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S ITIANTES TRADICIONAIS DE I GUAPE : SEUS TIPOS E A NATUREZA LOCAL

Já que falamos da relação entre as “possibilidades do meio” e o desenvolvimento técnico agrícola, cabe delinear os principais “tipos” de sitiante do município de Iguape. Embora apresentassem organização econômica funcionalmente semelhante, suas práticas produtivas diferiam, ao que parece, conforme as limitações do meio e dos recursos de que dispunham. Para esta breve apresentação nos baseamos nos relatos de Petrone (1961) que, de certa forma, coincidem como os de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1969), citados em nota na Introdução deste trabalho.

O capuava é um deles. Na descrição de Petrone (1961, p.54), este tipo “aparece ligado às zonas de matas, especialmente nas áreas que ficaram à margem da

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“O fogo faz a maior parte do serviço; a remoção de raízes (que consome muito tempo quando se trata de estabelecer campos permanentes) não é necessária. [...] Muito mais tempo é necessário para carpir com enxada um hectare do que para limpar, ainda que superficialmente, com machado e fogo a mesma área” (BOSERUP, 1987, p.31).

circulação fluvial”. Por isso, associa o capuava ao desbravador, um “tipo que se definiu lentamente, em função do processo de povoamento baseado na penetração e posse pela utilização, de zonas de mata”. É aquele que se embrenhou interior adentro, e cada vez mais, na busca de garantir e manter seu meio de vida – a agricultura de subsistência, atividades extrativas e um limitado comércio de excedentes – cuja base aparece com nitidez no texto de Petrone: o povoamento rarefeito em áreas de florestas. O capuava é o tipo mais isolado e autônomo dos que o autor identifica.

Suas roças eram diminutas, ocupando áreas muitas vezes inferiores a um hectare. A diversidade de cultivos que nelas se misturavam, entretanto, era grande, caracterizando “verdadeiras culturas promíscuas”54 (ibidem, p.56).

Como o período vivenciado pelo autor na época de sua pesquisa já apresentava os elementos que indicavam a proximidade de mudanças na situação em análise (legalização fundiária, abertura de estradas, chegada de novos ocupantes, modernização da agricultura etc.), fez a projeção de que o capuava tenderia ao rápido desaparecimento. Para Petrone (ibidem, p.54), o capuava na década de 60 era um tipo residual, tendo sido mais expressivo vinte anos antes.

Outro tipo descrito pelo autor é o “praiano”, mais conhecido atualmente como caiçara. Chamou a atenção do autor o fato de praticarem a agricultura em clareiras aberta no jundu, vegetação típica da orla e do início da sucessão ecológica. Como as condições de solo deste ambiente são mais fracas, a itinerância era ainda mais fugaz.

Destaca a constância da mandioca na lavoura caiçara e da farinha que fornece em sua alimentação55. Além do significado cultural da mandioca – uma vez que representa

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Veja como este sitiante, ex-morador da parte mais interiorana da Juréia, descreveu a roça que costumava fazer: “A mandioca plantava no espaço normal e aí, em volta, plantava a cana, a bananeira. No meio da roça plantava o cará, a batata doce, o milho... com grandes espaços também. A abóbora, a melancia... tudo numa roça só. [...]a única coisa que a gente não plantava assim [...] é o feijão. Se plantar ele junto com outra planta, ele se enrola e na hora da colheita estoura tudo e fica metade lá” (depoimento, 2003).

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A mandioca era quase toda transformada em farinha, num trabalhoso processo artesanal no qual o sitiante permanecia longas horas no “tráfico”, como é chamada a “casa de farinha” usada coletivamente no bairro. Ainda nos dias hoje tive a oportunidade de acompanhar todo esse processo,

clara herança indígena – outra característica também nos chama a atenção: um hectare de mandioca alimenta mais que um hectare de qualquer cereal (cf. ABRAMOVAY, 1981, p.21-22 e BOSERUP, 1987, p.34). Isto parece estar de acordo com as limitações do ambiente explorado pelo caiçara – embora este também tivesse acesso à Mata Atlântica. Na verdade, Petrone baseia sua descrição nos habitantes da Ilha Comprida e de Cananéia. É possível que nestas localidades o caiçara pouco tenha se dedicado ao cultivo do arroz, encontrando na mandioca a base de sua alimentação e na pesca a base de sua pequena produção mercantil. Mas na região da Juréia (Una do Prelado), a qual o pesquisador não teve a oportunidade de conhecer, seguramente encontraria muitas roças do cereal.

Segundo Mourão (1971, p.88), na região de Cananéia o calendário agrícola não favorecia o cultivo do arroz, pois a época de plantio (outubro a dezembro) coincidia com a pesca do tempo quente e a colheita (março a maio), com o início da pesca da tainha.

