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3.2 A NOVA RETÓRICA DE PERELMAN

3.2.6 O arquétipo de Jung

Jung entendia que existiam duas camadas distintas e inter-relacionadas de inconsciente390, a primeira, mais superficial, seria o inconsciente individual, um conceito já exaustivamente discutido e bem acolhido pelos teóricos da psicologia, até porque parte do mesmo princípio pertence à base teórica desenvolvida por Freud, a qual compreendia que o inconsciente seria de natureza exclusivamente pessoal: 391

Eu defino o inconsciente como a totalidade de todos os fenômenos psíquicos em que falta a qualidade da consciência. Podemos classificar adequadamente os conteúdos psíquicos como subliminares, na suposição de que todo conteúdo deve possuir um certo valor energético que o capacita a se tornar consciente. Quanto mais baixo é o valor de um conteúdo consciente, tanto

388 PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, p. 35. 389 Ibid., p. 37. 390

Cf. JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 15. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 9/1)

391

Entretanto, Jung reconhecia que Freud havia modificado seu ponto de vista quanto ao exposto e, além disso, conseguia identificar certa analogia entre o conceito de inconsciente de Freud com seu pensamento de inconsciente coletivo. Cf. Ibid., loc. cit. Tal analogia entre os dois teóricos pode ser observada em Freud quando fala de ‘resíduos arcaicos’ Cf. FREUD, S. O ego e o id e outros trabalhos. 2. ed. Rio de janeiro: Imago, 1987. p. 53. (Edição Standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 19)

mais facilmente ele desaparece sob o limiar. Daqui se segue que o inconsciente é o receptáculo de todas as lembranças perdidas e de todos aqueles conteúdos que ainda são muito débeis para se tornarem consciente. Estes conteúdos são produzidos pela atividade associativa inconsciente que dá origem também aos sonhos. Além desses conteúdos, devemos considerar também todas aquelas repressões mais ou menos intencionais de pensamentos e impressões incômodas. À soma de todos estes conteúdos dou o nome de inconsciente pessoal392

Porém, Jung também notou que no inconsciente havia propriedades que não eram adquiridas individualmente, mas herdadas, tal como os instintos e os impulsos que nos fazem agir, ou seja, executar uma ação por uma necessidade, não por motivação consciente. Trata-se de uma camada mais profunda da psique, a qual chamou de inconsciente coletivo justamente pelo fato de seus conteúdos serem universais393, como consta a seguir:

[...] contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ [com certa ressalva] os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo.394

Ou ainda:

[...] no inconsciente encontramos também qualidades que não foram adquiridas individualmente mas são herdadas, ou seja, os instintos enquanto impulsos destinados a produzir ações que resultam de uma necessidade interior, sem uma motivação consciente. Devemos incluir também as formas a priori, inatas, de intuição, quais sejam os arquétipos da percepção e da apreensão que são determinantes necessárias e a priori de todos os processos psíquicos. Da mesma maneira como os instintos impelem o homem a adotar uma forma de existência especificamente humana, assim também os arquétipos forçam a percepção e a intuição a assumirem determinados padrões especificamente humanos. Os instintos e os arquétipos formam conjuntamente o inconsciente coletivo. Chamo-o de ‘coletivo’, porque, ao contrário do inconsciente acima definido [individual], não é constituído de conteúdos individuais, isto é, mais ou menos únicos, mas de conteúdos universais e uniformes onde quer que ocorram. O instinto é essencialmente um fenômeno da natureza coletiva, isto é, universal e uniforme, que nada tem a ver com a individualidade do ser humano. Os arquétipos têm esta mesma qualidade em comum com os instintos, isto é, são também fenômenos coletivos395

392

JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 69-70. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 8/2)

393

Cf. JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 355. 394

JUNG, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 15. 395

É nessa camada mais profunda que se encontram os arquétipos, uma noção, diga-se de passagem, nada nova, posto que já havia correlatos dessa idéia encontrados na filosofia396, ao tratar de questões relativas ao que seria universal, por exemplo, na teoria platônica das idéias397 ou aristotélica das formas398 e, mais tarde, “bebendo” em Platão, aparece Santo Agostinho: “[...] não haurimos as imagens pelos sentidos, mas que sem imagens vemos no nosso interior tais como são em si mesmas [...]”399.

E, mais tarde, Kant inaugura a revolução copérnica na filosofia ao propor uma inversão da ordem dos preceitos filosóficos válidos até então, porquanto sugere uma melhor proposta à metafísica: “admitindo que os objectos [sic] se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objectos, que se estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados”400. Nesse sentido, sobre a intuição dos objetos, Kant considera que, caso a intuição “[...] tivesse de se guiar pela natureza dos objectos, não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se pelo contrário, o objeto (enquanto objecto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade.”401

Sob essa condição, a proposta kantiana postulava que, para além do saber extraído da experiência (a posteriori), havia antes um saber díspar, de outra ordem (a priori), qual precedia a própria experiência e, por esse motivo, não poderia um objeto ser dado por ela. Daí conclui-se que o que deve ser investigado é o próprio sujeito, puro (investigação transcendental), a priori, anterior a toda experiência, afinal é o sujeito, a estrutura do sujeito, que torna possível a experiência.

