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A RECONFIGURAÇÃO DO QUADRO AGRÍCOLA MUNICIPAL : OBSERVAÇÕES SOBRE A ARTICULAÇÃO ENTRE SISTEMAS E AGRICULTORES

Apenas esta distinção inicial não é suficiente para visualizar a organização da produção agrícola atual. Sobretudo porque é justamente nas trocas, nas articulações entre os grupos de agricultores e suas práticas que desvendamos os mecanismos de funcionamento e as fragilidades de tal organização. Ao observar a distribuição atual da atividade agrícola sobre a área municipal, nos ocorreu a hipótese de que uma discreta articulação entre produtores que praticavam diferentes sistemas agrícolas foi determinante no processo de intensificação do sistema itinerante, pois o caboclo só conseguiu manter sua atividade agrícola como principal meio de vida nos bairros onde também se desenvolveu a agricultura convencional – e onde esta subsistiu após as enchentes comentadas anteriormente. Apesar de pouco virtuosa, as trocas materiais (terra e implementos agrícolas), de conhecimento e de mão-de-obra ocasionadas pela presença do agricultor que já tinha uma prática intensiva no bairro foi, e ainda é, importante apoio para o caboclo.

Vale notar que alguns migrantes nunca chegaram a praticar uma agricultura itinerante. Logo que puderam, compraram máquinas e desmataram a maior parte de suas propriedades. Isso significa que, tanto não sofreram com a transição de seu sistema produtivo como sofreu o caboclo com o controle do desmatamento, como estiveram em condições vantajosas numa série de aspectos para o enfrentamento da conjuntura produtiva estabelecida pela legislação ambiental. Um desses aspectos

refere-se à situação dominial regularizada da terra (ou em condições de assim se parecer), a qual facilita a obtenção de licenças ambientais para uma série de atividades, entre elas o desmatamento e também, a obtenção de indenizações nos processos de desapropriação das áreas da E.E.J.I..

Resende (2000, p.78), referindo-se à situação do Vale do Ribeira como um todo, acrescenta que para os agricultores mais capitalizados “a fiscalização não chega a ser um impeditivo, apenas um custo extra. Observa-se que normalmente estes conseguem promover a abertura de novas áreas através do desmatamento feito por terceiros (“laranjas”), ou até mesmo pelo proprietário, que incorpora o custo da multa porventura aplicada. A simples penalização administrativa (a multa) tem sido insuficiente e outras medidas (civis e penais) são raras”.

Atualmente, na área da Aldeia do Una, a agricultura é insignificante. A principal atividade econômica do caboclo e de uma população de migrantes pobres é o extrativismo clandestino de palmito. Esta área, que se destacou historicamente pelo desenvolvimento de uma agricultura comercial de arroz – dada a presença de agricultores patronais e donos de engenho – mesmo após a crise do fim do século XIX, foi fortemente atingida pelas enchentes, que afogou por completo qualquer intenção de desenvolvimento da bananicultura ou de outra agricultura convencional de mercado. Vale lembrar que no período das enchentes, o caboclo pode se manter da pesca e do extrativismo vegetal, mas quando tais atividades – assim como a roça itinerante – passaram a ser perseguidas, ou ao menos, amplamente dificultadas pelas exigências legais que primam pela conservação ambiental, as famílias se viram sem sua fonte de renda153, sem sua lavoura e em difíceis condições para retomá-la. E

assim se encontram até hoje, na clandestinidade do extrativismo e numa acentuada pobreza.

Em toda sub-área do Jairê, também atingida pelas enchentes, a agricultura comercial

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As principais fábricas de processamento de palmito e caixeta aos poucos foram sendo fechadas. Em 1989 ainda havia sete serrarias de caixeta no município de Iguape, embora já em fase de decadência, sendo que a maior delas fechou ainda neste ano. O único comprador da madeira pré processada nas serrarias (em forma de tabuinhas para produção de lápis) do período era a Faber- Castell (cf. DIEGUES et al., 1991, p.62).

emergente cedeu lugar à criação de búfalos e de gado bovino, enquanto que a agricultura do caboclo ficou restrita a uma precária154 roça de subsistência.

Já na área do Peroupava, a dinâmica foi outra. Apesar da forte debandada dos agricultores migrantes e da decadência da monocultura da banana, após as primeiras enchentes, alguns ainda mantiveram suas propriedades e foram se recuperando por meio de pequenos investimentos em lavouras de ciclo curto, como as de espécies olerícolas. Acompanhando este mesmo impulso, uma parte dos sitiantes aproveitou- se temporariamente do extrativismo como alternativa econômica, apenas o suficiente para possibilitar a retomada de sua lavoura155, de preferência com cultivos de

crescimento rápido que pudessem ser comercializados. Isso significou, no transcorrer dos anos, o fortalecimento desta agricultura no contexto do bairro.

Quando as restrições ambientais passaram a incidir sobre a região, estes sitiantes, além de manterem sua lavoura, ainda tiveram o apoio indireto dos migrantes, através do exemplo de sua prática agrícola, e direto, por meio do empréstimo de máquinas e implementos, além de apoio no transporte e na comercialização. Aqueles que tinham se afastado da agricultura – em função das dificuldades criadas pelas enchentes, mas também em função dos incentivos criados em torno do extrativismo do palmito, da caixeta e da pesca da manjuba – tiveram mais dificuldades de retomá-la, tendendo a ser absorvidos como mão-de-obra volante nas outras propriedades. A partir daí, se configurou uma certa divisão entre aqueles que seguiram vivendo da lavoura comercial de produtos anuais e aqueles que buscaram ocupação no trabalho volante.