O que importa é que na comparação com o capuava, certamente, a principal diferença está na íntima relação que o caiçara estabeleceu com o estuário, tendo então desenvolvido um calendário próprio de atividades, assim como estratégias de pesca, uso e manejo dos recursos naturais característicos da orla marítima.

Por fim, Petrone define o ribeirinho, que se caracteriza por ocupar áreas contíguas ou próximas às margens ao longo do baixo curso do rio Ribeira de Iguape e seus principais afluentes. “Em maior ou menor escala, tais populações [ribeirinhas] dependem do rio para sua subsistência, locomoção, etc.”, diz Maria Isaura Pereira de Queiroz (1969, p.38). Notamos, de fato, que existem diferenças na utilização do rio. Acreditamos que as povoações às margens do Peroupava, Una da Aldeia, Rio Pequeno, Una do Prelado, Momuna, entre tantos outros, aproveitaram os rios principalmente para o transporte e circulação56. Já o ribeirinho instalado às margens

que pouco se modernizou. A importância do cultivo da mandioca e da produção de farinha, seja para venda, seja para a subsistência, se estende até hoje.

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O município de Iguape é dotado de muitos rios, além do Ribeira. A bem dizer, toda a região é dotada de um sistema hidrográfico sem paralelo no Estado, comenta Almeida (1945, p.103). “Por canoas, são todos elles navegáveis até certos trechos, de maneira que a natureza dotou esta zona com

do Ribeira é tipicamente o pescador-lavrador. Estando próximo de rio das proporções do Ribeira – e ainda de sua porção mais influenciada pela produtividade do estuário – seu modo de vida é marcado pela pesca fluvial. Suas atividades de pesca e lavoura voltam-se tanto para a subsistência quanto para a troca, havendo variações na intensidade de uma ou da outra.

Dedicou-se especificamente à roça de arroz, cuja produção também se destinou à troca. Petrone, contudo, descreve o cultivo do arroz do ribeirinho como intensivo, sendo a itinerância reservada apenas à roça de subsistência. Pereira de Queiroz nos deixa alguns indícios a esse respeito. Menciona a itinerância entre os capuavas, dizendo inclusive que suas casas eram mais rústicas que a dos ribeirinhos justamente porque sua existência era marcada pela mudança de residência, dada às características de sua agricultura. O que talvez justifique o sedentarismo do cultivo do arroz, como o próprio Petrone (ibidem, p.59) observa, é o fato de serem aproveitadas para a fertilização periódica da área de lavoura, pequenas elevações do nível do rio que acontecem diariamente durante as horas de cheia da maré.

Encontramos nos escritos de Waldemiro Fortes, publicados no periódico Tribuna de Iguape57 por volta do ano de 1924, um trecho de citação que, embora não contenha a

data, o nome da revista agrícola ou do autor citado, nos dá elementos não só para julgar a importância do cultivo deste cereal entre os sitiantes de Iguape, como para relativizar a importância desta dúvida sobre a mobilidade da lavoura ribeirinha. Diz o autor anônimo:

Concordo que o arroz plantado em terreno úmido produz melhor que em terreno seco, mas para que o mesmo produza bem não é absolutamente necessário que seja plantado em terreno banhado.

Em Iguape, que é uma zona privilegiada a esse cereal, bastam as chuvas para fornecer a umidade necessária ao seu crescimento. Posso afirmar sem receio de contestação que 90% da plantação de arroz em Iguape é feita em terrenos elevados e secos [grifo nosso]. É verdade que os lavradores, afim de aproveitar mais a umidade fornecida pelas chuvas, procuram as várzeas; e os que não

innumeras estradas que andam, como muito bem podem-se denominar os rios navegáveis” (O’LEARY,

s/d, p.9).

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Alguns artigos de Waldemiro Fortes publicados no referido periódico foram organizados por Roberto Fortes numa coletânea “Iguape antigo: escritos jornalísticos” (no prelo, s/d).

possuem plantam nas ladeiras de morros onde o arroz produz com resultado satisfatório (FORTES, s/d).

Enfim, transcrevemos parte de um parágrafo de Petrone que nos deixa visualizar as principais características do trabalho do ribeirinho:

Como cultura de vargeados, o arroz dispõe-se, no caso em questão, entre o rio, de um lado, e a mata ou “jundu” de outro lado. Aquêle fornece ao “ribeirinho” possibilidades de pesca, o que acontece porque o primitivismo da cultura do arroz não prende a atenção do lavrador todo o tempo. A mata ou o “jundu” constituem as áreas contíguas onde o “ribeirinho” pratica uma “roça” itinerante de subsistência” (PETRONE, 1961, p.59).

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