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É unânime entre os sitiantes a lembrança de uma natureza cuja fartura se via na caça, na pesca, no extrativismo e na lavoura. De maneira semelhante à produção do arroz, gostam de falar da abundância de caixeta e palmito que encontravam na mata... a facilidade como enchiam a canoa de manjuba... o tamanho dos robalos que costumavam pescar... e daí por diante. Não só descrevem uma rica natureza, como se colocam como privilegiados. Mas é difícil não notar que o privilégio se configura exatamente no acesso à natureza e na possibilidade de explorá-la. É através do uso que a natureza local é valorizada – o que não quer dizer que o inverso seja verdadeiro, isto é, a natureza também tem valor afetivo, subjetivo e não material para o caboclo, que tem como hábito a contemplação dos animais, da mata e do mar.

Na confrontação com a situação presente, o que vem à tona, então, são os prejuízos causados por esta natureza proibida, a qual chega a representar para alguns a antítese do progresso176. O predomínio do verde na paisagem é o atestado concreto e

indissimulável do subdesenvolvimento de seu município, sobretudo para aqueles menos apegados, objetiva e subjetivamente, à realidade rural e agrícola. Mas como um paradoxo, é dos recursos naturais da Mata Atlântica, rios e estuário que parte

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Uma vez, um caboclo comentou em tom de indignação: “Não tem uma indústria aqui. Não tem empregos”. Por um instante, também me surpreendi como se estivesse diante de um absurdo. Nossa, não tem sequer uma indústria! Depois comparou: “Iguape tinha tudo para ser como Santos, Guarujá” (depoimento, 2002). Esta imagem valorizada da indústria e da cidade, a qual se constrói em oposição à da natureza local, veio de um diarista – embora seja freqüente entre os da cidade também – o que nos pareceu bastante compreensível. É a imagem e o discurso de quem está mais ligado ao ambiente urbano e pende para este caminho. O emprego e o salário fixo se tornaram uma vantagem apreciada, contrariamente à autonomia do caboclo.

significativa da população rural – e também urbana177 – ainda obtém seu meio de

vida, parcial ou integralmente.

E se a apreciação da natureza se fazia através do uso direto, significa que, a partir das restrições legais conservacionistas, esta se tornou uma relação coibida, não só materialmente, mas também simbolicamente. Isso nos levou a questionar como é que o caboclo recoloca seus valores e a si próprio diante da sociedade. Mais uma vez observamos como oscila entre sua afirmação e sua submissão.

As informações omitidas: a nova moral e o julgamento social

À medida que ampliávamos o contato com as famílias entrevistadas, fomos percebendo que, tão importante quanto aquilo que nos declaravam, era o quê, conscientemente, nos omitiam178.

Via de regra, as atividades ilegais de caça, corte de palmito e extração de madeira (usada principalmente para mourão) não eram comentadas, ou então eram explicitamente negadas. Pequenos desmatamentos para fins de agricultura também eram inicialmente omitidos, mas declarados, modo geral, pelo próprio depoente no fim da conversa. Nosso acesso a informações como essas se deu, portanto, de modo indireto – como nos exemplos citados em nota – mesmo quando nos julgávamos bastante próximos da família entrevistada e satisfeitos por haver conseguido

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Segundo levantamento de pesquisadores do Centro de Estudos Caiçara (CEC-Iguape), feito no bairro do Rocio, observou-se que muitas famílias apesar de viverem no meio urbano, ainda sobrevivem de atividades de pesca e extração do palmito.

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Algumas vezes, após longas horas de conversa com uma família – na qual abordávamos sua história e suas atividades econômicas atuais – ficávamos sabendo por meio de um informante próximo – de menos pudores – que algum membro daquela família era cortador de palmito, por exemplo. Isso significa que parte da subsistência da família entrevistada era obtida por meio de uma atividade que não fora por ela mencionada. Outra vez, na feira – onde sempre encontrávamos oportunidade para conversar com alguns sitiantes – nos aconteceu de ouvir alguém perguntando ao agricultor se ele aceitava encomenda de carne de caça. Ele respondeu que não matava animais, dando a entender que sua moral tinha fundamentos de crença religiosa. Mas, prontamente, indicou uma pessoa cujo filho poderia atender o pedido da cliente. A pessoa indicada era por nós conhecida e nunca tivera aludido à caça comercial, nem enquanto oportunidade ocasional.

estabelecer uma relação de confiança mútua. Ao mesmo tempo, aquilo que para nós não era revelado, não parecia ser segredo para os demais moradores do bairro. Todos parecem saber das práticas e atividades dos outros, havendo tanto cumplicidade moral, como também, muitos conflitos e acusações.

É claro que não nos surpreendeu o fato de realizarem atividades proibidas pela legislação, mesmo porque, usufruem, de modo geral, de legitimidade179 em tais

práticas. E talvez seja exatamente isso o que nos causou surpresa, a ponto de considerarmos a omissão, em si, um material de pesquisa, um fato significativo.

