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O que não cabe nos formulários [Sempre_Nunca_Às vezes]

Manuela Gama | manuelagama@sapo.pt

Professora do ensino secundário, Consultora do SAME da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa

As fabulosas possibilidades do digital podem, nas práticas que estamos a instituir, pré-formatar os caminhos da aprendizagem em dicotomias tão simplificadoras que pouco têm a ver com os processos de construção do conhecimento.

Ao telefone com o António, vou preenchendo o questionário dirigido aos alunos que não têm internet suficiente para acederem às aulas na plataforma onde os seus colegas trabalham online sob a direção dos professores.

“Escolhe a opção que corresponde à tua situação. O meu encarregado de educação acompanha o trabalho escolar realizado no ensino a distância: nunca/ às vezes/ sempre”

É tão mais agradável falar contigo agora, António. Mais senhor da tua vida, da organização dos teus dias, contas-me desenvolto como resolves as tarefas que te mandamos, primeiro pelos Correios agora através de um portador da Junta de Freguesia, explicas até o que pensaste a propósito de uma ou outra questão e … lês!!! Na sala de aula, sentado numa cadeira desconfortável para a tua altura, raros eram os momentos em que te entusiasmavas. A chegares aos 17 anos e ainda no 9ºano, às vezes parecia que o único interesse na escola eram as raparigas. Sem lhes conseguires a atenção que outros tinham fácil, lá andavas pelos corredores quase sempre fechado, quase sempre triste. A não ser daquela vez que fomos recebidos no quartel e na torre do rappel foste o mais rápido, um autêntico show de destreza e de camaradagem a apoiar os outros que bem queriam fazer tudo, mas na hora da verdade hesitavam e quase cediam às lágrimas.

Agora estás em casa e eu andava tão absorvida a seguir ao 13 de março que deixei passar três semanas sem te dizer nada. Foste tu que telefonaste. ”Atão, professora?” Pois é, ando para te ligar e olha ainda bem que o fizeste tu. Não tens mesmo internet, não é? Até tenho, professora, no telemóvel, mas não dá para aceder às aulas. E ao mail da escola? Já lá foste? Ó professora, não preciso desse mail porque tenho o meu pessoal. Ora cá está o nosso António habitual. Mas é para o da escola que os professores

mandam as tarefas, rapaz. Vais lá ver? Não queres desfasar-te dos teus colegas, lá acabaste por dizer que sim e que te arranjasse um livro porque é coisa que em casa não há “e depois faço um áudio para falar do livro. A professora de Português tinha pedido isso em janeiro, mas eu não fiz. Por acaso, dicionário tenho, que me deram um no sexto ano e até gosto de, às vezes, me pôr a ver palavras”.

Andavas nos terrenos com a tua mãe quando liguei um fim de tarde, depois das aulas da televisão, a pensar que já estarias em casa. Não, hoje não vi as aulas, tive de vir acartar água que a minha mãe está grávida e não pode ser ela a fazer tudo. Mas, ligue- me mais logo que já li “A Ilíada” e até fiz o áudio. Não ficou é como eu queria e tenho de voltar a gravar. Acorreu a mãe para dizer que deixasse: andou a chumbar, este ano já se sabe que está perdido e pró ano, vai mas é trabalhar.

“O meu encarregado de educação acompanha o trabalho escolar realizado no ensino a distância? Nunca? Às vezes? Sempre?” Nunca, professora. E se acompanhasse de que servia? A minha mãe fez só o primeiro ciclo.

E tem 3 filhos e outro a caminho. E dá horas em casa da patroa. E também numa quinta onde lhe dão trabalho. Ao fim da tarde grangeia os seus terrenos. É uma mulher valente. “Não viro a cara a nada!”, disse-me, quando o filho veio transferido de outra escola.

Eu, eu é que acompanho a minha mãe. Sou o mais velho. Está a ver, professora?

A simplificação

Àquele NUNCA, assim absoluto, apetecia-me acrescentar uma explicação. Que não deixasse margem a interpretações de desinteresse, negligência da família: pois é, quando os têm em casa não ligam nenhuma! Mas não há caixa de observações no questionário, estamos no tratamento ágil de dados, no sim ou não, sem matizes nem estados de alma. Tudo mudou com o confinamento. No digital nada. A não ser a expansão exponencialmente acelerada. Para o bem e para o mal.

Finalmente, por força da situação, os instrumentos de alta tecnologia de que os alunos dispõem têm de servir para o trabalho e desenvolvimento cognitivo. Na realidade dos factos, o uso era sobretudo recreativo. Numa percentagem muito alta. Agora há que desenvolver competências digitais em situação de trabalho a par de uma ética na pesquisa e tratamento de dados. É possível sim, um maior protagonismo e controle do

aluno no seu processo de aprendizagem. As sessões online propiciam a participação síncrona de vários alunos, se fizermos agir o oral com a reação escrita imediata. Cada um não tem de estar à espera que o colega termine de dizer a sua resposta para escrever a sua frase. Trabalha-se mais “a quente” e as interações podem ser mais vivas. Consegue-se às vezes uma fluência de comunicação extraordinária, porque as respostas escritas individuais são visíveis para todos e propiciam interações múltiplas. Escritos sérios, originais, produzem efeitos de reflexão em todo o grupo. O total dos diálogos de cada aula fica registado e é visível para revisitação, se necessário e desejado. Está aberta a possibilidade de uma interlocução mais exigente e mais imediatamente controlada no tratamento da informação.

Porém, no quotidiano, colocar o diálogo em linhas de autenticidade é uma batalha dura, bruta e… desalentadora. Porque a tentação é grande de ir buscar o que já está feito para vir colar na linha da resposta. “Então o que queres dizer com esta expressão? Estarás a usar, como se fossem tuas, palavras de que nem sabes o significado?” Imenso é o mundo da informação, tudo lhes parece aceitável e mesmo entre professores não são consensuais os parâmetros orientadores.

Se os ventos correm a favor, porque não pode o aluno fazer o que “toda a gente faz”? O que interessa é ter a resposta certa e não o andar à procura de qual é a questão.