- americano // Alguns dias antes do Natal, um comissário de bordo de uma linha aérea flagrou um passageiro acendendo um fósforo. A tripulação e os passageiros rapidamente subjugaram o homem, que havia sido treinado pela Al-Qaeda e estava armado com explosivos. As pessoas naquele avião

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Foi um diálogo divulgado por toda mídia. A palavra evildoer foi deixada assim porque não tem uma tradução tão boa quanto sua representação em inglês, que por definição é: “aqueles que fazem o mal”. Cf. THE WHITE HOUSE. President receives World Trade Center bullhorn. Disponível em: <http://www.whitehouse.gov/news/ releases/2002/02/20020225-4.html>. Acesso em: 20 jan. 2006.

estavam alertas, e o resultado foi terem salvado, possivelmente, quase 200 vidas. E nesta noite damos as boas-vindas e agradecemos aos comissários Hermis Moutardier e Christina Jones. (Aplausos.) // Elevaremos os recursos destinados aos estados e comunidades para treinamento e aparelhamento de nossa heróica polícia e corpo de bombeiros. (Aplausos.) No sacrifício dos soldados, na solidariedade ardente dos bombeiros e na bravura e generosidade dos cidadãos comuns, nós vislumbramos a forma de uma nova cultura de responsabilidade.

Corroborando com a força do argumento da ligação simbólica da figura dos Pais Fundadores e do herói, há a teoria junguiana desenvolvida sobre a concepção dos arquétipos. Dentre as imagens arquetípicas postuladas por Jung, há o arquétipo do pai e o arquétipo do herói.

Jung escreveu sobre a importância do pai no desenvolvimento da criança, o qual é preponderante na formação e personalidade dos indivíduos, quer seja pelo pai concreto como essência masculina, ou como a representação da figura paterna expressa no coletivo. É comum a teoria da psicologia, por exemplo, discorrer sobre o papel fálico do pai como o agente que organiza, dá o limite, a disciplina e a castração. No entanto, deve ser esclarecido que a imagem arquetípica, dependendo da dinâmica individual estabelecida, pode tanto ser positiva, quando internalizamos uma imagem paterna adequadamente provedora e acolhedora, entre outras possibilidades, quanto, pelo inverso, ser negativa, por exemplo, diante de um pai ausente ou pai austero. Todavia, tal qual explicamos anteriormente, o arquétipo, como representação imagética que é, não se restringe a uma representação concreta estabelecida na dinâmica pai/filho, pois é igualmente possível construir a imagem paterna, via simbolização, por meio de vivências fora do convívio familiar, por exemplo, no seio da sociedade, quando somos introduzidos aos conceitos de leis próprios de nossa cultura, via relações de poder, do mundo do trabalho e, naturalmente, pela imagem de nossos professores, patrões, governantes, entre outros.

Não diferente acontece com o arquétipo do herói, que, exaustivamente repetido nos mitos, sem dúvida varia em detalhe de cultura a cultura, mas mantém a mesma estrutura referencial: o herói tem nascimento humilde, mas milagroso; ocorrem provas de sua força sobre-humana precoce; tem ascensão rápida ao poder e à notoriedade; suas lutas são triunfantes contra as forças do mal; porém, acontece sua falibilidade ante a tentação do orgulho (hybris) e seu consecutivo declínio, por motivo de traição ou por um ato de sacrifício heróico, onde sempre morre.

A função essencial e específica do mito heróico é desenvolver no indivíduo a consciência do ego, a fim de reconhecer as próprias forças e fraquezas. A partir do momento em que o indivíduo entra na fase de maturidade, o mito do herói perde a relevância. A morte simbólica do herói assinala a conquista de sua maturidade.

Em cada fase de seu ciclo total, de seu nascimento até a sua morte, a história do herói toma formas particulares que se aplicam a determinado ponto alcançado pelo indivíduo no desenvolvimento da sua consciência do ego. Isto é, a imagem do herói evolui de maneira a refletir cada estágio de evolução da personalidade humana. A importância da representação simbólica do herói na contemporaneidade pode ser representada pelas ações que nos movem a empreender realizações difíceis, que não faríamos sem uma dose daquilo que já internalizamos da imagem arquetípica do herói; um exemplo, pertinente e sagaz ao momento, poderia ser atribuído ao trabalho de uma tese de mestrado ou doutorado em uma sociedade em que é necessário conciliar trabalho, família e outras obrigações a tal esforço.

Assim, as imagens contadas ao longo da história, tais como as dos Pais Fundadores − que, a um só tempo, foram pais, heróis, presidentes, legisladores, entre tantos outros atributos −, constitui uma imagem deveras forte e substancial aos cidadãos estadunidenses. Basta olharmos a produção “hollywoodiana” sobre os heróis, bem como os dias de colônia, para visualizarmos com atenção o que essas imagens representam.