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O MEIO, O DESENVOLVIMENTO TÉCNICO E A REALIDADE SOCIAL

A técnica do caboclo é bastante semelhante àquela praticada por uma das primeiras civilizações agrícolas, do período neolítico, cuja atividade desenvolveu-se nas florestas. O caboclo, da mesma forma que o agricultor do neolítico, munido de machado, da vara de plantar e, é claro, do conhecimento sobre o uso do fogo, estava mais preparado e instrumentalizado para abrir clareira na mata e cultivar em solo fértil e descompactado do que em campo aberto onde teria que revolver e adubar o solo, faltando-lhe equipamento adequado. Não é à toa que “[...] as populações neolíticas que ocuparam as regiões arborizadas desenvolveram largamente as culturas, enquanto as que se espalharam pelas pradarias, pelas savanas e pelas estepes desenvolveram sobretudo a criação de gado” (MAZOYER & ROUDART, 2001, p.95).

O comentário de Marcílio, a respeito da chegada do português a São Paulo, parece ilustrar as observações acima e ampliar o escopo desta discussão:

“Para sobreviver, o português regrediu. [...] com seu inadequado equipamento técnico e sem capitais, o português que veio para as capitanias paulistas precisou aprender com o índio os expedientes que este criou para enfrentar a natureza, como a coivara, agricultura rudimentar da ‘derrubada e fogo’ estágio primeiro na evolução agrícola da humanidade [...]” (2000, p.154-55).

expressão utilizada por Godelier, e cujo significado remete às diferentes formas possíveis de se retirar da natureza as condições materiais de existência. Nota o autor que as possibilidades oferecidas pelo ambiente natural estão integradas ao desenvolvimento das forças produtivas – instrumentos de produção e conhecimento técnico – de modo que as alternativas de exploração ambiental e as técnicas de produção são atualizadas e desenvolvidas mutuamente. “Não há, portanto, recursos em si, mas possibilidades de recursos oferecidas pela natureza no quadro de uma dada sociedade num determinado momento de sua evolução” (GODELIER, s/d, p.328).

Repetindo o que já foi dito na Introdução, dado à rusticidade das condições técnicas de que dispunha o caboclo, o cultivo em áreas de floresta era mais fácil que em áreas de campo aberto. Da mesma forma, a recíproca é verdadeira: dado o ambiente de vastas florestas, a técnica rústica do caboclo se tornava bastante apropriada.

Porém, ao prosseguir na reflexão de Godelier nos daremos conta que a coerência entre o meio e a técnica correlaciona-se a uma realidade socialmente percebida e elaborada e a uma intencionalidade social que, em ultima análise, limita e determina o processo de produção. Estamos aqui indicando que o uso do meio feito por determinado grupo está condicionado por aquilo que pensa, percebe e interpreta de sua realidade. É a partir daí que desenvolverá necessidades, valores, regras, condutas sociais... e uma prática produtiva orientada por objetivos conscientemente estabelecidos46.

Ao mesmo tempo, o tipo de exploração do meio está submetido a condições externas ao sistema de produção; condições sociais e objetivas que atuam independentemente da intencionalidade do grupo – apesar de serem, do mesmo modo, interpretadas e internalizadas pelo mesmo. Em suma, as formas de exploração do meio expressam “possibilidades voluntárias” e “possibilidades sofridas”, sejam estas últimas conscientes ou não (cf. GODELIER, s/d, p.379).

Portanto, devemos notar que as soluções técnicas desenvolvidas e praticadas por

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Isso explicaria porque sociedades desenvolveram diferentes modos de exploração de um mesmo ambiente ou conjunto de recursos.

agrupamentos rurais tais como o que estudamos revelam-se bastante eficientes na exploração dos recursos naturais à medida que correspondem satisfatoriamente a determinado padrão de vida, ou seja, são eficientes socialmente. Não há, portanto, contradição entre produção e consumo, meios e necessidades.

A sociedade caipira tradicional elaborou técnicas que permitiram estabilizar as relações do grupo com o meio (embora em nível que reputaríamos hoje precário), mediante o conhecimento satisfatório dos recursos naturais, a sua exploração sistemática e o estabelecimento de uma dieta compatível com o mínimo vital – tudo relacionado a uma vida social de tipo fechado, com base na economia de subsistência (CANDIDO, 1964, p.36).

