• Nenhum resultado encontrado

MIGRAÇÕES E A QUESTÃO FUNDIÁRIA (ESPECULAÇÃO, PRODUÇÃO E OCUPAÇÃO)

Os estímulos governamentais à produção que viemos apontando suscitaram interesses diversos pela Baixada, em especial, por sua ampla disponibilidade de terras (livres ou baratas). Mesmo famílias pobres de São Paulo e outros estados foram atraídas para o Vale, pela possibilidade de arrumar trabalho em propriedades rurais, mas principalmente, pela possibilidade de adquirir (ou ocupar) terras e manterem-se por meio do trabalho autônomo – veja que não vinham com a intenção de reproduzirem-se como camponeses, como já lemos em alguns textos, mas de reproduzirem-se enquanto agricultores99. É bom lembrar que nesta época, sobretudo na década de 80, houve forte retração do mercado de trabalho na Grande São Paulo, o que provavelmente ajuda a explicar tal tipo de migração. De todas as famílias migrantes que chegaram entre as décadas de 60 a 80 no Vale do Ribeira, talvez sejam

98

Segundo Resende (2000, p.75), “os piores índices de analfabetismo e de mortalidade infantil coincidem com os períodos de maiores dotações orçamentárias da Sudelpa”. O levantamento de Roberto Braga (1998, p.156) sobre o plano de aplicação de recursos da Sudelpa, no período de 1975 a 1979, indica que para os setores de educação e saúde alocou-se menos de 5 porcento do orçamento, enquanto que o setor de infraestrutura de transporte, em torno de 55 porcento. Já nos anos oitenta, embora mais enxuto o orçamento, houve melhora nos indicadores sociais, pois os investimentos foram direcionados ao benefício social de forma mais democrática.

99

Um agricultor do Paraná viu a oportunidade de aumentar sua propriedade comprando terras em Iguape, cujo valor era muito inferior ao de seu estado. Na ocasião, este agricultor, muito atento, sabia da chegada de japoneses na região, o que para ele significava uma garantia, e um estímulo a mais, para mudar-se para lá. “Japoneses sabem analisar e fazer bons negócios... são sérios, não dão ponto sem nó” (depoimento, Cavalcante do Momuna, 2001). A presença de japoneses, para ele, indicava que o Vale seria uma região próspera, “do futuro”, como disse. Conhecemos também uma família de nordestinos, a qual, menos informada que a paranaense, foi parar no interior do Itimirim, antes achando que estavam a caminho de uma nova vida na cidade de São Paulo. Aqueles que vieram de Minas, deixaram a vida de vaqueiro mas, principalmente, a vida de assalariado. Buscaram no Vale do Ribeira a oportunidade de ser independentes, de prosperar. “Crescer, ir para frente” (depoimento, Despraiado, 2002) plantando também o próprio sustento, coisa que empregado de fazenda não tem tempo e nem espaço.

estas (as mais pobres) as que ainda persistem em suas terras.

Zan (1986, p.55) levantou dados dos censos de 1970 e 80 sobre a migração de trabalhadores e observou um alto crescimento da população proveniente de outros estados do país na região da Baixada. Em Iguape, são muitos baianos, mineiros, sergipanos, paranaenses, gaúchos... tem até a Vila dos Pernambucanos no bairro do Itimirim. Atualmente já faz parte da caracterização do Vale, de sua complexidade e suas contradições, essa grande somatória de povos resultante dos processos migratórios. A maioria dos migrantes que conhecemos durante a pesquisa chegou ao Vale na década de 80. Concluímos que já faziam parte de uma segunda leva, pois muitos já tinham parentes trabalhando na região e vieram por conta desta referência100. Todas as famílias estrangeiras que conhecemos tinham algo em

comum: a tradição familiar de vida e trabalho no campo – muito embora já tivessem experimentado a migração para a zona urbana, principalmente da cidade de São Paulo.

As dificuldades produtivas que encontraram, entretanto, foram diversas – fosse na organização interna incipiente (produtores isolados vindos de diferentes regiões do país, contando com pouca mão-de-obra), fosse na estrutura externa ineficaz (acesso precário aos mercados consumidores, dificuldades de acesso aos incentivos creditícios e à assistência técnica) – tornando-se distante a possibilidade de crescerem como desejavam101. Grosso modo, diríamos que, hoje, os migrantes mais

pobres, em geral vindos do Nordeste e de Minas Gerais, ou trabalham como assalariados, arrendatários ou meeiros, principalmente nas propriedades de chuchu e maracujá localizadas no Itimirim, cujos proprietários também são de fora, em geral, da classe média baixa de São Paulo e não moram na região. Alguns têm terra própria e trabalham em condições semelhantes a do caboclo, as quais foram detalhadamente

100

Até hoje, há famílias inteiras migrando para o município, como mineiros que conhecemos no Despraiado, recém chegados a convite de dois irmãos que estão na região há pelo menos 15 anos.

