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PONDERAÇÕES SOBRE A AGRICULTURA ITINERANTE E A CONSERVAÇÃO FLORESTAL

O sistema de agricultura itinerante foi – e ainda é – freqüentemente descrito como nocivo à manutenção da vegetação florestal. O próprio trabalho de Petrone insiste reiteradas vezes na caracterização negativa desta prática como uma forma de uso predatório da terra – que se opõe à agricultura científica com o uso racional de adubos e técnicas adequadas de conservação do solo.

[...] o sistema de agricultura que praticam [os ‘posseiros’ e os ‘capuavas’] são grandemente responsáveis pela indiscriminada destruição do revestimento florestal (1966, p.246).

A atividade extrativa, não só aquela com objetivos industriais (estaleiros), mas também as de subsistência, completavam, em menor escala, o quadro de uma lenta humanização de paisagens com base na agricultura predatória (ibidem, p.80)

Relatos antigos sobre o Vale do Ribeira – como este que transcrevemos abaixo, datado do início do século XX – já demonstravam grande preocupação quanto à característica deletéria da agricultura praticada na região. O pesquisador Krug185 fez

algumas viagens pela zona do Ribeira, região de origem de seus pais. Por volta do ano de 1930, após quase uma década de sua última expedição, esteve pela região mais uma vez e constatou, para sua decepção, que:

[...] as magníficas mattas virgens, os bosques seculares, as selvas impenetráveis [às margens do rio Ribeira] foram derrubadas pelo animal racional, chamado

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Krug não é um nativo da região mas seguramente foi um grande admirador. No início do século XX fez algumas excursões pelo Rio Ribeira, publicou trabalhos e realizou conferências a fim de divulgar e contribuir para o conhecimento de – como ele mesmo disse – tão bela região, de tão grandes riquezas naturais, cuja população é tão simpática e hospitaleira. Assim escreveu o autor: “O meu interesse pela região é puramente patriótico: quero vêl-a (sic) desenvolver-se com a mesma rapidez e critério com que têm se desenvolvido outras regiões menos merecedoras” (KRUG, 1939,

homo sapiens, para serem substituídas por míseras roças, que absolutamente, não representam o valor daquillo que substituíam [...] (KRUG, 1939, p.5).

E então, seguia julgando e advertindo com veemência:

Esta destruição deve cessar, – motivo porque chamo a attenção dos nossos bem intencionados poderes públicos, especialmente do Conselho Florestal do Estado, afim de pôrem, definitivamente, um ponto final nesse vandalismo inqualificável!” (ibidem, p.5)

Este depoimento demonstra grande aversão à interferência humana na natureza – à semelhança dos preservacionistas de hoje – dando maior valor à mata intocada independentemente de qualquer necessidade humana implicada na ação de desmatamento. Mas gostaríamos de chamar a atenção neste momento para o fato de que tal interferência “negativa” sobre as florestas, necessariamente, tem um sujeito, ao qual também se vinculam características depreciativas das mais diversas ordens. Ou seja, o caráter predatório da roça itinerante remete à idéia de que quem a pratica – o caboclo, portanto – é sobretudo um agricultor pouco produtivo, desqualificado, indolente ou ainda, um anti-progressista, necessitando então, ser desenvolvido e capacitado. Os textos de Monteiro Lobato sobre o Jeca Tatu – símbolo nacional186

expressaram e, infelizmente, divulgaram esta visão, antes de tudo preconceituosa, sobre o caboclo e seu modo de vida. Vale a pena esta longa transcrição:

Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes. Jeca Tatu passava os dia de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto corria um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo. [...]

Todos que passavam por ali, murmuravam: – Que grandessíssimo preguiçoso! [...]

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“Jeca Tatuzinho” – também nome do personagem criado por Monteiro Lobato – foi lançado em 1924 e posteriormente adaptado para promoção dos produtos do laboratório “Fontoura Serpe & Cia”, em especial do “Biotônico”. É considerada a peça publicitária de maior sucesso na história da propaganda brasileira. Em 1982, inspirou a criação do Prêmio Jeca Tatu, instituído pela agência Castelo Branco e Associados em homenagem “à obra-prima da comunicação persuasiva de caráter educativo, plenamente enquadrada na missão social agregada ao marketing e à propaganda” (http://lobato.globo.com/html/jecatatuzinho.html, acessado em 9 de junho de 2003).

Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. [...]

As pessoas que viam aquilo, franziam o nariz.

– Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...

(LOBATO, 1924).

A despeito de todas as atividades que o próprio autor comenta, o caboclo, ainda assim, era um indolente. Antes de escrever a peça “Jeca Tatuzinho”, Monteiro Lobato escreveu Velha Praga, texto em que comenta, entre outros aspectos, as queimadas na região da Serra da Mantiqueira feitas por pequenos sitiantes caboclos, responsáveis então pela devastação de sua preciosa cobertura florestal.

A nossa montanha é vítima de uma parasita, um piolho da terra [...]. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do ‘Porrigo descalvans’, o parasita do couro cabeludo produtor da ‘pelada’, pois que onde ele assiste [reside] se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, núa e descalvada. Em quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das perobeiras milenarias [...] para em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade da vassourinha [...].

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi- nomade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira da penumbra das zonas fronteiriças (LOBATO, 1918, p.140-141).

Alguns campos da ciência, de recente desenvolvimento, como a etnoecologia, vêm tentando rebater tais concepções a respeito das práticas tradicionais de agricultura e seus sujeitos, através de evidências e argumentos científicos. Assim, em direção diametralmente oposta, autores187 como Gómez-Pompa (1990), Posey (1986) e Balée

(1988, 1989, 1993) apud Arruda (1997 in DIEGUES, org., 2000, p.284) argumentam que não só a maior parte das florestas que julgamos “virgens” já sofreram interferência do homem, como esta ação humana é produtora de biodiversidade. A derrubada da floresta, a introdução de espécies cultivadas, a rotação de terras, o

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POSEY, D. (1986). Manejo da floresta secundária, capoeiras, campos e cerrados (Kayapó), in: Ribeiro, B. (org.) Suma etnológica brasileira. Vol. 1, São Paulo: Finep-Vozes.; BALEÉ, W. (1993). Footprints of the Forest – Kaapor ethnobotany: the historical ecology of plants utilization by an Amazonian people. Nova ork: Columbia University Press.

manejo da capoeira... tudo isso deve ser entendido como formas de manejo, as quais podem ter conseqüências muito positivas sobre a conservação e diversificação de espécies vegetais e animais. Implícito em tal concepção, está a valorização dos povos tradicionais, cujo saber, cultura e modo de vida devem ser preservados e seus territórios defendidos.

[...] em muitos casos, as práticas de uso da terra do setor rural são responsáveis por manter e proteger a biodiversidade das nossas áreas nativas, e freqüentemente foram responsáveis pela diversidade genética que fortalece a maioria das variedades de alimentos cultivados (GÓMEZ-POMPA & KAUS, 1992

in DIEGUES org., 2000, p.132).

A composição atual da vegetação madura bem pode ser o legado das civilizações passadas, a herança dos campos cultivados e das florestas manejadas [...] (idem, p. 133).

A agricultura de derrubada e queima é parte integral dos ecossistemas das florestas tropicais há milênios188 (ibidem, p.135).

Mesmo sem nunca ter lido qualquer um dos autores citados acima, um caiçara do Rio Comprido (parte interiorana da E.E.J.I.), nos surpreendeu com seu comentário sobre o sistema de roça praticado por seus antepassados, deixando claro que, acima de tudo, o caboclo tinha uma experiência empírica e uma avaliação a respeito da mesma, para além de qualquer ciência:

Não sei se vocês conhecem a Juréia...mas prá quem não conhece, [...] o maciço da Juréia tem 305m de altitude, então a pessoa sobe lá em cima né, vê dali do Rio Verde até a Barra do Una... você olha é uma fita de mata verde. Então os caras falam, que nem prá mim teve uma pessoa : como é bonito preservar, isso aqui tá que nem quando Cabral chegou no Brasil, porque ninguém mexe. [...] Aí eu falei prá ele assim: o senhor tá completamente enganado, que dentro dessa área que o senhor tá vendo aqui, se for contar, não tem 5% de mata primária. Mas como assim? Claro, isso aí foi tudo roça de mandioca, roça de arroz, roça de milho, isso foi tudo roçado. E como que está assim? [...] Eu falei: você tá vendo isso aqui? É mata primária? Ele disse: é. Aí chamei ele – porque a gente tem que dá prova, né – [...] e falei: aqui era uma casa, tem até um esteio da casa e essa madeira [árvore] estava dentro da onde era a cozinha da casa –

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Em seguida, o autor complementa com o seguinte alerta: “Essa forma antiga de agricultura não deve ser confundida com as queimadas destrutivas, largamente realizadas por colonizadores recentes ou posseiros que têm pouca experiência das circunstâncias locais, ou como forma de garantir a posse da terra” (ibidem, p.135).

porque dá pra sabe189, né! (depoimento, ex-morador do Rio Comprido/Juréia, 2003).