Não estamos querendo dizer que a precariedade da vida material era um objetivo em si, intencionalmente perseguido, mas que dentro de uma gama de possibilidades de ação, a agricultura itinerante e rudimentar associada a um padrão de vida restrito às suas necessidades elementares foi o que coube ao caboclo. Esta foi a lógica, a mentalidade do sitiante: enquanto permaneceu a mata a sua disposição e nada lhe perturbou, pressionando-o a trabalhar mais e intensificar sua lavoura, viveu sob o rígido equilíbrio estabelecido entre a produção e o consumo, sem que houvesse um esforço consciente para alterar seu padrão de produção.

Talvez nos ajude a entender tal conduta se levarmos em consideração que o relativo isolamento e fechamento objetivo do bairro é também do universo simbólico do caboclo. Suas necessidades simbólicas, seus objetivos racionais e suas representações emergem e se projetam, de e sobre um mundo social bastante limitado (cf. BOURDIEU, 2000)47. São também cingidas suas possibilidades imaginárias e simbólicas.

Em oposição ao caboclo, o colono japonês que imigrou para o município de Iguape, assim o fez com a intenção de apropriar-se de uma parcela de terra e reproduzir-se enquanto agricultor comercial. Trouxe de seu país técnicas agrícolas mais avançadas

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Bourdieu estudou uma região francesa, Lesquire, composta por bairros e lugarejos camponeses. O autor analisa aspectos da dominação simbólica exercida pelo meio urbano sobre a crise na reprodução da família camponesa. Apesar de seu estudo ter uma circunscrição geográfica específica, sua reflexão é mais ampla e aplicável à organização camponesa, enquanto tal. Esta nota é válida para contextualizar as citações que fazemos deste autor ao longo do texto.

e intensivas como o uso do arado, rotação de cultura, técnicas de adubação etc. Mas não conseguiu colocá-las imediatamente em exercício, convertendo sua prática a uma aparente e temporária regressão técnica48. Responderam, de início, às “possibilidades

sofridas”, isto é, à precária regularidade do transporte, à dificuldade de acesso ao comércio, de contratação de mão-de-obra etc., dificilmente conciliáveis à estratégia agrícola totalmente intensiva e comercial. Contudo, estas limitações exteriores às quais estiveram submetidos geravam contradição entre sua intencionalidade (ou sua racionalidade comercial e produtiva) e aquilo que praticavam, de modo que logo se movimentaram a fim de abrir novas possibilidades de ação e evoluir seu sistema de produção agrícola correspondentemente ao nível de desenvolvimento de suas forças produtivas.

Sistema rústico de produção do arroz

A técnica de plantio do arroz, praticada ainda nas primeiras décadas do século XX, remonta ao período colonial. Apresentamos sua descrição conforme estudos de Waldemiro Fortes: primeiro procedia-se à derrubada da mata, seguida da queima e da semeadura. Esta era feita de modo singular; o lavrador fazia pequenas covas de aproximadamente 6cm de profundidade, com o auxílio de uma vara pontiaguda chamada chuço. As sementes eram então jogadas nas cavidades e as que caíam para fora eram “chuçadas” para dentro do solo, o que machucava as sementes e diminuía a germinação. Depois de plantada, a lavoura não recebia nenhum trato até o dia da colheita. Não eram feitas capinas (cf. FORTES, 2000, p.105). Encontramos uma pitoresca citação de um agrônomo italiano do início do século XIX a este respeito:

O arroz de Iguape que estamos considerando é tão somente o producto genuíno de uma terra, que nem siquer provou a enxada, visto que o nosso lavrador só

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Como o caboclo, “praticou derrubadas e queimadas, utilizou a enxada como utensílio básico de trabalho, deixou de aplicar adubação em qualquer cultura, inclusive nas de maior valôr e baseou os sistemas de cultura em um quase itinerantismo. [...] na Baixada do Ribeira o colono japonês acomodou-se aos quadros pré-existentes, recebendo, portanto, muitíssimo do caboclo e não modificando sensivelmente seus métodos e processos” (PETRONE, 1966, p.161).