101

Muitos estão insatisfeitos com seu desempenho agrícola e expressam o desejo de ir embora. “Já não temos mais ilusão sobre o Vale, sua tendência, agora, é minguar cada vez mais” (depoimento, Cavalcante do Momuna, 2001). O que lhes prende é a propriedade da terra, pois sem o retorno do que investiram, não teriam nada para recomeçar a vida em outro lugar. E vender a terra tem sido muito difícil.

descritas no capítulo seguinte.

Mesmo assim, parte dos migrantes se diferenciou bastante do padrão de vida local, e entre estes se destacam os vindos do Sul e Sudeste do país. Assim como os japoneses, realizam uma agricultura comercial mais bem sucedida – estes produtores são vistos pelo caboclo como os “poderosos”. Possuem suas máquinas e implementos, estão minimamente organizados, têm melhor acesso à informação e assim por diante. É claro que isto não é uma regra. Existem disparidades entre eles, embora tenha sido possível identificar esta tendência.

Mas a corrida por terras não teve apenas motivação produtiva. Com a crescente valorização das terras, mais uma vez se assistiu, na história do Vale do Ribeira, ao processo de especulação imobiliária, apropriações irregulares e intenso conflito fundiário, acirrado pelo quadro de grande indefinição dominial, que se arrastava desde o fim do regime de sesmarias do período colonial102.

“A especulação fundiária na Baixada, como em todo o Vale, mostra-se como mecanismo que permite incorporar terras sem aproveitá-las nem povoá-las, configurando a mais acabada manifestação de cunho primitivo do modo como as terras caem sob o acicate da lei do valor” (MÜLLER, 1980, p.82).

A atividade especulativa de nada auxiliou a região, pelo contrário. Esta, que se iniciou já no final do século XIX, é a maior responsável pelos problemas de legalização fundiária103, os quais se constitui nos dias de hoje, seguramente, um forte

entrave ao desenvolvimento regional. A grilagem e a formação de latifúndios, quando não expropriam totalmente o sitiante de sua base de trabalho, comprometem o seu acesso. “O ‘grilo’ tornou-se fato comum em toda a Baixada e, como em outras partes do Estado, o ‘grileiro’ é que muitas vêzes acabou por determinar o destino de

102

Recomendamos a leitura de PAIVA (1993)e PAOLLIELLO (1992).

103

A forte tensão entre pequenos posseiros, produtores empresariais e o setor imobiliário gerada pela pressão sobre a terra, nas décadas de 60 a 80 teria sido menos conflituosa e problemática se a situação dominial das terras do Vale do Ribeira como um todo já não fosse tão complexa. O processo de titulação das terras devolutas no Vale – que ainda hoje está longe de ser concluído, apesar do esforço atual do Itesp – na década de 60, era totalmente incipiente. A maioria das propriedades rurais constituía-se de pequenas posses sem ter regularizado o título de domínio da terra.

áreas imensas, freqüentemente em desfavor do povoador anônimo, desbravador e morador de zonas distantes” (PETRONE, 1966, p.93-94).

Ouvimos o depoimento de uma família que, na década de 50, trabalhou em terra alheia sob oneroso sistema de parceria, em lugar ermo como os arredores do Rio das Pedras. Quando questionados sobre a possibilidade de ocuparem um pedaço de terra e produzirem autonomamente, a resposta nos surpreendeu: “É que a terra tinha dono e nós não tínhamos informação para saber quando ele poderia chegar” (depoimento, 2003). Isso ilustra alguns aspectos prejudiciais decorrentes da indefinição dominial e da especulação com terras.

Houve grande propaganda e incentivo para se comprar terras no Vale do Ribeira no período dos investimentos estatais. Como escreveu Petrone (1966, p.344), “A especulação imobiliária tomou pé com o início das obras da BR-2, quando começaram a surgir na imprensa de São Paulo, especialmente no jornal ‘O Estado de São Paulo’, anúncios oferecendo à venda terras localizadas no longo da faixa servida pela nova rodovia”.

“A melhoria do sistema viário regional, [...] fez com que a Baixada do Ribeira começasse a chamar a atenção de capitalistas, principalmente com a aplicação de capitais na compra de grandes parcelas de terras” (ibidem, p.343). No entanto, não foram apenas os grandes interesses que mobilizaram apropriações de terra na região. “Ao lado dos capitalistas, outras pessoas estranhas à região, geralmente residentes em São Paulo, possuidoras de reservas relativamente modestas, passaram a aplicá-las na aquisição de terras” (ibidem, p.343).