Apesar desta polêmica e inconclusa questão – apenas ilustrada até agora – um fato concreto, identificado já na Introdução deste trabalho, lhe deu clara dimensão política: antes de se chegar a um entendimento sobre o caráter conservacionista ou predatório da agricultura tradicional de derrubada e queima – além de outros sistemas tradicionais de manejo de recursos naturais – sua prática foi indiretamente proibida no final da década de 80 no Estado de São Paulo, a partir da consolidação das políticas Nacional e Estadual de proteção dos recursos e paisagens naturais, cujos instrumentos legais impuseram drástica redução do período de pousio (ao proibir o desmatamento), bem como da disponibilidade de áreas agricultáveis.

No fundo, tal conjunto de leis expressa um entendimento do homem, da natureza e do que se projeta para cada um no futuro. Por isso, não foi sem conflitos tanto o momento de sua elaboração como de sua implementação. Como não demos espaço para comentar esta questão no capítulo anterior, vale a pena fazê-lo agora, mesmo que brevemente, para que possamos ampliar o entendimento do “evento da conservação ambiental” e suas conseqüências, na região do Vale do Ribeira.

A Legislação Ambiental: um juízo tácito sobre sociedade e a natureza

Como já nos referimos, a primeira metade da década de 80, marcada por grandes manifestações públicas contra a ditadura e pelas eleições diretas para presidente, propiciou o surgimento do debate sobre o tema da proteção ao patrimônio ambiental do país. O poder público se viu diante da necessidade de criar uma estrutura legal adequada, acompanhada por correspondente estrutura administrativa, para

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O depoente ainda explicou porque podia provar a antiga localização da casa: “aí tem o alicerce, porque as casas antigamente era feito...como hoje é o piso, eles faziam o quadro de pedra aí enchia com aquela terra de barro do morro pisado, então ele fica o resto da vida” (depoimento, ex-morador do Rio Comprido/Juréia, 2003).

implementar uma política de conservação ambiental de âmbito nacional190.

A definição do quadro de leis que regula o acesso aos recursos florestais da Mata Atlântica colocava em cena interesses divergentes ou mesmo antagônicos, gerando intenso debate entre empresários do setor madeireiro, agroindustrial e imobiliário, de um lado, e ambientalistas, professores e estudantes de Universidades e de institutos de pesquisa, de outro. Assim, durante as décadas de 80 e 90, os instrumentos legais e institucionais voltados para a conservação foram aos poucos ampliados e sofisticados –compondo hoje um complexo, embora insuficiente e inadequado, aparato – para responder às diversas demandas em conflito.

Entre as medidas e órgãos voltados à proteção da Mata Atlântica, estabelecidos pelo governo (federal e estadual), destaca-se o tombamento integral da Serra do Mar e dos remanescentes de Mata Atlântica em todo o Estado de São Paulo, em 1986, e a criação da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, da Fundação Florestal e do DEPRN, no mesmo ano. Foram instituídos o Decreto da Mata Atlântica (n. 750), em 1993, e o Plano de Sistema de Unidades de Conservação, em 1982 – o qual baseou a elaboração do SNUC, projeto de lei lançado em 1992 e aprovado em 2000.

Mas não só os dispositivos legais e deliberativos se multiplicaram neste período. As organizações não governamentais e os movimentos sociais ambientalistas, de diversas tendências, também foram ampliados e fortalecidos (política e financeiramente). Segundo Lúcia Ferreira (1996, p.88), “se até então o tema mobilizava apenas algumas poucas entidades preservacionistas, no final dos anos de 1980 e início da nova década a conservação de florestas conheceu uma popularização inesperada e trouxe à cena pública inclusive cidadãos que desconheciam experiências políticas anteriores”.

