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Fernando Paulo Sousa | fernando.paulo@cm-porto.pt

Vereador da Educação da Câmara Municipal do Porto

A Educação é um ato de amor. Paulo Freire

Vivem-se tempos conturbados. Às vezes passamos dias à espera de uma palavra e ela não vem. Outros dias eis que nos chegam as palavras que precisamos e nem sempre lhes damos o devido valor. Mas houve, também, certamente, outros dias que era a nossa vez de deixar voar as palavras e nem sempre o fizemos.

Mas a vida é mesmo assim. É feita de coisas boas e coisas menos boas. De encontros e desencontros. É construída na relação e na partilha com as pessoas e está contida em momentos passados, nos instantes vividos e em tantas outras coisas que nos ajudaram e ajudam a dar-lhe sentido e significado. E futuro.

São dias diferentes, um tempo exigente e disruptivo. Há quem diga que são tempos apocalíticos. De repente tudo mudou à nossa volta. São dias de combate à pandemia, que nos interpelam a cada instante. Abdicámos da nossa escola para todos e das nossas relações familiares, pessoais e profissionais e em muitas situações do imperativo ético de não deixar para trás ninguém, especialmente as pessoas mais vulneráveis. Ontem ouvi uma senhora de idade avançada comentar que quando nos sentimos privados de fazer certas coisas por vezes surge uma vontade intensa de as podermos fazer. Como se sentisse nostalgia pelos momentos passados e ansiedade que este presente não faça qualquer ligação com o futuro. São tempos perigosos. Julgo que nos acontece o mesmo com as pessoas, com a nossa família, com os nossos amigos ou colegas de escola ou de trabalho. Ficamos cheios de vontade de estarmos juntos, de nos abraçarmos, de quebrarmos silêncios. Outras vezes parece que as notícias se transformam em histórias sem respostas certas ou erradas, a partir das quais se desencadeiam turbilhões de sentimentos.

O Filósofo José Gil alerta “este confinamento não é um lazer. Mesmo que haja quem consiga transformar este tempo em tempo de ócio, coletivamente isso é impossível. O tumulto e a catástrofe que desabam sobre o nosso país e sobre o mundo todos os dias não podem deixar de nos angustiar. No entanto, além do que a

transformação da vida quotidiana traz de novo ao indivíduo – que muitas vezes descobre uma vida nova (mas nunca sossegada e livre) – está a formar-se um outro espaço de comunicação entre as pessoas. Trocam-se e-mails, poemas, mensagens mais pessoais e próximas, textos, frases nunca anteriormente possíveis. Isto implica uma ação – que se revela necessária, às vezes, no fechamento em que estamos. (que não é um espaço público ou de opinião pública) vai desenvolver-se e, talvez, modificar um pouco as relações entre as pessoas”… (Público, cit.).

Mas a aventura da vida continua. As nossas crianças têm escola sem terem de se deslocar. Os bons professores continuam a ser bons professores. Certamente percebem o que mais importa em cada momento e sabem encontrar a forma de comunicar, de ensinar e ajudar a aprender, individual e coletivamente.

A pedagogia tal como a filosofia não é um conjunto de conhecimentos prontos, um sistema acabado, fechado em si mesmo; é uma atitude, uma certa maneira de pensar, ser e estar perante o mundo. Talvez o ato de educar também seja isso mesmo. E de acompanhar.

A Covid.19 mata, mas essencialmente as pessoas mais velhas. Não consigo conceber comunidades sem idosos. E sem crianças. As crianças na maioria dos casos são assintomáticas. Também não serão transmissoras. Mas não podem estar com os avós. Não podem dar-lhes um abraço. Não podem ir à escola. Os edifícios estão fechados, mas as escolas estão a funcionar! Transformaram-se em escolas digitais com professores e alunos de carne e osso. E com mães e pais. A escola passou para dentro de casa. As crianças não podem brincar umas com as outras. Mas podem comunicar e inventar brincadeiras. É brincando que as crianças exercitam a criatividade, aprendem coisas novas e despertam o interesse para atividades. E entretanto a nossa vida transformou- -se no cumprimento de imensas regras. Há uma espécie de mandamentos: primeiro higiene das mãos; segundo etiqueta respiratória, terceiro distanciamento social, quarto higienização e desinfeção das superfícies, quinto monitorização de sintomas, sexto proteção individual, sétimo… temos que nos inspirar!

Mas a educação pode acontecer em qualquer local contrariamente a este vírus que nem sempre se expressa, pouco o conhecemos e nalgumas pessoas até é assintomático.

A propósito da educação e do ato de educar, de ensinar e aprender, lembrei-me de um e-mail que recebi em fevereiro, poucas semanas antes desta pandemia. Foi fácil encontrá-lo, graças às ferramentas digitais, e diz o seguinte: “Olha o que o menino escreveu para o blog da escola sobre um livro que lhe deste de Eugénio de Andrade, com contos em poesia. Nos testes que trouxe hoje tinha praticamente tudo certo e obteve Muito Bom a Matemática, a Português e a Estudo do Meio. E 100% a Inglês. Ele anda mesmo bem, a professora diz que anda muito atento, deixou de conversar na aula e é muito inteligente, educado e cumpridor. Estou mesmo orgulhoso e feliz! Foi ele que escreveu o texto sozinho no computador! Já usa bem o word. E também sinto que é um menino feliz. Que está bem connosco, com os amigos e com o mundo”.

Apesar da pandemia, percebi que não se alterou o entusiasmo no ato de cuidar deste pai. O confinamento até contribuiu para acompanhar e participar mais na aventura de educar em torno de quatro aprendizagens fundamentais que ao longo da vida serão pilares de conhecimento (Jacques Delors, 2012): aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser. A sala de aula transformou-se em quarto, em jardim, em sótão. Em livro. Em música. Em sms. Em contactos, em gestos, em afetos. Em mar. Em qualquer lugar. A avaliação é importante, faz parte do processo; mas não é o centro da educação.

E o que dizia o texto para o blog da escola escrito pelo menino de 9 anos?

Este Livro é a Minha Cara, comecei por ler o título. E prossegui “Escolhi o livro de Eugénio de Andrade “Aquela nuvem e outras” com vários contos em poesia e que foi escrito para o seu filho Miguel enquanto ia crescendo. O livro tem 21 contos de poesia e gostei muito de todos. A poesia é um tipo de literatura que gosto muito e esse também foi um dos motivos pelo qual o escolhi como “este livro é a minha cara”. Destaco entre os contos do livro «o gato» que anda no jardim á roda do pudim; «o lagarto» que parece um ministro e que anda sempre janota; «gatos» que vêm da India, da Pérsia e Alexandria e que rodam de noite e dormem de dia; «a formiga» que dá sete palmos a correr e sete metros devagar só para lamber o mel que escorre dos dedos do Miguel; «a andorinha» branca que batia na janela para anunciar a chegada da primavera e o poema «não quero, não», não quero ser soldado nem capitão.

Li este livro, oferta do meu padrinho, nas viagens de casa para a escola. Enquanto o meu pai conduzia, eu lia para ele. Lembro-me de um dia em que ia a ler e quando dei

por mim estava a procurar formas pintadas de animais do livro com as nuvens do céu. Foi um momento engraçado e divertido”. Tudo mudou, a escola também. Ninguém desistiu das crianças. Ensinar e educar é, com efeito, um ato de amor em qualquer lugar.