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Entre o plantio e a colheita, é necessário capinar, pulverizar, adubar... capinar outra vez... tudo feito manualmente – à exceção de raras propriedades, onde apenas a colheita não acontece de forma mecanizada. Isso significa que a necessidade de mão- de-obra é elevada. Pois bem, durante todo o século, a família foi o núcleo provedor da mão-de-obra e organizador do trabalho nas propriedades. Hoje, porém, observamos que, dentro das famílias, o número de trabalhadores diminuiu. Ora, isto nos diz, entre outras coisas, que a diminuição da mão-de-obra familiar, ou se impõe como um limitante desta produção, ou incita o estabelecimento e a organização de novas relações produtivas.

Pareceu-nos relevante o fato de encontrarmos trabalhando na lavoura, predominantemente, casais adultos, acima de 40 anos, sem os filhos como força de trabalho no sítio. As crianças e os jovens, além serem em menos numerosos que nas famílias de seus antepassados, já não querem ser agricultores, tampouco seus pais almejam tal destino para seus filhos. Isso coloca em cheque o próprio destino dessa produção familiar.

Os jovens são estimulados a estudar e se qualificar para oportunidades de emprego “menos sofridas” na cidade. Tal projeto lhes impõe a necessidade de ir para a sede do município160, todos os dias, para estudar. Além de enfrentarem uma rotina extenuante, enfrentam a angústia de um futuro incerto, seja no campo, seja na cidade. Assim avalia um agricultor:

“É aquela lenda, né: no fim o estudo pra alguns também não adianta nada. O mais do povo que estuda por aqui não tem emprego. Não tem emprego para os estudantes, é difícil hoje em dia o estudante ter emprego. Todo mundo conhece, né? É aquele azar!” (depoimento, Peroupava, 2002).

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Os bairros rurais não possuem escola de ensino médio, e alguns, nem de ensino fundamental. Isso leva crianças e jovens a viajar todas as madrugadas para estar na cidade de Iguape às 7horas da manhã. Há também aulas noturnas freqüentadas por jovens e adultos, que retornam as suas casas por volta da meia-noite.

Mas a avaliação mais concreta é a de que os jovens se distanciam da realidade rural e agrícola, não se educam mais nestas matérias, e pouco conseguem ajudar seus pais no trabalho da lavoura. Assim resumiu outro agricultor:

Um [problema] é que os caras vão pra estudo, chegam meio-dia, os filhos não querem mais ir trabalhar porque tão cansados [...] E hoje em dia, se você der uma foice para um estudante aí, em vez dele trabalhar, ele se mata. Porque ele não sabe trabalhar, não sabe! [...] Tenho certeza que tem moleque por aí que nunca viu um pé de palmito (depoimento, Peroupava, 2002).

O fato de deixarem a propriedade para buscar outro meio de vida na cidade é mais um indicativo de que a vida no meio rural anda difícil e simbolicamente desvalorizada. Contudo, é mais fácil entender as motivações que levam os jovens a deixar o sítio, do que as implicações de sua ausência para a organização da produção agrícola. Se por um lado, a falta de braços se impõe como severa limitação para a manutenção da produção, é também indicativa, no sentido contrário, de que há “impossibilidade de sobrevivência dos mesmos [filhos jovens] junto aos pais e destes últimos junto aos filhos, devido à rarefação, no contexto do bairro, das oportunidades de ganhar a vida, quer como lavradores autônomos, quer como trabalhadores assalariados. Pode-se dizer que a sobrevivência dos que ficam (velhos, adultos e crianças) depende da saída dos jovens” (Queiroz R., 1983, p.83).

Tudo isso pareceu ainda mais complexo quando nos demos conta de que a ajuda que filhos adultos prestam a seus pais vem em forma de dinheiro161, recebido em atividades na cidade de Iguape, São Paulo, Sorocaba... onde trabalham como pedreiros, frentistas, domésticas... raramente alcançando empregos e posições bem remuneradas. Esta ajuda pode representar importante apoio sobre a própria produção agrícola, compensando o efeito da carência de mão-de-obra. É o caso do agricultor e sua mulher – ambos nascidos no Peroupava – os quais conseguiram comprar, em 2002, uma tobata162, graças a um financiamento do Banco do Povo, o qual só

conseguiram pagar com a ajuda de um filho que é frentista no município paulista de

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Muitas famílias de japoneses se beneficiam com recursos mais fartos, embora nem sempre regulares, enviados por seus filhos que hoje trabalham no Japão.

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Tatuí, região de Sorocaba.

Sem dúvida, mecanizar é uma forma de reduzir a importância da mão-de-obra. Outra, é contratar homens para a execução de serviços. Mas antes de falar sobre este tipo de relação de produção, gostaríamos de fazer mais algumas colocações, pois não foi apenas no interior da própria família que a mão-de-obra escasseou.

No capítulo inicial, apontamos como as relações de ajuda mútua no contexto de vizinhança eram fundamentais para a realização da produção. Era através de trocas recíprocas de trabalho entre famílias que se complementava a mão-de-obra familiar e se fazia possível produzir um excedente comercializável. Pois bem, nos dias de hoje, também esta forma de relação de produção não ocorre mais. Como dizem os sitiantes: “hoje, é cada um por si”.

Sabemos que as relações de ajuda mútua se organizavam, principalmente, em torno da necessidade de abrir clareiras na mata, e tinham o formato de mutirão. Ora, é então compreensível o fim desta prática após a proibição do desmatamento, como justificam os próprios agricultores.

Hoje em dia não há mutirão, porque se for concentrar num ato pra fazer mutirão igual nós fazia, o Ibama vai dar em cima, não vai deixar derrubar, vai causar aquele problema pra você tirar aquela licença..., e não vão te dar a licença! (depoimento, 2001)

A gente fazia mutirão pra fazer roça de arroz. Tinham muito, hiiii! Isso acabou tudo, isso não existe mais. Foi depois que criaram a Reserva. O pessoal largou de fazer roça, de plantar, de fazer as coisas. Acabou-se aquele sistema que as pessoa tinha de fazer aqueles mutirão grande, pra fazer aquela roça grande, de derrubada, de roçada. Era bonito até, o pessoal fazia aqueles mutirão, aquela comidama, matavam bicho... (depoimento, 2002)

É certo que, proibida a roçada, o mutirão perde sua referência original e sua motivação primeira. Mas enquanto forma de organização da produção, o mutirão não perde seu sentido, pois a necessidade de ampliar a força de trabalho familiar não deixou de existir, o que matem viva a sua conveniência. A mão-de-obra extra- familiar continua sendo indispensável no trabalho agrícola, tanto porque o número de membros da família se reduziu, como porque a quantidade de trabalho exigido na lavoura é possivelmente maior do que no passado. Tais observações nos levam a

outras duas.

Primeiro, não é apenas a proibição do desmatamento que desmotiva o mutirão (ou prática de ajuda mútua coletiva) enquanto modo de organização da produção. Segundo, ou o mutirão – assim como a mão-de-obra dos jovens – é substituído por outro arranjo da força de trabalho nos sítios, ou tarefas deixarão de ser cumpridas e a atividade agrícola do sitiante tenderá a minguar. Esses dois aspectos precisam ser pensados com cautela. Para tanto, organizamos a discussão em dois momentos: um, para tratar dos aspectos relacionados à desmobilização da ação conjunta no trabalho agrícola; e outro, para tratar dos meios que vieram a substituir tal força de trabalho.

RELAÇÕES EM TRANSIÇÃO: A NOÇÃO DE GRUPO E COLETIVIDADE NA ORGANIZAÇÃO DO

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