planta a chuço, numa roça mal queima onde se vê o arroz e o matto em identicas proporções de desenvolvimento, até a época da colheita! (apud

FORTES, 2000, p.103)

Tanto a descrição de Fortes como a do agrônomo, fazem transparecer certo incômodo com a inadequação técnica do lavrador. Em outro artigo, Waldemiro Fortes explicita os motivos de seu desconforto:

“Com esse sistema de roçadas mal feitas, com plantio de sementes machucadas [e utilizando-se de método prejudicial de colheita, no qual se corta cacho por cacho de arroz com canivete] não podem os nossos lavradores auferir o resultado desejado e conservar ao arroz de Iguape a posição adquirida nos mercados consumidores e mesmo competir com outros centros produtores, onde se usa o método mais adiantado à cultura” (Tribuna de Iguape, n. 454, 03/02/1924 apud FORTES, s/d, p.1).

De fato, o lavrador de Iguape não dispunha de condições favoráveis para competir no mercado, mas auferir resultados desejados é provável que, isto sim, tenha alcançado. Ora, articularia Godelier (s/d, p.381): “[...]a maximização da produção não tem sentido sem referência à hierarquia das necessidades e dos valores que se impõem aos indivíduos dentro de uma determinada sociedade e têm seu fundamento na natureza das estruturas dessa sociedade. A maximização da produção não é senão um aspecto da estratégia global de maximização das satisfações sociais que se impõe aos indivíduos e aos grupos dessa sociedade”. Não necessariamente os fins que um grupo ou sociedade maximiza são medidos em termos monetários, como pressupõe Waldemiro Fortes.

A crítica sobre a prática do lavrador tradicional (e também sua cultura, hábitos e costumes) repetidamente desconsiderou que o processo de produção agrícola não é somente uma realidade técnica e econômica, ou então, que a racionalidade social não é somente econômica, sendo este apenas um de seus aspectos (cf. GODELIER, s/d, p.33)49. Segundo Diegues, as práticas produtivas e o uso dos recursos naturais por

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Dialogamos diretamente com Godelier, a partir de sua discussão com O. Lange sobre o princípio da racionalidade. Godelier nega que a origem particular da racionalidade capitalista possa ser um princípio geral do comportamento humano. Então lembra das sociedades primitivas para as quais as relações de parentesco ocupavam lugar central entre as estruturas sociais, sendo a racionalidade econômica apenas um aspecto do funcionamento das atividades não-econômicas. Assim, conclui que

sociedades de extrativistas, ribeirinhos, indígenas, entre outras “só pode[m] ser entendido[s] dentro de uma lógica mais ampla de reprodução social e cultural, distinta da existente na sociedade capitalista” (DIEGUES, 1994, p.71).

Sem compreender intimamente a organização interna destes sitiantes, bem como a forma como se articulam e são explorados pela sociedade dominante, seríamos facilmente levados a interpretações cômodas, que imputam ao agricultor toda a responsabilidade pelas mazelas da região, como fica patente em outro comentário de Waldemiro Fortes, cujo conteúdo permanece bastante vigoroso, ainda hoje, na mentalidade da elite local:

“Precisamos que o nosso governo estenda suas vistas até nossas plagas, veja a uberdade de nossas terras e o invejável clima que possuímos e as riquezas naturais que se encontram, e trate de fundar aqui uma escola agrícola, onde o nosso lavrador tenha ocasião de verificar pessoalmente a relativa utilidade de diversos métodos de cultura, o proveito que pode tirar de outras espécies de cultura que ignorava, os benefícios de indústrias que desconhecia e, sobretudo, compreender com nitidez as grandes, as imensas vantagens da cultura racional científica e intensiva [grifo nosso]” (Tribuna de Iguape, n 451, 13/01/1924, apud FORTES, s/d, p.1)

Às condições do ambiente natural, todas as qualidades; ao trabalhador rural (iguapense), todos os defeitos – preguiça, falta de resposta ao estímulo econômico, falta de conhecimento, apego obstinado a suas práticas arcaicas etc. No decorrer do capítulo, apresentaremos novos elementos que reforçam este entendimento.

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