Para os caboclos que se viram tentados ou compelidos a deixar o campo, esta foi a sua oportunidade. Compradores de todas as partes apareciam interessados em suas terras, negociadas a preço pequeno. Vender a posse foi solução fácil para problemas imediatos do sitiante, como o pagamento de dívidas contraídas. Também lhe trouxe a ilusão do dinheiro fácil, ampliada pela dificuldade em resistir ao assédio e às

artimanhas do fazendeiro (cf. QUEIROZ, R., 1983, p.78)104.

Para os casos de especulação ilegal, as terras do Vale do Ribeira representavam uma promessa de lucro fácil, uma vez que em sua maior parte eram devolutas, pouco ocupadas, e quando tal, por população legalmente desamparada e politicamente desorganizada. Com freqüência, estes processos de grilagem estiveram associados à violência física.

“Atualmente, com a generalizada expectativa de o Estado expandir a complexa estrutura que programou, intensificou-se ainda mais a corrida às terras não apropriadas legalmente, ou seja, terras de posseiros e próprios do Estado, do que resulta um clima de frente pioneira, onde a lei brota da vontade do mais forte, retirando das armas sua eficácia. E, como que indicando o grau de relevância da questão, o Estado mantém-se surdo e mudo. Atitude essa, no entanto, que não se mostra sem propósito, pois sabe-se que grandes interesses privados, dentre os quais contam-se pessoas presentemente compondo os quadros governamentais, acham-se envolvidos, direta e indiretamente, na especulação fundiária” (MÜLLLER, 1980, p.79).

A chegada de novos posseiros, “jagunços” a serviço de grileiros e compradores de terra gerou grande tensão fundiária, dando origem a litígios judiciais, expropriações indevidas, brigas diretas e violentas no interior dos bairros rurais. A violência que se acendeu no campo estimulou sitiantes a abandonarem suas terras. Outros acabaram perdendo-as no processo de grilagem, justamente por não apresentarem documentos comprobatórios da posse ou propriedade, e nem defesa jurídica do Estado. Foi dessa vez, na década de 70, que se armou o período de maior brutalidade.

Outros sitiantes viram sua mobilidade espacial limitar-se em função das ocupações ou venda parcial de seus sítios. Enfim, desse processo de migração, ocupação e luta pela terra resultou redistribuição fundiária, redimensionamento dos espaços produtivos e acentuação do êxodo rural. Se até a década de 1950 observou-se um processo de fragmentação da terra, a partir da de 60 o processo foi de reagrupamento das propriedades, como mostra a tabela abaixo (Tabela 6)

104

Renato Queiroz estudou um bairro rural de negros chamado Ivaporunduva, no município de Eldorado no Vale do Ribeira. Este bairro foi inicialmente descrito como uma típica comunidade de organização pré-capitalista e vinha passando por transformações, muitas delas semelhantes àquelas ocorridas em Iguape.

TABELA 6

Evolução do número dos estabelecimentos por estratos de área no município de Iguape, 1960-1995/96 1960 1970 1980 1995/96 Es tr at o s Estab. % Área (ha) % Estab. % Área (ha) % Estab. % Área (ha) % Área (ha) % até 50 610 64 14.734 18 1.188 76 21.988 25 274 65 6.134 12 5.411 16 50 a 100 179 19 12.778 16 200 13 14.425 17 58 14 4.165 8 2.301 7 100 a 500 138 15 27.080 33 146 9 27.828 32 67 16 15.439 30 12.523 37 > 500 23 2 27.231 33 26 2 22.592 26 22 5 26.432 51 14.001 41 Total 950 100 81.823 100 1.560 100 86.833 100 421 100 52.170 100 34.236 100 Fonte: IBGE, Censos Agropecuários.

Nota: As diferenças entre soma de parcelas e respectivos totais são provenientes do critério de arredondamento.

Na década de 60 os estabelecimentos com menos de 100 hectares representavam 83% do total de estabelecimentos de Iguape e ocupavam 34% da área total das propriedades, enquanto que as propriedades com mais de 100 hectares representavam 17% do total de estabelecimentos e 66% da área total das propriedades. Na década de 80 esta relação ficou da seguinte forma: os estabelecimentos com menos de 100 hectares representavam 79% do total de estabelecimentos e ocupavam 20% da área total das propriedades, enquanto que as propriedades com mais de 100 hectares representavam 21% do total de estabelecimentos e 81% da área total das propriedades.

Documentos relacionados