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O REGIME DE USO DE SOLO E A TRANSFORMAÇÃO TECNOLÓGICA

Para não permitir que a vegetação ultrapasse o porte estabelecido para corte – o qual não corresponde ao tradicionalmente estabelecido para uma boa produção agrícola – o caboclo se vê forçado a reduzir drasticamente, ou mesmo a eliminar o tempo de pousio e o rodízio de áreas de cultivo. Assim, passa a plantar em área de capoeira fina, onde o solo ainda não se restabeleceu adequadamente. Isso significa que logo sentirá necessidade de introduzir uma nova forma de preservação e recuperação de sua fertilidade – já que as cinzas da floresta deixaram de cumprir este papel.

Pois bem, além de enfrentar dificuldade para lidar com a qualidade do solo cultivado, o sitiante se depara com outro problema. Sem que haja o tempo suficiente para que a capoeira se desenvolva plenamente, as ervas daninhas conseguem se perenizar, pois a sombra das árvores já não é mais suficiente para interromper seu ciclo de reprodução – como aconteceria se o bosque se tornasse denso. Além disso, lembra Boserup (1987, p.18), com o mesmo solo submetido a freqüentes queimadas – o que decorre da falta do pousio – aquelas ervas daninhas cujas raízes não são prejudicadas pelo fogo, tendem a cobrir cada vez mais o solo.

A luta contra o mato é, de fato, tarefa ingrata na região do Vale do Ribeira, onde as chuvas constantes aceleram o crescimento das ervas, além manterem vivas as espécies mais agressivas, mesmo após terem sido capinadas. Esta foi uma queixa

constante entre os agricultores com os quais conversamos. É interessante que sempre faziam referência ao passado, se perguntando porque anteriormente não conviviam com este problema. O mesmo lamento se estendia para a alta incidência de pragas (pulgões, lagartos, caramujos, lesmas, fungos e vírus), pois também elas eram dribladas com a constante mudança de localização da plantação139. Isso significa que,

se quiser manter o que colhia sem realizar o pousio, o sitiante, além de adotar uma alternativa de adubação, deve introduzir algum método para enfrentar as invasoras e as pragas.

Se no início do século, bastava-lhe o fogo para a limpeza e preparo do solo e a vara para plantar, agora precisa de novas ferramentas tais como pulverizadores costais, (intenso uso da) enxada e sobretudo, o arado. Isso porque “[...]o tipo de ferramenta agrícola necessária num dado contexto depende do sistema de uso da terra: algumas mudanças técnicas materializam-se somente se o sistema de uso da terra se modifica, da mesma forma que outras mudanças de sistema de cultivo só são possíveis com a introdução de novas ferramentas”140 (BOSERUP, 1987, p.24). Conforme a reflexão de

Boserup, o desenvolvimento agrícola não se resume num processo de aperfeiçoamento gradual das ferramentas, pois estas só serão introduzidas quando uma nova operação se tornar necessária. Veja a evolução do uso de máquinas e implementos no município (Tabela 9).

139

O aumento da incidência de pragas também está relacionado a mudanças no tipo de cultivo a que hoje se dedicam. Hortaliças e folhagens não faziam parte do repertório agrícola do caboclo, e sim espécies vegetais bastante rústicas como os tubérculos e raízes.

140

“O chuço e a enxada podem trabalhar com êxito entre os restos de uma queimada, onde os troncos atravancam o solo e a ramagem foi apenas reduzida pelo fogo, mas o arado [plenamente desenvolvido] oferece resultados ótimos no solo permanentemente limpo” (PFEIFER in THOMAS apud BOSERUP, 1987, p.24).

TABELA 9

Evolução do uso de máquinas e instrumentos agrícolas no município de Iguape, 1950-1995/96

Trator Arado Anos Total de

estabelecimentos

recenseados inform. total inform. Total

1950 (1) 2141 ... ... ... ...

1960 950 10 12 7 7

1970 1563 83 108 74 95

1980 426 170 173 131 154

1995/96 620 85 115 35 46

Fonte: IBGE, Censos Agropecuários

Nota: (1) O censo agropecuário de 1950 informa que 99,76% das propriedades recenseadas não empregam força mecânica ou motora

... Dado não disponível

Havemos de concordar com Boserup que, com o fim do cultivo em área de floresta, o arado passou a ser quase uma urgência. E não é por menos que, quando não há disponibilidade do implemento, os agricultores evitam o sistema intensivo de uso da terra, pois o obriga a grande esforço físico para revolver o solo e/ou retirar as raízes de certas gramíneas com enxada ou com arado de tração animal – o que não é o caso na região, pois não ouvimos menção a este tipo de prática – sem obter ganhos proporcionais em aumento de produção.

Se por um lado, é conveniente o uso de insumos e implementos industriais, seja na adubação, no controle de pragas ou no preparo do solo – pois pode aumentar muitas vezes a produtividade por homem-hora – por outro, incorre em dificuldades técnicas específicas, assim como em mudanças na relação com os meios de produção e no vínculo do agricultor com o mercado.

O preparo do solo se torna menos trabalhoso – e as capinas possivelmente menos freqüentes – com o uso de trator e arado para amaino da terra. Entretanto, esta atividade, que antes podia ser antecipada liberando o agricultor para outras funções,

agora passou a ser realizada em tempo específico e restrito, uma vez que o preparo do terreno com arado exige certas condições de solo que reduzem o período propício à realização da tarefa. O solo, além de livre de tocos e raízes, deve apresentar umidade ideal de aração – tanto o excesso, quanto a falta de umidade podem comprometer o desenvolvimento da cultura como também a fertilidade do solo, ao torná-lo compactado. As condições pluviométricas do Vale do Ribeira, especialmente, encurtam acentuadamente este período, uma vez que as chuvas já podem ser bastante intensas a partir do mês de setembro. Este é um exemplo de dificuldade técnica e instrumental que o preparo mecanizado do solo passa a apresentar.

Portanto, se o uso de insumos industriais e mecanização pode aumentar a produtividade por homem-hora, isso deve ser ponderado quando se trata de agricultores novatos nesta tecnologia e desprovidos dos equipamentos necessários. Esse aumento poderá não ser tão elevado assim quando ainda não se adquiriu experiência nem na escolha, nem na dosagem, tampouco na forma de aplicação dos insumos, de modo que a incorporação dos mesmos na lavoura pode gerar resultados frustrados e mesmo colocar o agricultor em situação financeira delicada. E para evitar tais problemas, a assistência técnica surge como mais uma necessidade.

Enfim, o que descrevemos nada mais é do que a recombinação dinâmica (ou a relação recíproca) dos fatores de produção (recursos, equipamentos, trabalho e conhecimento) a partir da mudança na base tecnológica itinerante – deixamos apenas indicada a relação dinâmica entre tal mudança tecnológica e a que se processa nas relações de produção e no vínculo do agricultor com mercado. As necessidades que surgiram para o caboclo seriam previsíveis e solucionáveis, evitando as conseqüências sociais e econômicas negativas que pudemos observar. Pois sem apoio técnico e financeiro, o caboclo se viu desprovido de mecanismos para reorientar sua estratégia agrícola de modo adequado, passando a enfrentar o excesso de trabalho, a perda do domínio técnico, a queda na produtividade, a perda da autonomia sobre os meio de produção e daí por diante. Enfim, este é o assunto para todo o capítulo.

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