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Conforme articulou Marcílio (2000, p.106-107), a baixa dependência da economia cabocla e o relativo isolamento do bairro rural nos levam a pensar em padrões de vida precários e, sobretudo, na utilização intensiva da mão-de-obra familiar, infantil e feminina. De fato, a divisão do trabalho acontecia no interior do núcleo familiar, responsável direto pela produção da subsistência. Havia apenas distinção entre sexo e idade, sendo o trabalho pesado realizado pelo homem adulto, apesar da mulher acumular funções domésticas e produtivas distribuídas durante o ano todo. As especializações eram poucas, embora importantes, como a do artesão que fabricava a canoa, os equipamentos da casa de farinha, o curandeiro, etc.

Contudo, veremos que também na coletividade do bairro organizava-se a produção e

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Segundo Michael R. Dove (1983), que publicou artigo científico na revista Agroforestry Systems sobre a agricultura itinerante praticada por diferentes grupos na Indonésia e sudeste da Ásia, engana- se quem atribui a esse tipo de lavrador um sistema de posse comunal ou mesmo ausência de sistema de posse. Essa interpretação confunde o que são direitos comunitários e direitos da família. Tanto o usufruto da terra, quanto de seus produtos são restritos à família, isto é, não são partilhados comunitariamente.

a subsistência. Antonio Candido (1964), que considerou a sociedade caipira paulista intimamente ligada à organização em bairros67, entendeu que é nesta base territorial

na qual se encontram agrupamentos familiares vinculados pelo sentimento de localidade, pela prática religiosa e pelo trabalho de auxílio mútuo – que aqui destacamos – onde se desenvolvia a unidade fundamental da sociabilidade e da organização do trabalho.

No interior do bairro ou vizinhança, parte do trabalho das famílias era socializado, como acontecia nos mutirões. A sociabilidade era condição necessária para a produção agrícola e portanto, para a sobrevivência, o que denota a interdependência entre os habitantes. Logo, exercia a função de relação de produção68, e era no bairro

que esta se organizava.

No início do século XX aconteciam os mutirões, prática sempre lembrada nos textos que descrevem o modo de vida tradicional. Nem sempre, entretanto, nos lembram de informar a que eram chamados os mutirões. Nas comunidades rurais de Iguape – cuja economia era provavelmente, mais dinâmica que aquela estudada por Antonio Candido (1964) – o mutirão não era para plantar abóbora, feijão, e dificilmente para fazer farinha. Mutirão pouco tinha a ver com os cultivos e manufaturas destinados apenas e diretamente à subsistência. Mutirão era para fazer roçada, para plantar e para colher uma área em geral grande demais para os braços e para as bocas de uma só família. Enfim, o mutirão estava vinculado à produção com fins comerciais, na maior parte dos casos, o cultivo do arroz.

Se o mutirão era uma forma de superar restrições de tempo impostas por fatores técnico-ambientais69 do sistema de produção itinerante e rudimentar, sabemos que

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O bairro “é a unidade em que se ordenam as relações básicas da vida caipira, rudimentares como ele”, escreveu Antonio Candido (1964, p.74).

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Através das relações de produção definem-se os limites e as possibilidades das práticas sociais, regulam-se direitos e deveres entre o grupo, acesso e o controle sobre os meios de produção e os produtos do trabalho (GODELIER, 1981, p.48).

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As características de maturação do arroz, por exemplo, exigem que sua colheita aconteça num intervalo curto de tempo, a fim de evitar perdas indesejadas.

estes “constraints70

” se ampliam com a necessidade de se produzir numa escala maior que a de consumo familiar. Segundo Diegues, uma das funções do mutirão era justamente organizar a força de trabalho em unidades de produção maiores do que a familiar, uma vez que havia a necessidade de se ampliar a capacidade produtiva do grupo doméstico. Por conseguinte, também proporcionava momentos de troca de informações entre as pessoas e reforçava laços de solidariedade71 (DIEGUES, 1983,

p.152; 179).

Esta característica do mutirão tem sido freqüentemente esquecida nas muitas descrições que lhe são feitas (as quais privilegiam aspectos dos laços de solidariedade, dos momentos de lazer, distribuição de alimentos etc.). A nosso ver, a finalidade mercantil que se visualiza no final do processo de produção do qual o mutirão faz parte o torna ainda mais peculiar enquanto organização coletiva, principalmente quando se sabe que o trabalho era realizado em grupo e não remunerado, embora seu produto fosse reservado à família. A bem dizer, o que de mais interessante transparece ao estabelecer este vínculo entre a subsistência da família, o trabalho coletivo de produção e a comercialização individual, é exatamente a racionalidade do sistema econômico do sitiante tradicional e a forma como este representa o trabalho e a produção. Revela-se (também aí) a lógica econômica que rege sua existência social – a sua “força própria”, diria Abramovay (1981; 1991), a sua “autonomia ética”, diria Bourdieu (2000, p.103).

Apesar de dedicarem-se a um cultivo com fins especificamente comerciais (e acentuamos: não era o excedente que se levava ao comércio, pelo contrário, o excedente é que se consumia na propriedade), não eram essencialmente motivados pela obtenção de lucro. Pode-se dizer que o comércio do arroz constituía-se uma forma de assegurar a subsistência à medida que permitia a obtenção de um conjunto de mercadorias restrito ao essencial. No fim das contas, seu objetivo voltava-se à

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Condições de adaptação e controle técnico-ecológico; constrições de prazos, tempo, período.