Quando da ocasião desta entrevista, haviam transcorrido sete anos desde a última enchente. Hoje, o sitiante entrevistado é de opinião de que o bairro já se recuperou. Apesar de só fazer referência às enchentes, e não às proibições ambientais, sua conversa referenda a conclusão acima, a qual pressupõe um efeito conjugado destes

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Qualificamos por precária a roça de subsistência pois dificilmente cumpre alimentar de forma adequada a família. O arroz, por exemplo, já não faz parte desta roça. Em geral, trata-se de rocinha.

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Nota-se que a população rural mais carente recebeu, na ocasião das enchentes, ajudas emergenciais de comida, água, roupas... mas raramente receberam sementes e apoio para voltar a produzir. Isto apenas alguns conseguiram por vias próprias, isto é, por meio de empréstimo de um amigo, uma doação de um vereador de Iguape etc.

dois eventos:

Na época das enchentes todo mundo da agricultura perdeu tudo. Depois dessas enchentes pra cá houve muita diferença. Quando começou a parar as enchentes, que a barragem foi aberta, houve muita diferença. Muitas pessoas já endireitou- se mais, já compraram as coisas. Todo mundo plantando maracujá. Todo mundo plantando verdura, comprando, fazendo financiamento. Eu pelo menos já fiz financiamento. Fiz no Banco do Povo, comprei uma máquina [Tobata]. Tenho trabalhado com ela, que tem me ajudado muito. Teve muita vantagem depois das enchentes. Hoje, aqui dessa região sai 4 caminhões de mercadoria por semana, que vai tudo pro Ceasa. A gente vê muita coisa. Já acabou aquele problema (depoimento, Peroupava, 2003).

Em outro trecho da mesma conversa, completou:

O que atrapalhou a vida do homem é isso daí. Nas épocas das enchentes que atrapalhou o povo... note bem, muita gente deixou-se trabalhar de camarada [diarista].

Na sub-área do Momuna, e na maior parte do Itimirim, a agricultura convencional foi se desenvolvendo sem sofrer com os percalços das enchentes. No momento em que o uso dos recursos florestais passou a ser controlado, a dinâmica foi então semelhante à do Peroupava: pelo menos algumas famílias de sitiantes conseguiram manter ou iniciar uma atividade agrícola comercial e de uso intensivo do solo, em sinergia com agricultores migrantes. A agricultura do Momuna não tem o cultivo de olerícolas como característica marcante, como no Peroupava; é mais diversificada. Encontra-se maracujá, cítricos, tomate, flores e goiaba nas propriedades de agricultura convencional e hortícolas e mandioca (comercializada como farinha) nas propriedades de agricultura mais rústica.

Um caso especial refere-se a área da Estação Ecológica da Juréia, onde tanto o desenvolvimento da agricultura convencional, como da tradicional foram paralisados.

A tabela 11 ilustra alguns dos movimentos da dinâmica de cultivo no município de Iguape. É possível observar, por exemplo, que no período entre 1950 e 1995/96 o número de estabelecimentos com pastagens cresce, em prejuízo da lavoura temporária. Observa-se também que entre as décadas de 1970 e 1995/96 houve elevação e queda significativa da lavoura permanente, o que supomos retratar o

movimento de expansão e retração da bananicultura. Quanto às informações sobre as terras em pousio, acreditamos que os dados do censo não retratam fielmente a realidade, provavelmente pela própria dificuldade de defini-la – é possível que as terras em pousio confundam-se com as categorias de terras (usadas pelo IBGE) como as de matas e florestas, terras improdutivas, incultas, não utilizadas etc. De tal modo, sua análise fica prejudicada.

TABELA 11

Evolução da forma de utilização da terra no município de Iguape, 1950-1995/96

Lavoura

Total Permanente Temporária

Ano Estab. Área (ha) Infor. % Área (ha) % Infor. % Área (ha) %

1950 2.141 95.301 ... ... 2.634 3 ... ... 7.584 8 1960 950 81.823 363 38 3.294 4 856 90 5.464 7 1970 1.563 97.812 462 30 3.907 4 1.338 86 5.332 5 1980 426 86.848 266 62 14.507 17 235 55 1.522 2 1995/96 620 34.236 221 36 1.867 5 408 66 1.090 3 Lavoura Pastagem Total Em descanso (1) natural e plantada

Ano Estab. Área (ha) Infor. % Área (ha) % Infor. % Área (ha) %

1950 2.141 95.301 ... ... 27.673 29 ... ... 1656 2

1960 950 81.823 312 33 8.505 10 113 12 1210 1

1970 1.563 97.812 1.232 79 24.968 26 194 12 4715 5

1980 426 86.848 28 7 411 0 139 33 7045 8

1995/96 620 34.236 46 7 567 2 174 28 7790 23

Fonte: IBGE, Censos Agropecuários.

Notas: A soma dos percentuais relativos ao número de informantes é maior que 100, o que indica que um mesmo informante pratica mais de um tipo de lavoura em seu estabelecimento. Já a soma dos percentuais relativos ao uso da área é menor do que 100, pois não estamos apresentando todas as categorias de área usadas pelo IBGE, como a de “matas e florestas”, até porque estas categorias não seguiram um padrão em todos os censos.

... Dado numérico não disponível. (1) Nos Censos de 1950 e 1960, chamou-se de "Terras incultas"; em 1970, "Terras em descanso e terras produtivas não- utilizadas".

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