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Pelo menos durante a primeira metade do século XX, prevaleceu no cenário agrícola de Iguape um sistema de roça rudimentar, o qual ocupava pequenas áreas em meio à mata onde era feita, de forma cíclica, a sua derrubada, seguida pelo uso do fogo e plantio sobre as cinzas. Na literatura científica, esse sistema é denominado de muitas formas: roça de coivara, “derrubada e queima”, agricultura primitiva, rudimentar, extensiva, camponesa38 etc. Entre os sitiantes, ouvimos simplesmente: roçada.

Em um capítulo de sua tese de doutoramento sobre a Baixada do Ribeira, Pasquale Petrone tenta sistematizar as diferentes formas de produção agrícola vigentes na região. Logo destaca a itinerância como aspecto marcante entre quase todos os tipos que caracterizou. Transcrevemos o parágrafo no qual Petrone fala sobre este caráter agrícola da Baixada, citando um autor que publicou na década de 50:

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Mais adiante apresentamos dados sobre a queda efetiva da população municipal neste período, haja vista a drenagem do contingente de escravos, como a própria emigração das famílias.

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A agricultura camponesa possui correspondentes espalhados em todo o mundo, recebendo em cada país ou região uma designação específica. Para citar algumas, temos: a milpa na América Central, ladang na Indonésia, shifting cultivation entre os ingleses, ray no Vietnã, kaingin nas Filipinas, cougan na África negra (MARCÍLIO, 2000, p.127). A característica comum entre elas é a

Um traço relativamente comum em todo o conjunto da Baixada é um certo itinerantismo da agricultura. Silveira[39], profundo conhecedor da região, assim sintetizou o fato: ‘A agricultura é na maioria da região itinerante. Nas colinas e terraços, nas matas das restingas e dunas antigas e mesmo no ‘jundu’ são abertas clareiras – no clássico sistema de roçada – onde é plantado o milho, mandioca (‘rama’ na região), batata-doce, etc., por 2 ou 3 anos, conforme a resistência da terra à exploração e também a influência do hábito de mudar, muito enraizado no regional. Então desloca a exploração para outra clareira aberta. Nas terras abandonadas – ‘tiguera’ – crescerá ou não uma capoeira. Caso a capoeira se forme, a exploração poderá retomar mais tarde (1961, p.54) .

A última frase desta síntese deixa implícita a importância da ocorrência da cobertura vegetal para que a roça seja feita, mobilizando e direcionando a rotação de terras. É interessante como o autor, apesar de observar que a itinerância está relacionada à busca da fertilidade e à otimização da exploração da terra, ainda assim atribui o fato a um “habito de mudar”. Quase que transparece em suas linhas um “estranho hábito de mudar”. No fundo, ao caracterizar o nomadismo agrícola como hábito, o autor demonstra que não encontra, ele mesmo, uma justificativa racional satisfatória para o fato e lhe atribui um caráter que supera qualquer nexo, aceitando-o como uma tradição cultural.

Neste capítulo veremos que o sistema itinerante resulta de um conjunto de fatores que, mesmo não sendo todos eles da consciência do homem que o pratica, lhe confere uma lógica de existência. Em diversas partes do mundo e em diferentes épocas foram descritos modelos análogos de agricultura, o que nos leva a crer nesta premissa. É necessário, todavia, conhecer mais detalhes de seu funcionamento.

A abertura da clareira segue, geralmente, algumas etapas. Primeiro, é feita a roçada da vegetação arbustiva do sub-bosque40 – a “bosqueada" – e em seguida, a derrubada

das árvores maiores com o machado (possivelmente, algumas serão selecionadas para determinados usos como o da construção, fabricação de instrumentos de trabalho, canoas, prensas do tipo parafuso, e mesmo para a venda da madeira – sobrando, ainda assim, algumas no terreno). Os galhos grandes demais deverão ser

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Silveira, João Dias da, (1950). Baixadas litorâneas quentes e úmidas. Tese de concurso à cadeira de Geografia Física da FFLCH-USP, São Paulo.

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cortados e distribuídos pela área de modo que, passado tempo suficiente para que a vegetação seque – em torno de 10 a 20 dias – seja feita a queimada de seus restos. Este é outro aspecto fundamental da agricultura tradicional, o uso do fogo.