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No prefácio de seu livro, escreveu Antonio Candido: “[...] devo à obra de Marx a consciência da importância dos meios de vida como fator dinâmico, tanto da sociabilidade [grifo nosso], quanto da

solidariedade [grifo nosso] que, em decorrência das necessidades humanas, se estabelece entre o

vida, ao próprio homem, e não a sua abastança ou acumulação de capital. Afinal, a ajuda coletiva relaciona-se à sobrevivência, à manutenção do grupo – e não aconteceria se vinculada à formação de renda72.

“[...] não há remuneração direta de espécie alguma, a não ser a obrigação moral a que fica o beneficiário de corresponder aos chamados eventuais dos que o auxiliaram” (CANDIDO, 1964, p.68). “Um ‘pixirão’ é uma troca que ocorre imediatamente, entre as pessoas, isto é, entre seus trabalhos. Esta troca não é mediatizada pelas coisas. Embora seja uma troca, regulada pelo tempo de trabalho, ela aparece como uma ajuda, como prestação comunitária” (ABRAMOVAY, 1981, p.30).

Segundo Dove, o mutirão revela-se um trabalho coletivo embora não comunitário73,

dado que a produção não se destina diretamente para o consumo ou benefício do grupo. Ainda segundo este autor, muitas vezes se interpretou que sitiantes tradicionais tivessem certa predisposição a sacrificar-se pelo grupo, enquanto que na verdade, eram orientados por interesses próprios – individuais ou familiares (self- oriented e self-interested). Assim, sua cooperação não é comunal e sim estritamente recíproca74 (cf. DOVE, 1983). Contudo, havemos de notar que a relação de

reciprocidade é responsável não só pela reprodução da família no interior do grupo, como pela reprodução social do grupo a longo prazo. Neste sentido, as ponderações de Dove ficam relativizadas.

Não era possível conceber o mutirão sem o longo e animado festejo oferecido ao final – por este fato, o mutirão costumava realizar-se aos sábados. Este consistia de música e dança em ritmo de fandango e distribuição farta de comida. O festejo

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Veja o que diz Abramovay: “Da mesma forma que o uso comum da terra, o mundo da mercadoria repudia o uso comum do trabalho – a menos que o trabalho se transforme numa mercadoria e sirva para produzir mais-valia” (ABRAMOVAY, 1981, p.30).

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Isso não significa que não fossem realizadas atividades comunitárias, em geral, relacionadas à construção e manutenção de infra-estrutura social. A limpeza de caminhos (trilhas na mata) é um exemplo. Eram organizadas em forma de ajutório, espécie de mutirão, embora contando com menos trabalhadores, sem a realização de festa e distribuição de comida e sem que se estabelecessem responsabilidades recíprocas entre as pessoas.

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Vale apontar que o sujeito dessa mentalidade solidária não é o indivíduo, revestido de uma natureza humana e uma psicologia. São os homens em conjunto, “conscientes e inconscientes de suas relações sociais” (GODELIER, s/d, p.392).

representava, portanto, uma forma concreta de socialização material e uma forma simbólica de repartição dos resultados/benefícios vindouros da lavoura.

“Antigamente, juntava 50, 60 pessoas pra fazer mutirão. Olha, era bonito de ver. Você só via o mato rodando e aquele povo bradando, gritando. À noite o povo arrodeava aquela mesa ali, toda aquela comida. Era bonito de ver”. (depoimento, Peroupava, 2002). Não houve quem não falasse do mutirão com alegria e com saudades. Certamente, esta era uma atividade bastante prazerosa a todos.

Renato Queiroz (1983, p.130) diz que, tanto os mutirões, como os ritos fúnebres75 e

os festejos “colaboravam para o igualitarismo do grupo, queimando eventuais excedentes, impedindo o surgimento de diferenciações e privilégios entre seus componentes”. Segundo concepção do autor, o mutirão era de tal modo organizado que, a um só tempo, desconstruía aquilo que poderia estar suscitando: privilégios entre os membros do bairro, exploração de mão-de-obra, geração de excedentes etc.

Encontramos o seguinte parágrafo em artigo de Waldemiro Fortes cujas linhas e entrelinhas parecem afirmar tudo o que apontamos:

“As derrubadas das matas, quase que geralmente, são feitas por meio de mutirões ou ajutórios, aos quais se reúne toda a vizinhança, que recebe a alimentação somente em troca do auxílio do seu trabalho. Esse sistema, adotado até hoje pela maior parte dos nossos lavradores, parece adiantar muito o serviço, mas atendendo as condições que apresenta em ser mal feito, além disso as despesas não são pequenas, na liquidação do produto o fazendeiro ou lavrador quase que não aufere lucro, o que muitas vezes redunda em prejuízo.” (Tribuna de Iguape, n 454, 03/02/1924, apud FORTES, s/d, p.1)

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O autor observou, num povoado de Ivaporunduva, município de Eldorado, regra (ou costume) estabelecendo que a família do morto deve servir alimentos durante todo o período de funeral para os amigos e parentes mais chegados.

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