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Aplicação dos argumentos quase-lógicos

4.1 A RETÓRICA DE BUSH

4.1.3 Aplicação dos argumentos quase-lógicos

a) os argumentos de comparação e de sacrifício

Desde que Bush indicou a composição do “eixo do mal” e, naturalmente, por contraposição, posicionou seu país do lado oposto, quer dizer, como representante do Bem, seus discursos começaram a ser permeados por tais termos maniqueístas facilmente inteligíveis e bem receptivos aos ouvidos de um auditório praticamente consolidado sobre pilares erigidos em cima de um solo de ética protestante, haja vista que em entrevista recente feita nos EUA, dos 86,2% adultos que se declaram cristãos, 53% dizem-se protestantes.420

Assim, Bush lança uma série de argumentos de comparação por oposição, valendo-se de premissas de acordo de forte adesão, fundamentadas em valores arraigados e pertinentes a uma ética protestante em que o bem (eles) deve prevalecer sobre o mal (terroristas) e, portanto, faz-se necessário extirpá-lo do mundo a qualquer preço.

A grande estréia do mal se dá na noite de 11 de setembro, o qual, contracenando com os EUA, no papel do bem, volta em cena sucessivamente: “Hoje, nossa nação viu o mal, o pior lado da natureza humana, e nós respondemos com o melhor da América, com a coragem dos nossos socorristas [sic], com a preocupação de estranhos e vizinhos que doaram sangue e ajudaram como puderam”. Desse modo, abriu-se caminho para que o “eixo do mal” fosse apresentado e continuasse a surgir em outros discursos posteriores:

Nenhum de nós jamais desejaria o mal que foi praticado em 11 de setembro. No entanto, depois que os EUA foram atacados, foi como se todo o país se olhasse no espelho e enxergasse o melhor de si mesmo. // Com a força conjunta de milhões de atos de ajuda, decência e bondade, sei que poderemos suplantar o mal com um bem maior. // As qualidades de coragem e compaixão pelas quais lutamos nos Estados Unidos também determinam

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Cf. PEW RESEARCH CENTER FOR THE PEOPLE & THE PRESS. Americans struggle with religion´s

role at home and abroad. Disponível em: <http://people-press.org/reports/print.php3?PageID=390>. Acesso em:

nossa conduta no exterior. A bandeira dos Estados Unidos representa mais que nosso poder e nossos interesses. Nossos fundadores consagraram este país à causa da dignidade humana, aos direitos de cada pessoa e às possibilidades de cada vida. Esta convicção nos leva ao mundo para ajudar os aflitos, defender a paz e alterar os desígnios dos homens maus. // E este país está liderando o mundo para enfrentar e derrotar o mal criado pelo homem, o terrorismo internacional. // Vocês viram que a vida é frágil, e o mal é real, e a coragem triunfa. Escolham servir a uma causa maior que seus desejos, maior que vocês mesmos – e em sua vida vocês contribuirão não apenas para a riqueza de nosso país, mas para seu caráter. 421

Bush ainda utiliza o enredo do 11 de setembro para fundamentar outro tipo de retórica: os argumentos de sacrifício, que se pulverizaram em identificações a vários setores da sociedade e, naturalmente, à imagem da própria nação:

Por tempo demasiado longo nossa cultura apregoava, ‘Se lhe dá prazer, faça’. Agora os EUA estão adotando uma nova ética e um novo credo: ‘Vamos começar a agir’. No sacrifício dos soldados, na solidariedade ardente dos bombeiros e na bravura e generosidade dos cidadãos comuns, nós vislumbramos a forma de uma nova cultura de responsabilidade. Queremos ser uma nação a serviço de propósitos maiores do que ela própria. Foi-nos oferecida uma oportunidade ímpar e não devemos deixar que esse momento passe. // E todas as nações devem saber: os EUA farão o que for necessário para garantir a segurança de nossa nação. // [...] embora o preço da liberdade e da segurança seja alto, nunca é alto demais. Pagaremos para defender nosso país, custe o quanto custar. // [...] fizemos uma promessa sagrada a nós mesmos e ao mundo: não descansaremos até que a justiça seja feita e nossa nação esteja segura. O que nossos inimigos começaram, nós vamos terminar. // Qualquer que seja a ação exigida, quando qualquer ação for necessária, defenderei a liberdade e a segurança do povo norte- americano. // Esta noite, tenho uma mensagem para os homens e mulheres que vão manter a paz, membros das Forças Armadas dos EUA [...] o sucesso de nossa causa dependerá de vocês. Seu treinamento os preparou. Sua honra os guiará. Vocês acreditam nos Estados Unidos, e os Estados Unidos acreditam em vocês. Enviar norte-americanos ao campo de batalha é a decisão mais extrema que um presidente pode tomar. As tecnologias de guerra mudaram; os riscos e o sofrimento da guerra, não. Para os corajosos norte-americanos que correm o risco, nenhuma vitória está livre de dor. Esta nação entra na luta com relutância, porque conhecemos seu custo e tememos os dias de luto que sempre chegam. [...] Os Estados Unidos são uma nação forte e honesta no uso de nossa força. Exercemos o poder sem conquistas e nos sacrificamos pela liberdade de estranhos. // Quando nossos fundadores declararam uma nova ordem dos tempos, quando soldados deram a própria vida em ondas incessantes por uma união calcada na liberdade, quando cidadãos marcharam em manifestação pacífica sob o estandarte ‘Liberdade já’ – eles agiam movidos por uma antiga esperança de que a alcançariam.