Omitir a realização de atividades ilícitas poderia, no primeiro contato com a pesquisadora, resultar de receio relativo às intenções de alguém estranho – conforme comentado em “Pesquisa de Campo” na Introdução. Mas, após tempo suficiente para que uma relação de confiança estivesse estabelecida, atribuímos a persistência da omissão ao fato dos sitiantes intimidarem-se, não tanto com a possibilidade de repreensão real (autuação policial), mas com o julgamento e a condenação moral da própria pesquisadora. O temor da reprimenda moral, conjeturamos, pertence ao imaginário do próprio agricultor, e alimenta, sobretudo, do fato de ser a pesquisadora alguém que não pertence ao meio rural, tampouco a sua classe social, representando, portanto, o conjunto da sociedade dominante.

Os usos que faziam da natureza passaram a ser socialmente condenados, e no limite, são eles próprios os condenados, como indivíduos e, principalmente, como categoria de indivíduo. Pois intuímos que é através do manejo dos recursos naturais ou da íntima relação com a natureza que a população de Iguape – pois também se inclui aquela que já migrou para a cidade – encontra uma identidade comum, a qual passou a ser diretamente censurada. uso

Essa identidade se constrói no fato de encontrarem ali, na natureza humanizada, um domínio que lhes é próprio; um conhecimento, um saber fazer, um trânsito fácil que é só deles. E que estando entre eles, nada precisará ser dito ou explicado, pois esta

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Esta legitimidade que associamos ao caboclo tem raízes no fato de que estas práticas constituem seu meio de vida, sua forma de perceber e se relacionar com a natureza... no fim das contas, esta legitimidade assenta-se na ausência de políticas públicas de inclusão.

natureza representa a realidade mais óbvia, sobre a qual conhecem muitas formas de controle e também o limite do que está para além do seu governo. Porém, se esta é uma identidade local, notamos que na relação com o universo social dominante, os caboclos são forçados a se perceber inferiores. Passam a disfarçar suas práticas, a condenar seus costumes e sua história, contribuindo para a depreciação de si e da comunidade como um todo.

Seguindo raciocínio de Bourdieu, o disfarce e a depreciação são efeitos da perda de autonomia ética do caboclo (camponês), para a qual contribuem decisivamente as representações que deles tem a sociedade dominante. E uma identidade dissimulada indica quão fraca é a capacidade de enfrentamento, de resistência e recusa desta população diante das questões políticas colocadas para ela. Aos poucos, vão desvanecendo suas particularidades e se tornando difícil o resgate dos direitos concernentes ao seu modo de vida.

Ao mesmo tempo em que o caboclo ainda insiste em práticas agora proibidas – seja pela sua necessidade, seja pelo fato de não as crer causadoras de degradação da natureza etc. – ele não se autoriza reivindicá-las, não só como práticas, mas como forma de apreciação do mundo. Esta é a dualidade dos critérios usados pelo caboclo para se colocar em sociedade.

Paradoxalmente, o local onde pudemos conversar mais abertamente sobre a extração de palmito foi no bairro do Despraiado – justamente este, que se encontra no interior da Estação Ecológica da Juréia. A extração de palmito é tão proibida dentro, quanto fora da Estação, mas sem dúvida lá, por ser uma unidade de conservação, a fiscalização é mais rigorosa e, sobretudo, a aversão/condenação social do uso da natureza é, simbolicamente, mais forte. Diante disto, supusemos que, no Despraiado, as omissões a respeito da realização de atividades proibidas fatalmente aconteceriam. Porém, como dissemos, foi lá onde, pela única vez, conhecemos alguém que, logo de início, se apresentou como um “palmiteiro”, sem maiores constrangimentos. Tal episódio nos levou à seguinte reflexão.

Ao contrário dos outros bairros do município, aqueles do interior da Estação Ecológica da Juréia viveram uma longa história de discussão e luta pelo resgate dos

direitos de sua população, tolhidos pela legislação ambiental. A população da Juréia teve – é claro que em diferentes medidas – mais oportunidade de debater, questionar e refletir sobre as imposições que sofriam e, assim, conscientizar-se de seus direitos e valorizar suas características próprias. Isso não se passou nos demais bairros do município, onde as restrições foram menos severas, embora, também prejudiciais.

O absurdo da situação que sofreram na época de implantação da Estação180, e o

inaceitável das condições a que estão até hoje submetidos, tornam ainda maior a legitimidade de qualquer atividade que se volte para a manutenção da família, como por exemplo, extrair palmito. É a legitimidade da sobrevivência, da justiça social, emergidas de uma situação extremada de falta de oportunidades. Mas, o que ressaltamos é o fato de ter havido mobilização e debate entre a população local, trazendo como resultado a possibilidade de renovação e sustentação da ética social nos bairros da Juréia – da qual se aproveitam mesmo aqueles que não participam e não participaram de qualquer mobilização.

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