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Em 1981 havia sido estabelecida a Política Nacional de Meio Ambiente (lei 6938 de 31/08/81), que representa o arranjo institucional – ainda vigente no país – estruturante do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), o qual integra órgãos colegiados e executivos nos três níveis de governo, e cujo órgão consultivo e deliberativo é o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Em 1983, o governo de São Paulo criou o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), locus de atuação da sociedade civil.

Lúcia Ferreira introduz outro elemento de fundamental importância, que esteve presente nos embates sobre o conjunto de leis de preservação, em especial o decreto 750/93 – a influência de agências internacionais na orientação de políticas e programas nacionais:

Além de interesses econômicos de grandes grupos e o destino de inúmeros grupos sociais vinculados à mata, há também compromissos internacionais, oficiais e não oficiais, que exigem dispositivos institucionais mínimos para viabilizar resultados positivos de projetos financiados por recursos financeiros multilaterais. Dentre eles talvez os mais importantes sejam o Programa Piloto das Florestas Tropicais do G7 e o Tratado de Cooperação Oficial entre Brasil e Alemanha, celebrados entre o Governo do Estado de São Paulo e o Kreditanstalt für Wiederaufbau (KFW), com vistas à conservação da Mata Atlântica no estado, [...] (1996, p.98).

No escopo desta pesquisa, queremos apenas indicar este ponto crítico presente nas discussões, e que tem se tornado cada vez mais intenso no âmbito da conservação ambiental191: volume relativamente grande de capital estrangeiro tem sido

“direcionado a reestruturar relações sociais-naturais em áreas ‘subdesenvolvidas’” (GOLDMAN, 1998 in DIEGUES & MOREIRA, orgs., 2001, p.70). Trata-se de uma forma dissimulada – embora não tanto – de dominação nas relações Norte-Sul.

Procuramos até aqui, esboçar breve resumo tanto do aparato legal e institucional que foi estabelecido, como, principalmente, dos atores e movimentos sociais envolvidos em leis, decretos, resoluções, substitutivos, anteprojetos, pareceres jurídicos, minutas, emendas, tratados, protestos, lobbies, consórcios, comissões, redes... enfim, uma história repleta de conflitos de interesses, que não daremos conta de comentar diretamente. Mesmo porque, existe amplo material já sintetizado e discutido em outras dissertações e teses192. Entretanto, devemos destacar o seguinte aspecto.

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Segundo levantamento de Resende (2000, p.64), “Atuam no Vale do Ribeira em média, pouco mais de cem homens, que hoje dispõem de equipamentos em boa quantidade, em função do [...] financiamento alemão do PPMA [Projeto de Preservação da Mata Atlântica]”. O PPMA é exercido através do convênio do governo federal com o Banco Alemão Kfw, cujo aporte de recursos é bastante amplo, inversamente proporcional a suas possibilidades de uso, as quais se restringem ao investimento em equipamentos. O posto da polícia florestal de Iguape conta com 33 homens e dispõe de caminhonetes e land rovers que circulam rotineiramente pela região com a bandeira da Alemanha estampada em adesivos, em função do vultuoso financiamento alemão.

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Com tal mobilização política, nos fica evidente que, próximos da virada do século XX para o XXI, a conservação ambiental não só se fez ecologicamente urgente e politicamente conveniente, como também simbolicamente apreciada e mobilizadora. Pois já existiam leis que dispunham sobre o uso dos recursos e das paisagens naturais brasileiras – como o próprio Código Florestal, de 1934 – e que, no entanto, não foram suficientes para evitar sua ampla degradação – vide o interior do Estado de São Paulo. Portanto, não havia interesse do governo e da sociedade suficientemente forte para garantir o cumprimento dos dispositivos legais já existentes. Foi somente no final da década de 80 que tal interesse surgiu com intensidade, a qual foi potencializada pelos diferentes valores e desígnios que passaram a ser atribuídos ao meio natural, sobretudo o florestal.

Em 1994, Diegues publicou um de seus livros mais importantes – O Mito Moderno da Natureza Intocada – no qual aponta clara orientação ideológica e simbólica (originada nos Estados Unidos) na base da percepção e dos anseios presentes na tendência ambientalista mais forte no Brasil. A percepção escatológica do modelo de desenvolvimento até então adotado, levava ambientalistas a pautar seu discurso por idéias preservacionistas cujo pressuposto intrínseco é a dissociação Homem- Natureza (BRITO, 1995). Mas é certo também que numa disputa com setores empresariais, o setor ambientalista era indiretamente forçado a se posicionar de modo mais contundente e insistir em regras rigorosas para a conservação.

