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RELAÇÕES EM TRANSIÇÃO: A NOÇÃO DE GRUPO E COLETIVIDADE NA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E DA CONVIVÊNCIA

Não temos explicações satisfatórias ou suficientes para justificar o abandono da prática do mutirão, mas tivemos a oportunidade de fazer algumas observações a respeito. Em primeiro lugar, está claro que, para além da mudança na base técnica (fim do desmatamento e do cultivo itinerante) implícita no término desta prática, muitos outros aspectos estão associados, sendo alguns deles bastante objetivos, como os indicados no capítulo anterior. Aqui, acrescentamos outro mais: mudaram as espécies cultivadas as quais passaram a exigir maiores cuidados técnicos tanto no momento do plantio, como da colheita; ao mesmo tempo, as pessoas – especialmente os jovens – perderam o domínio do manuseio das ferramentas e dos tratos agrícolas de modo geral. Isso tornou as grandes atividades coletivas, como o mutirão, pouco adequadas.

Outros aspectos são menos evidentes. “Antes a gente era muito unido, se tratava por compadre... Agora, se fizer um reunido de gente assim [como nos mutirões e bailes de antigamente] é só para brigar.” Porque aconteceu esta mudança? “A gente não tem nem como explicar” (depoimento, 2002). A desunião das pessoas nos bairros é um diagnóstico unânime feito pelos sitiantes, sobretudo quando comparam

diretamente sua situação com o passado. A conjuntura em que se insere a agricultura atual não mais acomoda a prática de entreajuda, a qual envolve, entre outros fatores, acordos éticos entre muitas famílias. Comentários como o exposto acima, vêm à tona com facilidade, especialmente porque o contraste entre situações – antes e agora – é, vivenciado, pois pertence a uma mesma geração. É como se as pessoas já não se sentissem parte de um mesmo grupo, ou melhor, não compartilhassem, no conjunto do bairro, as mesmas regras, valores e formas de trabalho.

Estando no bairro do Despraiado, tivemos a oportunidade de presenciar episódio interessante. Tratava-se de uma reunião convocada por um dos moradores, o qual propunha aos demais, reativar a prática do mutirão163. A notícia da reunião foi

espalhada de boca em boca, todavia – como pude notar – sem muito empenho de seus propagadores. No momento marcado, havia apenas três agricultores presentes, e sem a certeza de que pelo menos mais quatro companheiros tivessem sido, de fato, informados sobre o encontro. Mesmo assim, a reunião sucedeu, sob a motivação de que “uns têm que começar, porque depois, os outros vão se juntando, conforme a coisa funciona”.

A motivação dos presentes relacionava-se diretamente ao diagnóstico comum de que, para dar conta de todo o serviço (acumulado) em seus sítios, era premente o reforço da mão-de-obra. O principal serviço era a limpeza dos bananais, que se encontravam a ponto de serem “engolidos” pelo mato. Esta tarefa de limpeza dizia respeito não apenas à capina, mas também ao desbaste dos perfilhos, eliminação das bananeiras que já haviam produzido, eliminação daquelas com doença, assim como das folhas secas e fungadas.

Não era a primeira tentativa de moradores do Despraiado de restabelecer o mutirão. E talvez pelo fato deste ter sucumbido anteriormente, aqueles três agricultores se esforçavam naquele momento para manter viva a mobilização inicial, passando por

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Utilizamos aqui o termo mutirão como foi empregado pelos agricultores, muito embora o que se estava, de fato, propondo se assemelhasse mais a troca de dia, embora envolvendo maior número de trabalhadores. O mutirão que programavam estabelecia um rodízio de trabalho do grupo na propriedade de cada membro. A reciprocidade agora se fazia em torno da força de trabalho

cima, inclusive, da falta de quorum para a reunião. Estavam dispostos a voltar para casa com o “projeto mutirão” pronto para ser posto em prática, já com regras, datas e tudo o mais estipulado, sem maiores delongas. Se de um lado demonstravam eficiência e força de vontade, de outro, revelavam a fragilidade da relação que se estabelecia entre eles e certa falta de confiança na própria proposta de estabelecer relações de reciprocidade no trabalho.

A reunião seguiu com o estabelecimento da freqüência do mutirão, depois os horários, os participantes... E, em cada regra, abria-se para uma série de outras, que surgiam como necessárias para lidar com as exceções, formas de controle, penalidades etc. O que presenciei, então, foi o estabelecimento de uma enorme quantidade de regras, com o intuito explícito de assegurar igualdade entre os serviços prestados e recebidos por cada participante do pretenso mutirão. Mais parecia um contrato comercial entre eles, embora fossem aliados.

