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A sala de aula: um lugar sem lugar definido

Letícia Silva | leticiarfs@gmail.com

Colégio da Trofa – Grupo Ribadouro

A 14 de março as escolas fecharam. Foi-nos pedido isolamento e distanciamento social em nome do um bem preciso: a nossa saúde. As aulas deixariam a escola e a proximidade da sala de aula, e passariam para um espaço virtual e distante. Mas como chamar a este lugar sala de aula?

A sala de aula é mais que um local de transmissão de conhecimento, é um local de afetos, de partilha, de olhares que se cruzam e sorrisos que se trocam. A linguagem não verbal e a relação que se estabelece entre professor e aluno, é das ligações mais importantes na dinâmica de todo o processo de ensino aprendizagem. Então como seria possível ensinar e aprender sem a presença desta tão poderosa relação? Como seria isto possível através de um ecrã? E a estas inquietações, somavam-se todas as outras relacionadas com a verdadeira transformação tecnológica que o ensino à distância obriga.

As aulas on-line começaram. E, ultrapassado os constrangimentos técnicos, comecei a sentir falta de ver os meus alunos, de ler-lhes no rosto os seus pensamentos, senti a ausência do seu olhar e acima de tudo, senti um gigantesco silêncio. Aos poucos, todos fomos aprendendo a conviver com este ensino à distância. Foi para todos um período de descoberta e aprendizagem em ação. Também eu aprendi, com os alunos, as melhores formas e estratégias a adotar em cada momento e o meu modo de trabalho docente foi-se ajustando às suas necessidades. De uma forma natural o ecrã, que ao início nos separava, tornou-se no ecrã que nos unia.

Continuo a sentir falta do seu olhar e de ler-lhes o pensamento pelo seu rosto, mas cedo percebi que a relação professor-aluno não esmoreceu, apenas se manifesta de outra forma. E os receios iniciais (meus e deles) aos poucos foram desaparecendo. E descobri que este ensino à distância poderá ser surpreendente.

Uma tarefas de trabalho autónomo do 6.º ano que pedi que os meus alunos realizassem, para estudar a influência da luz no desenvolvimento das plantas, foi a execução da atividade experimental, simples, mas sempre fascinante experiência de colocar um feijão a crescer em diferentes condições de luminosidade. Ao longo de duas

semanas os alunos foram registando e fotografando a evolução dos seus feijoeiros. Posteriormente, em aula síncrona, iriamos analisar os resultados obtidos. Para isso, criei uma apresentação com as várias fotografias, vídeos e registos que os alunos tinham enviado, e com o suporte teórico para a análise e discussão desses resultados.

Quando entrei, antecipadamente, na plataforma para preparar os materiais a utilizar na aula, deparo-me com vários alunos já ligados. Fiquei uns instantes a ouvir as suas conversas. Que saudade tinha de os ver e ouvir assim, a falar e a rir. Parecia que estava passar pelos corredores da escola em direção à sala de aula, enquanto eles aproveitam o intervalo até ao último instante. E, tal como quando atravesso o corredor, meti conversa com eles, e perguntei como estavam. Lá me foram dizendo que estavam bem, até que o G. me perguntou:

- “Oh professora! A aula já começou?”

- “Não. Ainda não está na hora, e ainda faltam colegas teus.” – respondi eu. - “Então podíamos falar? Tenho saudades de conversar com a professora!” Surpreendida com esta demonstração de saudade lá lhe perguntei sobre o que queria conversa. E ele me contou como têm sido os seus dias, que tem saudades da escola, dos amigos e dos professores. Até me mostrou o seu cão - companheiro inseparável deste confinamento. Claro, que todos os outros colegas quiseram contar como têm sido os seus dias e mostrar o seu animal de estimação. Compreendi naquele momento, que os alunos não precisavam que eu lhes transmitisse conteúdos de Ciências Naturais. Necessitavam que os escutasse, precisavam de partilhar comigo o seu dia-a- dia. Ensinar e aprender é isto. É a partilha, é a escuta ativa, é dar aos alunos aquilo que eles precisam. E naquele momento os meus alunos precisavam que eu os escutasse. E quando já pensava que seria uma “aula perdida” para as Ciências Naturais, a M. quis mostrar-me os seus feijoeiros. Estava preocupada, pois enquanto um crescia vivaço e verde, o outro, o que estava dentro da caixa, estava enorme, mas caído, prostrado e de cor esbatida.

- “Será que fiz alguma coisa mal?” perguntava ela enquanto tentava ajeitar a câmara do computador para que eu pudesse ver o seu pálido feijoeiro.

Mas antes que pudesse responder, a R. interrompe empolgada e diz:

- “Eu sei o que aconteceu! Posso dizer professora?”. E num discurso que não estava decorado nem escrito em papel algum, a R. lá explicou que sem luz as plantas

não realizam fotossíntese, nem produzem clorofila e, por isso, ficam brancas, mas crescem muito para procurar luz. A R. rematou dizendo que a irmã a tinha ajudado a procurar na internet, pois tinha acontecido o mesmo com os feijoeiros dela.

- “Ah então é por isso que o meu feijoeiro tentou sair pelo buraco que tinha na caixa de sapatos! Ele foi à procura de luz.” disse o T. com entusiasmo. E assim, sem ensaio ou explicação e sem o saber, o T. conclui que o feijoeiro apresenta fototropismo positivo, conteúdo que nem faz parte do currículo de 6º ano, mas que naquele momento lhe fazia todo o sentido.

Separados por uma pandemia e isolados em suas casas os outros colegas compreenderam o que tinha acontecido com os seus feijoeiros, e levados pelo entusiasmo de quem descobriu a resposta para o seu problema, lá me foram mostrando, orgulhosamente, que aos seus feijoeiros tinha acontecido o mesmo que à R., à M. e ao T.

Este momento de construção de aprendizagem foi fascinante. A paixão e o entusiasmo demonstrados pelos alunos, permitiram uma aprendizagem muito mais rica e consistente, do que aquela que seria construída através de qualquer apresentação, vídeo ou explicação minha. De uma conversa de circunstância, se fez conhecimento, e o meu papel foi secundário. Não foi o professor que esteve no centro do processo de ensino-aprendizagem, foram os alunos, que com as suas ferramentas, e entusiasmo, descobriram a solução para o problema que tinham à sua frente.

A aula terminou e o seu objetivo foi cumprido. Segui a planificação? Não. Utilizei o material que tinha preparado? Não. Houve aprendizagem? Claro que sim, e das mais significativas de todas. Aquelas que fazem sentido para os alunos.

A sala de aula pode ter mudado, pode ter deixado a escola, mas não mudou a sua função. O isolamento que o vírus SARS-CoV-2 nos obrigou, fechou a porta (física) da sala de aula, mas abriu novas janelas de oportunidade. Criou novos espaços de aprendizagem, novas dinâmicas, novas formas de aprender e de ensinar. Este distanciamento não nos isola, pelo contrário aproxima-nos. A “minha sala de aula” é agora a casa de cada um dos meus alunos, e continua a ser um lugar de partilha, de aprendizagem, de conversas e desafios. De facto, a sala de aula poderá acontecer em qualquer local, é um lugar sem lugar definido e que não tem fronteiras. Tem apenas as fronteiras que os que nela se encontram não têm coragem de ultrapassar.