Segundo Ferreira (1996, p.116), essa noção de preservação em ilhas de natureza intocada, interditada arbitrariamente pelo poder público, é a que fundamenta o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Ainda segundo Ferreira, tal modelo de conservação ambiental – objeto de intenso debate nacional e internacional – reproduzia a mesma lógica dicotômica já presente no próprio Código Florestal do início do século XX, o qual já introduzira a noção de áreas reservadas à conservação193.

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Este código estabelece que as encostas cuja declividade estejam acima de 45 graus são consideradas de preservação permanente. Em 1934, define Parques e Florestas Nacionais, passíveis de exploração econômica e Florestas Protetoras, que representam áreas de preservação em propriedades particulares (cf. FERREIRA, 1996, p.86).

Fazendo uma análise retrospectiva, é fácil concordar com Diegues (op cit), pois no final das contas, o resultado político e legal alcançado retrata a idéia de que a natureza só se define como tal sem a interferência humana, como que assumindo um valor e direitos próprios. O estabelecimento de categorias de espaço natural protegido (as UCs) representa resultado concreto de que a natureza deve ser isolada para manter-se protegida contra as atividades predatórias da sociedade urbano- industrial e, de tal modo, poder ser reverenciada – e pesquisada! – em sua forma original, virgem e intocada. Mas deve-se acrescer que o caboclo não se adequaria ao projeto de desenvolvimento pensado pelos membros da sociedade dominante, e tampouco manteria a natureza da forma como aqueles desejariam. Como uma população semi-analfabeta seria capaz de cuidar primorosamente dos recursos e paisagens naturais?

Voltando para o ambiente do Vale do Ribeira, notamos que as primeiras medidas tomadas tiveram o caráter de isolar o homem da natureza, coibindo suas atividades econômicas diretamente relacionadas à exploração dos recursos naturais, ou mesmo expulsando-o de seu território. Tanto que logo foram construídos na E.E. da Juréia três portais indicadores de seus limites, seis pontos estratégicos para fiscalização, e instalado um posto da polícia florestal no município de Iguape para intensificar o controle e a ação coercitiva em defesa do patrimônio ambiental.

As primeiras conseqüências observadas sinalizaram, logicamente, para tal caráter segregacionista. Oliveira (1993), constata que o índice de evasão nos bairros rurais da Estação Ecológica da Juréia-Itatins, no período após sua implantação, foi mais elevado que os índices dos demais bairros dos municípios em que está inserida, ou seja, Iguape e Peruíbe. Hoje, a E.E. da Juréia é um vazio demográfico – o que facilitou a entrada de palmiteiros de outras regiões, especialmente Peruíbe, para explorar esta espécie, de forma muito mais incisiva que os antigos ocupantes daquele território jamais fizeram. O adensamento populacional do Bairro do Rocio, na periferia da cidade de Iguape, é um claro sinal das migrações internas e do empobrecimento da população do município. É lá que se encontram muitos dos antigos moradores (agricultores) da Juréia.

O problema é que nós estamos aqui abandonado e cada dia pior. Antigamente todas aquelas famílias que era raizada aqui... ainda tivesse por aqui... alguns filhos, alguma coisa, o Despraiado não estaria assim. Teria mais trabalho, teria mais pessoas [teria gente para casar, como me disse o depoente numa outra conversa194]. O Despraiado está se acabando. Está tudo caindo fora. Só está ficando os velhos. Isso aqui vai ficar como o governo quer! (Depoimento, Despraiado, 2002).

Meu filho está com dois anos que está em São Paulo. O que ele ganha em São Paulo em um mês, aqui em um ano ele não ganhava. Você acha que ele vai querer empatar o serviço dele aqui? Não vai (Depoimento, Despraiado, 2002).

Como haveria de se supor, as restrições de uso dos recursos florestais, pesqueiros e agrícolas numa região como Iguape, isto é, em que a maior parte da população rural depende da exploração direta dos recursos naturais – ou indireta, como no caso da

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