Quem vai participar? Que serviços serão permitidos no mutirão? E se a pessoa ficar mandando fazer muito serviço? Fulano pode querer que a gente fique só carregando banana – o que é serviço muito pesado... Não, acho que o mutirão deve ser só para limpeza do bananal!... Vai ter café? Não, acho que cada um leva o seu... Quantas horas de trabalho serão dedicadas ao mutirão? De que horas a que horas? Ah,mas se um atrasar ele paga depois... E quando a pessoa faltar? Depois paga um dia de serviço, ou leva alguém com ele para repor o dia que falhou... E se a pessoa não fizer o serviço direito? Paga com...

Tantas regras... muitas das quais desnecessárias, pois se supunham entre companheiros... outras rigorosas demais e inflexíveis (quando se supõe entre companheiros)... assim a conversa foi nos causando estranhamento. Concluímos, pois, que não havia ali, naquele acordo de prestação recíproca de serviço, um acerto de remuneração monetária, mas tampouco havia a base do mutualismo solidário e seguro de outrora, o que fazia as regras de hoje se tornarem explícitas e intermináveis. Faltava-lhes confiança mútua; faltava-lhes um contexto de bairro que

representada por cada trabalhador e não por família como no mutirão de antes. Ademais, não se pensava em festejos ou qualquer evento social comemorativo.

os apoiasse; faltava-lhes garantias de que seriam favorecidos e não prejudicados... No fundo, o “mutirão” reduzia-se, de fato, a uma tentativa de organização da mão- de-obra, pois desprovido de seu contexto cultural.

Sem dúvida, seria muito mais fácil para cada agricultor pagar um diarista sempre que precisasse. Porém as condições econômicas da maioria do bairro – valha a exceção dos sítios de proprietários de São Paulo, que mantêm caseiros e funcionários cuidando de suas casas e bananais – não permitem recorrer a este recurso. Observamos, de um lado, carência (e urgência) concreta de mão-de-obra, e de outro, relações de produção em plena transição. Entre as duas circunstâncias existe um vácuo, um contratempo, preenchido pelo empobrecimento do sitiante.

As relações de produção, atualmente, não mais se confundem com o coletivo da vizinhança. Pode-se dizer que o bairro rural deixou de ser a unidade mínima na qual se organizam a convivência social, as práticas de auxílio mútuo ou atividades lúdico- religiosas, como foi inicialmente identificado por Antonio Candido (1964). No entanto, observamos que, dentro dos bairros rurais, tanto o trabalho, como a sociabilidade se organizam em núcleos diversos. As diferentes igrejas, por exemplo, representam um núcleo a partir do qual, principalmente, a sociabilidade (festas, encontros, comemorações, discussões...) é promovida. A própria família, no caso dos migrantes provenientes dos estados do sul, representa uma forte instituição no interior da qual se organiza o trabalho – ela quase que se basta por si só.

Não é por menos que as diferenças culturais e também religiosas164 são apontadas

pelos sitiantes como fatores responsáveis, tanto pela aproximação e vínculos entre as pessoas, como pelo seu distanciamento. De fato, muitas das divisões internas nos bairros coincidem com as divisões de origem cultural, religiosa e também de classe social. Mas isso não chega a ser um empecilho para que caboclos, sitiantes e migrantes estabeleçam entre si laços sociais e produtivos, afetuosos e benfazejos.

Um dos aspectos que deve ser mencionado enquanto indutor da deterioração das

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Nos chamaram a atenção os conflitos que apresentam uma roupagem religiosa. Trata-se de interessante tema para pesquisas futuras na região.

relações de bairro – sobretudo, porque afeta as relações sociais (enquanto relações humanas) – é a perversa situação estabelecida pela Legislação Ambiental, cujas determinações submetem certas famílias à ilegalidade. Nos bairros rurais, as pessoas se tornam cúmplices das contravenções (desmatamento, retirada de palmito etc) e, não raro, se sentem injustiçadas. Deixam de explorar o palmito em sua terra ou aumentar o tamanho de sua roça, enquanto o vizinho assim o faz clandestinamente... As constantes denúncias anônimas e a desconfiança gerada indicam relações materiais e morais conflitantes e relações pessoais prejudicadas.

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