421 Esta citação − bem como as subseqüentes − apresenta passagens de diferentes discursos de Bush compreendidos no objeto deste estudo. Para separá-las, adotamos o símbolo: //. Doravante, tanto esta quanto todas as citações seguintes referentes ao discurso de Bush não acompanham as respectivas fontes, pois já foram anteriormente citadas e também se encontram anexas.

b) os argumentos de transitividade

Ao aplicar os argumentos de transitividade ao discurso de Bush, sem perder o foco das premissas do quadro anterior (chamado, promessa e missão), podemos verificar que junto da passagem de relação dos termos à conclusão há também uma transferência de acordo.

Observemos as seguintes conclusões pertences ao argumento de Bush:

A liberdade que prezamos não é um presente dos Estados Unidos para o mundo, é um presente de Deus para a humanidade. // [...] os norte- americanos por escolha ou nascimento, estão interligados na causa da liberdade. // Se nosso país não liderar a causa da liberdade, ela não será liderada. Devemos viver de acordo ao chamado que nos envolve.

Para chegar em tais conclusões, a retórica de Bush utiliza o meio da transitividade, que ocorre da seguinte maneira: Os EUA existem porque os Pilgrim Fathers cumpriram uma missão (atendiam a um chamado) − um fato comprovado pela história. No cerne dessa missão reside a liberdade − o motivo central de tal desígnio. Porém, por que isso aconteceu? Porque os EUA são um país abençoado, isto é, foi Deus que os colocaram nesse caminho, foi Deus que os convocaram, foi Deus que imputou tal desígnio. Ora, se a liberdade é um presente de Deus para a humanidade, e se os EUA são detentores de um lugar especial no mundo em virtude de sua origem estar vinculada à liberdade, o resultado é a legitimidade da incumbência dos EUA levarem a liberdade − presente proveniente de Deus, algo inconteste − a todo o mundo.

Perelman postula que, assim como é possível, em um argumento, digamos, transferir valores, o mesmo pode acontecer em relação a um acordo, pois não é raro que fatos e verdades como − por exemplo, teorias científicas e verdades religiosas − sejam utilizados como objetos de acordo distintos, mas entre os quais existem vínculos que admitem a transferência do acordo que se estabelece por uma relação equacionada: “a certeza do fato A, combinado com a crença no sistema S, acarreta a certeza do fato B, o que significa que admitir o fato A, mais a teoria S, equivale a admitir B.”422

Apliquemos à retórica de Bush:

Fato A: “a missão é feito meritório dos antepassados [Pilgrim Fathers] fundamentado pela história” e embasada no “imperativo da autonomia [liberdade]”

Sistema S: (A crença religiosa/verdade): “a liberdade é um presente de Deus para a humanidade”, um valor “correto, verdadeiro e imutável para todas as pessoas em toda parte”. “Os EUA foram criados pela missão”, isso “porque são abençoados”; daí decorre a “origem

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[da missão] em crenças básicas” e o lugar especial dos EUA no mundo por possuírem a particularidade de serem detentores da missão, que fica clara, por exemplo, no seguinte recado: “Os inimigos da liberdade e de nosso país não devem se equivocar: A América continua comprometida no mundo pela história e por escolha, dando forma a um equilíbrio de poder que favorece a liberdade”.

Fato B: “Os EUA são servos da liberdade” e o “farol mais brilhante da liberdade”, cuja “responsabilidade” e “privilégio” levam a serem “chamados” para levar a liberdade ao mundo, pois caso “não liderem a causa da liberdade, ela não será liderada”. Afinal, foram “convocados pela história”. “A história tem um fluxo e refluxo de justiça, mas a história também tem uma direção visível, determinada pela liberdade e pelo criador da liberdade.” E “Deus amoroso está por trás de tudo na história”

Evidencia-se, na análise dos três itens anteriores, a transferência do acordo, que de fato (o vínculo da missão pela história − antepassados) passa a verdade, isto é, uma premissa de acordo admitida entre os estadunidenses (o vínculo da missão como comprometimento histórico por escolha − vontade divina).

A partir dessa observação, constata-se também o emprego da técnica dos argumentos de transitividade que empreende a seguinte relação:

missão: fato histórico − liberdade // Deus // liberdade − missão: chamado histórico A B ↔ B C

No esquema, a transitividade da relação entre as afirmações é estabelecida conforme apresentado a seguir: a missão − um feito dos antepassados [Pilgrim Fathers] − é um fato pertinente à história dos EUA, originário fundamentalmente por busca de liberdade. Considerando que a liberdade é um presente de Deus e, ainda, que os EUA foram criados pela missão porque são abençoados, tem-se como conclusão que os EUA, servos da liberdade, foram chamados para levar a liberdade ao mundo, pois adquiriram essa missão, por comprometimento histórico, avalizado por Deus, o qual lhes atribuiu um lugar especial no mundo.

É possível ainda analisar o esquema anterior sob a perspectiva dos pontos de captura. Vejamos:

(Cp) (Cs) (Cpc) (Cpc) (Cp) (Cp) missão: fato histórico - liberdade // Deus // liberdade – missão: chamado histórico

Nesse caso, um ponto de captura primário (Cp) reforçado por um secundário (Cs) une- se na transferência para agregar valor a um outro primário central (Cpc), isto é, o ponto-chave do discurso de Bush: a liberdade − um ponto que retornará à discussão mais adiante −, que está igualmente ligada, desta vez por dois pontos de captura primários.423