“O fogo foi seu principal auxiliar técnico e as grandes superfícies com revestimento em matas constituíram extensas reservas de solos a sua disposição”, disse Petrone (1961, p.55). O autor é preciso ao imputar um caráter técnico pois, de fato, o fogo vem a cumprir mais de uma função na atividade produtiva. Além de “limpar” o terreno é também responsável por fertilizá-lo. A biomassa da floresta é uma reserva de nutrientes que, ao ser convertida em cinza (mineralizada) e incorporada ao solo pela água da chuva, torna-se imediatamente disponível à absorção das plantas. Não obstante, essa fertilidade é efêmera pois, ao contrário da decomposição biológica da matéria orgânica que disponibiliza gradualmente os nutrientes para as plantas, a queimada o faz de uma só vez; logo, nem o solo – e tampouco a nova cultura – retém (ou assimila) todos os nutrientes, que são em parte lixiviados.

A primeira cultura temporária após a coivara41 (corte e queima da vegetação) enraíza-

se em solo particularmente fértil e proporciona uma colheita abundante. No início do século XX em Iguape, a roça de arroz era a primeira a ocupar a terra recém desbravada. Além de ser esta uma cultura exigente em nutrientes, sua produção tinha dupla função: reservava-se tanto para a subsistência quanto para a troca – uma roça diversificada, localizada próxima a casa, onde também cultivavam espécies frutíferas e criavam pequenos animais, garantindo o complemento da subsistência.

No ano seguinte, uma cultura secundária poderia ocupar a área e aproveitar-se da fertilidade residual do solo42. No terceiro ano, o terreno possivelmente seria

abandonado43 – antes, porém, poderia ser enriquecido com cultivos perenes como

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Já nos últimos meses da pesquisa fui alertada por um caiçara que “coivara” significa mata grossa, primária. E que o termo verbal “coivarear” significa retirar da área de roça a lenha que restou sem queimar. Era preciso “coivarear” quando para cultivo de feijão, mandioca... culturas cuja colheita é feita com a extração da planta da terra, o que seria dificultado se sob a galhada.

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Geralmente, observa R. Ribeiro (s/d, texto não publicado), inicia-se com culturas de ciclo curto, como o arroz, seguindo as de ciclo médio, como é o caso da mandioca.

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Não apenas a queda na fertilidade, mas o aumento da infestação de ervas daninhas também impelia o lavrador a mudar a roça de lugar.

frutíferas, que além de gerarem alimentos favoreceriam a regeneração florestal. Este ciclo de rotação se fechará quando a primeira área, após um período de pousio, estiver em condições de uso agrícola outra vez44.

O efeito regenerativo proporcionado pelo pousio não está condicionado apenas pelo tempo de descanso e sim pelo próprio tipo de solo e pelas demais características ecológicas. O tempo de pousio adequado será expresso pela altura das árvores e pela cobertura da folhagem (que significam sombreamento45 e biomassa).

É importante reforçar que a técnica agrícola itinerante está baseada na articulação entre pouca população e vasta área de floresta disponível. Conforme síntese elaborada por Diegues (1973, p.38) – para qual vale-se de diversas fontes – “a população do Litoral (Iguape e Cananéia), em fins do século XVIII, até meados do século XIX, apresentam taxas de crescimento elevadas e até acima da média da Província. A partir de 1850 o índice de crescimento começa a estacionar e até regredir quando se aproxima do século XX”. Isso reforça a tese de Boserup (1987) enquanto possibilidade de explicação da dinâmica agrícola que se desenvolveu em Iguape a partir do início do século XX. Veja os dados da tabela a seguir:

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No vocabulário regional criaram-se diversos termos para designar e qualificar diferentes tipos de mata, segundo o seu estágio de desenvolvimento, como por exemplo: tigüera, covajô, capoeirão, capoeira fina, entre outros. Esta classificação baseia-se em parâmetros complexos, como o próprio microclima do interior da mata, cujo reconhecimento parece acessível apenas por quem tem o conhecimento vivenciado na mata.

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O sombreamento é importante pois inibe o desenvolvimento e perenização de gramíneas e outras ervas daninhas que competem por luz e nutrientes com o que é cultivado.

TABELA 1

Evolução da população total e taxas de crescimento populacional do município de Iguape entre 1772 e 1905. 1772 1836 1850 1879 1905 População 1.926 9.396 1.5211 1.7128 1.5303 1772/1836 1838/50 1850/79 1879/1905 Taxas de cresc. (%) 387,8 61,9 12,6 -7,9 Fonte: Diegues (1973, p.38-39)

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