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A RTICULAÇÃO COMERCIAL : A FRONTEIRA ENTRE A ABUNDÂNCIA E A PENÚRIA

O bairro rural é um tipo de povoamento que está subordinado a uma povoação. Isso significa que o agrupamento caboclo, para se manter como tal, articula-se com a sociedade mais ampla (urbano-industrial) (REDFIELD, 1971; FOSTER, 1971 apud DIEGUES, 1994)76. Essa articulação se dá à medida que o sitiante consome bens que

não produz, devendo ir buscá-los na cidade – o que lhe obriga a vender mercadorias. Falaremos então sobre esta articulação, através, especificamente, do processo de comercialização do arroz.

As sacas deste grão que saíam dos bairros rurais eram transportadas até a cidade com muita dificuldade. Quando o bairro não era servido por rios navegáveis, o arroz era levado por tropas de burros77. Assim acontecia no Despraiado, por exemplo. Mas,

para a maioria dos bairros, o meio fluvial era a melhor forma de escoamento, sendo a canoa o veículo utilizado. Quando o rio era estreito demais, tinham que empurrá-la com o “gancho”, espécie de vara, que ajudava a tirar o mato da superfície da água. Isso exigia grande habilidade, pois a canoa ia e voltava carregada. Havia vezes que um tronco submerso surpreendia o canoeiro, fazendo com que a carga se perdesse. Somente quando o rio se alargava ou quando chegavam ao rio Ribeira era possível remar. Não é preciso dizer que, conforme a localidade, a ida até a cidade de Iguape significava uma verdadeira viagem, pressupondo grande esforço físico, desconforto e tempo – podia levar até 10 horas.

Tão importante quanto o Porto de Iguape, foi o Porto do Ribeira (porto fluvial), sobretudo no século XX. Este porto representava o centro de trocas regionais; era a

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REDFIELD, R. (1971). The social organization of tradition. In: POTTER, J. et al. Peasant societies. Boston, Little Brown; FOSTER, G. (1963). What is folk culture. In: American Anthropologist, New York, v. 55.

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Essas tropas eram formadas pelo conjunto de animais da vizinhança, ou seja, cada família emprestava o animal que tinha para constituí-la, como acontecia entre os agrupamentos da Juréia e Una do Prelado. Já no Despraiado, ouvimos falar da existência do serviço de tropeiros, pago pelo agricultor. Neste bairro, o contato por via terrestre se estabelecia com o núcleo de Pedro de Toledo, muitíssimo mais perto que Iguape. No entanto, se dirigiam à sede municipal por meio de canoas para fazer compras e usufruir os serviços de saúde, cartório etc.

via de escoamento da produção e abastecimento dos sitiantes.

De lá, as sacas do grão seguiam para os armazéns da cidade onde eram primeiramente negociadas. Era também lá que o sitiante se abastecia de querosene, sal, pólvora, farinha de trigo, velas, fósforo, sacarias, às vezes café, um pouquinho de açúcar e alguma regalia, como uma carne seca bovina para ser consumida assim que voltasse para a roça. Essas aquisições eram feitas algumas vezes no ano, variando conforme as dificuldades enfrentadas para se chegar a Iguape. Raramente ocorria a troca monetária, pois o sitiante mantinha uma conta no entreposto. Assim, a cada ida ao comércio acumulava uma dívida, quitada anualmente quando colhia o arroz. O dono do armazém, por sua vez, concentrava a produção em suas mãos, e isto lhe permitia apresentar-se fora do mercado local e regional em condições de competir e comercializar. Esta troca feita no armazém viabilizava tanto a reprodução da organização cabocla, mesmo que precariamente, como a reprodução do capital mercantil78. Vejamos.

Sendo a produção do sitiante apropriada indiretamente pelo mercado urbano de São Paulo, por preço inferior ao seu valor real, contribuía para a acumulação de capital, em altas taxas, e para a manutenção dos baixos preços dos fatores de produção de uma industrialização que se ensaiava – o preço do arroz, no caso, influía diretamente no custo de manutenção e reprodução da força de trabalho urbana. Assim havia transferência de valor produzido pelo sitiante aos setores capitalistas.

Do ponto de vista do sitiante, a relação com o mercado também é ambígua. Se por um lado produzem bens de troca, por outro, permanecem organizados para produzir a subsistência. Se por um lado, subordinam-se ao mercado e à exploração, por outro, preservam sua lógica interna e sua dinâmica própria. Nesta articulação, o mundo do sitiante e o da sociedade capitalista estão, ao mesmo tempo, solidários e em oposição.