Então, o que Kant nos alvitra? Simples, que a estrutura da razão é, a priori, universal, a mesma para todos os seres humanos, ou seja, não depende da experiência para existir, pois é anterior a ela. É aqui, neste ponto, que reside a questão do hiato mencionada, em que uma ponte sobre o paradoxo do auditório universal de Perelman pode ser construída com cimento junguiano. Considerando que a idéia do auditório universal perelmeniana é fundamentalmente

396

Pensadores de outras áreas também expuseram idéias análogas, tais como Adolf Bastian, que fala de “idéias primordiais”, Durkheim, Hubert e Mauss que discorrem sobre “categorias” próprias da fantasia, e ainda Usener ao se referir à “a pré-formação inconsciente na figura de um pensamento inconsciente”. Cf. Id., Os arquétipos e

o inconsciente coletivo, p. 90.

397

A teoria do inatismo platônico pode ser já encontrada em Mênon e, posteriormente, na teoria da reminiscência na obra A República, respectivamente. Cf. PLATÃO. Diálogos: Mênon, República, Fedro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. passim.

398

Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 218. (Coleção Os Pensadores) 399

AGOSTINHO, S. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 270-71. (Coleção Os Pensadores) 400

KANT, I. Crítica da razão pura. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 20. 401

um ideal construído pelo orador a partir das características comuns a todos os seres racionais, cujos pilares estão erigidos sobre a base das idéias kantianas da estrutura universal da razão, percebemos então que existe justamente aí algo do conhecimento em si que é inacessível à razão, sendo que o indivíduo, ao perceber o mundo exterior, modela-o conforme matrizes ou categorias herdadas; correlativo a isso, Jung − quem também “bebeu em águas” kantianas −, à luz da psicologia, chamou de arquétipo. É preciso esclarecer que não se tratam de idéias inatas, mas de uma predisposição herdada. Vejamos a seguir um comentário de Jung que sana uma confusão comum e ainda revela uma correspondência de Kant com a proposta ao estudo psicológico:

É um grande equívoco supor que a alma do recém-nascido seja tabula rasa, como se não houvesse nada dentro dela. Na medida em que a criança vem ao mundo com o cérebro diferenciado, predeterminado pela hereditariedade e portanto individualizado, ela responde aos estímulos sensoriais externos, não com quaisquer predisposições, mas sim com predisposições específicas, que condicionam uma seletividade e organização da apercepção que lhe são próprias (individuais). Tais predisposições são comprovadamente instintos herdados e pré-formações. Estas últimas são as condições apriorísticas e formais da apercepção, baseadas nos instintos. Sua presença imprime no mundo da criança e do sonhador o timbre antropomórfico. Trata-se dos arquétipos que determinam os rumos da atividade da fantasia, produzindo desse modo nas imagens fantásticas dos sonhos infantis, bem como nos delírios esquizofrênicos, surpreendentes paralelos mitológicos, como os que também encontramos de forma algo atenuada nas pessoas normais e neuróticas. Não se trata portanto de idéias herdadas, mas de suas possibilidades. Não se trata também de heranças individuais, mas gerais, como se pode verificar pela ocorrência universal dos arquétipos.402

Os arquétipos, portanto, são elementos estruturais, que norteiam a psique, encontrados no inconsciente coletivo. Servindo-nos da citação anterior, poderíamos fazer uma analogia com uma semente que carrega em si a potencialidade da árvore, ou, no caso, com um bebê, que nasce com um potencial psíquico com predisposições naturais e próprias dos seres humanos.

Trata-se de prontidões psíquicas, que, ao longo do desenvolvimento humano, serão ativadas, a cada determinado caso, impelindo o indivíduo a um desígnio específico. Assim, toda criança passa pelo processo da construção e estruturação do ego, que requer certa autonomia e desprendimento da identificação materna que é sua primeira referência apresentada; para tanto, precisará recorrer, por exemplo, a elementos de agressividade, impulsividade e ímpeto. Dependerá do núcleo familiar e cultural para que esse processo

402

consiga se desenvolver plenamente ou ser estancado. Derivam daí as possibilidades ímpares da personalidade de cada indivíduo que partiu de um mesmo lugar comum. No entanto, a despeito da especificidade competente a cada particularidade, o que subjaz é um processo dinâmico emocional pertinente a todos.

Conceitualmente, Neumann coloca que os arquétipos, também chamados de imagens primordiais, são “[...] as formas pictórias dos instintos, uma vez que o inconsciente se revela à mente inconsciente em imagens que, tal como nos sonhos e fantasias, dão início ao processo de reação e assimilação conscientes.”403 Tais imagens inconscientes foram, por exemplo, expressas nos mitos e nos contos de fada.

Contudo, ainda é possível traçar um paralelo ao conceito de arquétipo sobre outro correlato teórico, desta vez discutido no campo da sociologia: o conceito de religião civil. A correlação estabelece-se pelo aspecto de que ambos são fenômenos subjetivos que se inter- relacionam atingindo áreas simbólicas de grande significado a todos os cidadãos estadunidenses.