Devemos lembrar que o arroz, para ser comercializado, precisava ser pilado. Passar

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“O gênero de vida do camponês se forma em função da cidade, com a qual aparece em equilíbrio de complementaridade, de tal ordem que a cidade necessita muito mais dele do que ele dela” (DIEGUES,

pelo engenho significava para o sitiante passar por mais um explorador. Muitas vezes, o dono do engenho era o mesmo do armazém. Compravam arroz em casca de pequenos sitiantes para beneficiar e vender; auferindo com isto bons lucros. No início do século, os engenhos movidos à água e a vapor (os mais eficientes), localizados na cidade e suas proximidades, eram de homens influentes: políticos, capitães, tenentes e coronéis. Em 1923, até o Conde Francisco Matarazzo abriu filial em Iguape, onde possuía grande engenho de beneficiar arroz – cujas ruínas ainda permanecem na cidade – além de armazém de variados produtos (FORTES, 2000, p.184).

No início do século, ainda persistiam algumas grandes fazendas produtoras de arroz, baseadas na mão-de-obra assalariada. É provável que estes fazendeiros, comumente também proprietários de engenhos, tenha se concentrado cada vez mais nas atividades de beneficiamento e comercialização do arroz meio pelo qual auferiam maiores lucros que na lavoura em si ao apropriarem-se, por baixo preço, da produção do sitiante.

Enfim, foi da exploração do caboclo que os setores de beneficiamento e de comércio se sustentaram imediatamente após a crise do século XIX. Tanto que, por incrível que pareça, a produção de arroz no século XX foi tão grande, ou maior que a dos tempos áureos, embora as vantagens comerciais já não fossem mais as mesmas, gerando lucros menores (por sua vez, não apropriados pela classe produtora).

TABELA 4

Produção do arroz do século XIX até a primeira metade do século XX, em Iguape.

Ano ou Período Quantidade (sacas de 60kg) Quantidade (t) 1836 30.000 (1.800) 1845 48.670 (2.920,2) média do período entre 1850/1880 50.000 (3.000) 1920 (157.350) 9.441 1939 (89.116,6) 5.347 1950 (129.850) 7.791

Fonte: Século XIX – Valentin (2003, p.4-6, no prelo)

Século XX – Censos Agropecuários.

Nota: Estamos desconsiderando aqui as perdas de área municipal durante o período em questão, as quais, se corrigidas, aumentariam a desproporção da produção do século XIX e XX, em favor deste último. Por outro lado, deve-se considerar que a coleta e o processamento de dados estatísticos foram sendo aperfeiçoados no decorrer do tempo, o que pode vir a desfavorecer as estatísticas do século XIX.

Os valores entre parêntese são aqueles cuja unidade foi convertida pela autora a partir da informação da fonte original.

Na década de 30, as dificuldades que apareceram para os setores de beneficiamento e comercialização foram logo estendidas aos sitiantes em forma de juros abusivos. Assim, tentavam assegurar seus rendimentos à custa do endividamento e empobrecimento do agricultor, padecendo ambos da mesma ruína. Isto porque nesta década outros pólos produtores do mesmo cereal já praticavam técnicas de plantio mais intensivas, superando a produtividade de Iguape, que ainda por cima, era bastante irregular. Além disso, estes centros contavam com modernos engenhos de beneficiar, que além de mais rápidos, não machucavam tanto o grão – o que garantia sua melhor qualidade e preço de mercado. Desta feita, a comercialização do arroz encontrava-se em estado de avançado declínio.

armazém, seja porque pagavam cada vez menos pelo seu produto, seja também, porque havia anos em que a produção não saia como planejada79. Assim, mesmo no

“tempo da fartura e da abundância” existiam dificuldades, dívidas e empobrecimento. Como disse R. Queiroz (1983, p.133), para os sitiantes, “a fronteira entre a abundância e a penúria é tênue”. Assim com é tênue a fronteira entre sua autonomia e sua dependência (exploração).

Além do recrudescimento da expropriação do produto de seu trabalho, o lavrador passou a assistir o próprio estrangulamento de seu canal de comercialização, pois engenhos e armazéns foram fechando suas portas e se tornando restritos. Em 1925, segundo Egas80 (apud DIEGUES, 1973, p.30) existiam em Iguape dezoito engenhos de

arroz, e em 1940, segundo levantamentos de Fortes (2000), apenas dois, um deles da Colônia Japonesa Katsura, no Jipovura. Em 1959, Petrone (1966, p.171) fez a seguinte observação: “O conhecido ‘arroz de Iguape’ parece ser apenas uma lembrança, dado que o produto atualmente é obtido a partir de sementes selecionadas, de variedades diversas e, freqüentemente, de má qualidade. Por outro lado, um papel de importância bastante grande deve ser atribuído aos proprietários de máquinas para o beneficiamento do produto, responsáveis em grande medida pela distribuição das sementes e, decorrente de seus interêsses, pela oscilação da produção.”. Apesar da dificuldade, o caboclo encontrou formas de se ajustar a tal situação.

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